O humor português é previsível, diz um vulto com ganas de sair do anonimato. Tal como a opinião do vulgo, é um sujeito — súmula de uma maralha nervosa e ressentida — que acerta ao calhas, se tanto. A inteligência é soterrada na frustração, pelo que ouvimos, saído desse maravilhoso entulho galopante, uma voz abafadiça que, se formos além da superfície, dirá: “ouçam-me, por favor, quero ser ouvido, sou o portador da verdade”. Numa assembleia de miolos temporariamente desactivados, a voz que se levanta desse coro assustadiço é a guilhotina romba posta em discurso. Abate-se sem apeadeiros numa queda lisonjeira uma e outra vez sobre o visado, mas não há forma de o rei se despedir de nós. Olha que há destinos, como vozearia a minha avó se fosse espectadora de tais espectáculos comicamente grotescos.
Não apanharei ninguém desprevenido se afirmar que o crítico aparvalhado terá, mais cedo que tarde, após colher a esmola volátil da aprovação nessa procissão de afónicos por momentos curados, uma prestação inferior à do alvo da crítica. O alvo da crítica terá roubado, reza a lenda, o lugar no pódio ao frustado. Adquirida a confiança para o desafiar, o frustrado cresce ficticiamente e tenta suplantá-lo com a sua navalhinha de brincar, afadigando-se em lutas de sofá e logo se dá conta do erro.
Descontadas as cantigas da empáfia entoadas pelo ressentimento, o atleta da indignação é tão-somente um medíocre consumado. Um génio sem obra que, ao mínimo verso escrito, revela aos outros o embusteiro que é.
Na sua cabeça, o desenvolvimento seria outro, porém a realidade teima em não cooperar com a nossa maré de alucinações. Pretendia, qual Barão Trepador de Italo Calvino, ir de árvore em árvore propagar a evangelho da altura, todavia não vai além do rés-do-chão do intelecto humano. A indignação, se posta em prática na arena onde os Homens se desentendem perfeitissimamente, é um movimento de dá e tira e modifica as coisas cá e lá sem nos pedir licença. Sujeitar os estilhaços esparsos de uma vida entregue aos cães à camisa-de-forças da fúria é um trabalho que não pode ser deixado a meio, sob pena de, findo o ritual de estrebuchamento, descermos ainda mais na consideração da turba. O palerma recorda-se daquele que é, evapora-se-lhe a intrepidez e inicia a queda a meio do voo. Curioso, se lhe dermos tempo, o arauto de todos os lumes, de todas as modernidades, é tão-somente um estafeta do eco com a mania das grandezas.
Na mundivisão deste vate, ele é, sem sombra de dúvidas, a voz da mudança. Surpreendentemente, pelo menos para fins humorísticos, o frustrado ignora que está a ser um joguete nas mãos da cólera mansa. Não diz nada que não tenha sido já dito. A fronteira ténue entre contrários é posta a nu, a dificuldade em destrinçar o bom do mau, o miopia em distinguir o virtuoso do vil. Resumindo e baralhando, mais um cego a ensinar-nos como se vê.
O canto acéfalo que nos ensurdece presentemente, o hino do império dos medíocres, celebrizado uma e outra vez por pensadores e filósofos. O círculo celebratório onde, quotidianamente, se benzem palermas com obra consumada. Talvez acarrete um preço demasiado alto a pagar — Jorge Sena é o exemplo máximo —, mas é preciso que surja alguém disposto a expor as maquinações dos frustados.
Enfarpelando os versos de Sá de Miranda com outra luz,
o pai do Velho do Restelo, podíamos sussurrar-lhes ao mesmo tempo que profetizamos a desgraça que caberá a quem ousar desafiar a turba:
Falemos com os cumes
caindo pelos precipícios.