Roberto Gamito
29.01.21
.Não saber andar na rua devido à pandemia.
.Elogio ao frango assado.
.Objectificar o outro.
.Estudioso do sexo.
.Compro o jornal para não ler.
. O cume da impotência.
.Uma crítica ao podcast típico.
.E outras ninharias.
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Roberto Gamito
29.01.21
Roberto Gamito
29.01.21
Uma mão aflita que fosse de flor em flor. Estabelecida esta primeira confusão, realizado o contrabando dos perfumes, com os quais seríamos repentinamente destruídos nessa viagem ao passado, sobra-nos um punhado de frases derruídas. O presente é um resíduo do passado. A atitude humana em relação ao passado é aliás de uma aterradora complexidade. Labirintamo-nos. Bocas que nos resgataram do pântano da homogeneidade, tal como o gemido daquela que fornica é, a par do grito, a suprema afirmação de vida. No plano do desânimo, podíamos supor que o gemido, os seus repetidos ensaios em dias que não lembram ao diabo, nos quais deslizamos do tédio para o entusiasmo pelo declive do tesão, é tão-somente um ensaio para o grito derradeiro. Eis duas formas lindas de interromper o silêncio, dado que as palavras já não surtem efeito: gemido e grito.
Quando dois corpos se encontram atraídos pela mesma fome, tendem a formar um mundo tumultuoso, no interior do qual geralmente as diferenças hierárquicas entre presa e predador são poucas. Sexo, olhares, gemidos e outras coisas manuseáveis pelo pensamento, caso a mão esteja fria e longe da carne, postas na folha crivada de riscos. Afastados os corpos, ingressamos no império da sede. O que é afinal a poesia? O ofício de erigir um bebedouro.
A língua gatinha onde ontem era lume. A mão, a qual perdeu a sua dignidade ao trocar a carne pela folha, empobrecida por uma primeira atabalhoada tentativa de procurar nas letras aquilo que lhe escapou. Uma mulher numa métrica a pique, musicada pelo coração elegíaco. No plano da utilidade, um acto maravilhosamente risível.
Roberto Gamito
28.01.21
E se agora, na desordem da minha mente, ao contemplar de forma animal uma mulher, me metamorfoseasse em poeta? De costas voltadas para a minha biografia, dou comigo a afirmar: Não há mulher, não há animalidade na visão — mas já houve, os livros não me deixam mentir —, não há nada — apenas uma selvajaria postiça ao sabor da respiração, melhor dizendo, uma embriaguez vazia, sem pés nem cabeça à qual o temor e tremor, a morte e a vida, os limites da mão, fazem as vezes das musas, hoje cadáveres destroçados. Viro os meus pesadelos uns contra os outros e assisto, de olhos fechados, à matança.
O coração nunca é uma casa, é um estaleiro naval onde a memória coordena as entradas e saídas dos nomes.
Nesse lugar de chegadas e partidas, assolado pelas mais altas fantasias, que é como quem diz, no limiar da razão, aquele que reflecte no porquê da respiração acelerada descobre que já não há futuro. Trânsito de navios-fantasma, fora os nomes que à época eram prementes e se afogaram no esquecimento entretanto.
A paixão abre à minha frente um cadafalso que me atrai e é familiar. Preparo-me para a morte como das outras vezes: coração nas mãos, cabeça no cepo.
O artista é aquele que espera enquanto foge. É um simulacro de pensamento, típico deste século a cair aos bocados.
Como escreveu Georges Bataille, é necessário ter coragem e teimosia para não perder o fôlego.
Sem ar nem vida
cheguei ao teu corpo
noutra língua.
Em sucedendo, mesmo que seja pela via da imaginação, o gemido enfatizador dessa fantasia pode, se alcançado o cume da liberdade, ser o prelúdio de uma obra capaz de vergar estantes.
A simpatia polivalente no mundo dito real (a indignação nas catacumbas) põe certamente em evidência a nossa impotência em nos transcendermos. Olhamos à volta, como um animal apático após matar o rival, sem que nada nos desperte o interesse. Abandonamos o cadáver pondo para trás das costas o acto que lhe deu origem.
Fora da esfera da carnificina, regresso à arena onde as palavras que não disse me mordem e esbofeteiam e cabeceiam. Afinando o quadro para o espectador míope, posso dizer-vos que sou o homem nu ao redor do qual as palavras que fui incapaz de dizer na altura certa — palavras mágicas? — cospem em coreografias de humilhação o meu fado. Os livros, uma vez que se devoram uns aos outros, são de espécies diferentes, de forças distintas. O mesmo sucede com os dias. Há dias capazes de me engolir de supetão, enquanto outros se contentam com carícias.
Não existe, do Homem feliz àquele que é devorado por ideias suicidas, uma relação sincera com o mundo. Inevitavelmente, aos olhos de um sábio, somos crianças embeiçadas por paraísos artificiais, os quais, a cada ano, são aperfeiçoados para que não nos apercebamos da patranha da miragem. De pé ou de joelhos, o Homem, esse simulacro de Atlas, deve recusar-se a ser visto como uma coisa. Nem que dê a vida por isso.
Roberto Gamito
27.01.21
O activista de sofá é, por assim dizer, um santo canonizado pelas redes sociais. A sua maior obra é uma compilação de tweets num tom estúpido-bélico em torno de um trend qualquer que bateu forte em 2019, graças ao qual é hoje figura de proa na arena da sarrafusca verbal. Onde o comum dos mortais vê uma indignação, o activista de sofá vê uma vaca de tetas avantajadas a precisar de ser ordenhada.
Se lhe pedem ajuda para algo, declara-se, jurando pela alma do filho que não tem, indisponível, alegando falta de tempo por estar, alegadamente, envolvido numa constelação de causas.
Nunca toma a dianteira numa acção. Afadiga-se com paleio importado, coisas que leu de viés com olhos remelentos e hoje, sem resquício de vergonha, assume-se como uma sumidade em mil e um assuntos. O Leonardo da Vinci das causas. Sou um Homem, nada do que é humano me é estranho, diria, se conhecesse Terêncio, escravo tornado comediante.
Amigalhaço da verdade, segundo o próprio. Embora compincha da paz, resvala sempre para o lado negro da força. Sempre que pode, deseja a morte a um humorista por este, veja-se bem a ousadia do bobo, ter escrito uma piada.
Citando Terêncio mais uma vez, a verdade gera o ódio.
À falta de melhor designação, contentemo-nos com esta: são os alunos mais prolixos da escola do ressentimento.
Se fazem um boa acção, amiúde por descuido, proclamam a façanha a alto e bom som. Habitualmente, pronunciam a palavra empatia dez mil vezes por dia, qual mantra.
Narcisos competentes, fanáticos do umbigocentrismo; dos outros não fazem nem ideia. Paladinos da literalidade; para eles, a metáfora não passa de um mito, a ironia, um empecilho, a comédia, um alvo a abater. Repudiam generalizações, a menos que lhes favoreçam as narrativas. Lêem os melhores autores, mas só quando estes batem a caçoleta, no resto dos dias devoram memes requentados e não reconhecem escritores, ensaístas e poetas. A sua ração literária é à base de legendas saloias que acompanham as mamalhudas no Instagram. São meninos para transformar qualquer diálogo numa província inabitável. Nas suas discursatas, fazem das vítimas gato-sapato se estas têm a intrepidez de os contradizer. No twitter, atiram comentários para o ar num tom dramático e vão colhendo fiéis para as suas fileiras. Dura pouco, dado que para o narciso o outro é apenas um entrave para a ego insultado.
Os desnorteados tiram notas para, chegada a altura, enlouquecerem como deve ser.
Roberto Gamito
22.01.21
O cambiante erótico desagrilhoa a fera, enaltece o Homem no reduto onde as palavras se evaporam e se precipitam como gemidos. O problema não resulta da sublimação da legenda. O quadro, o qual oscila entre o império do pó e o império do olhar, permanece ilegível. Num ápice, o retrato animaliza-se, acoita-se atrás da paisagem pintada virtuosamente pela fome, pela sede, pela mão do pintor. Suspiro, oráculo sucinto. Narrativa, a cantiga prolixa de um queixume mais ou menos sub-reptício. Alcanço a orla do precipício com a cabeça vazia. Nisto, saboreio a altura de olhos fechados. O perigo não resulta desse pensamento. A tautologia da expressão “pensamento crítico”. Adultero a queda graças à memória. Em acontecendo, o grito despertaria um a um os demónios.
Convenção começando na língua e acabando na carne. Um certo indivíduo, cujo nome ninguém recordará, compara alturas de cadáveres mitificados pelos livros. Silhuetas povoando as paredes. A mão sorteando a forma. A pupila procurando o nome na sombra.
Roberto Gamito
21.01.21
Tenho uma sorte, que é o meu físico, um físico de bisonte bisonho que engorda sem dificuldade. Em tempos normais, prescindia facilmente desse dom de ficar com a pança avantajada ao mínimo petisco, no entanto, em tempos de confinamento, dá-me jeito: é um reservatório infinito de desculpas para ficar alapado no sofá qual cadáver esfomeado. Volvidos uns dias fechado em casa tudo perde o sentido, desde a vida até às idas ao Tinder. Que razão há para ter o Tinder instalado? Nenhuma. A não ser que entendamos o Tinder como uma espécie de caça aos pokémons, pokémons com demasiado vocabulário.
Aliado ao tédio, a nosso pensamento desacreditará todas as crenças, dinamitará deuses, torná-los-á pequenos, babujará qualquer ideia sobre o suicídio num tal ecletismo de parvoíces que alguém poderá pensar, ao cruzar-se com esse raro espécime, que encontrou o poeta do fracasso.
Porém, perante certas coisas é preferível ficar mudo e de asas fechadas. Por mais esquartejado que esteja a criatura entediada pelo confinamento, mais vale deixá-la morrer. É deixar Osíris falecer desta vez.
E a turba que ocupava os dias a propagandear o lado positivo disto tudo? Já se calaram? Eram falsos positivos? Segundo eles, devemos fugir daquilo que nos magoa. Se algo é tóxico, afastamo-nos. É isso que tenho feito: afastei-me do mundo, que está tóxico. Pus um aviso na porta: “Mundo, não és bem-vindo”.
Roberto Gamito
20.01.21
Os primeiros dias de confinamento deixaram-me mentalmente extenuado. Já não pico o ponto no posto de trabalho do pensamento. Das duas, uma: ou trepanaram-me o cérebro enquanto estava a ver um daqueles programas da tarde que nos anestesia ou alcancei o último patamar de burrice.
Acabou-se tudo, ligações entre temas, entusiasmo galopante face a assuntos que nos insuflam cérebro e coração, genica para quebrar o casulo do marasmo. Para uma pessoa se dedicar à vida contemplativa enquanto estamos engaiolados é preciso ter vocação, e uma certa dose de alheamento, quer dizer, é preciso saber aborrecer-se com toda e qualquer merda e não passar cartão ao que o mundo nos sussurra. É impressionante como a aura de encanto que as séries e jogos e demais quinquilharias onde torramos a vida se desvanece assim que somos como que impossibilitados de sair à rua. Aquela árvore à frente de nossa casa, cujo nome desconhecemos, interessa-nos pela primeira vez em décadas. Passámos por ela milhares de vezes como se ela não existisse e hoje, do lado de dentro da gaiola, dávamos tudo para fruir da sua sombra. Seja para uma leitura, seja para repousar na sua sombra, qualquer plano nos parece hoje apetecível.
O leitor está a gozar de uma bela vista para a catástrofe. Não sou daquelas pessoas cheias de não-me-toques, embora a expressão tenha adquirido novas e perniciosas conotações graças à pandemia; pelo contrário, deleita-me o circo das pequenas coisas, a saber: a sombra de uma árvore, uma brisa de nos afagar a alma, pássaros a dar de graça o espectáculo da sua existência e um livro ou uma conversa interminável.
Roberto Gamito
19.01.21
Ontem, isto é, no ano passado, era possível beber uma imperial sem complicações de maior. Tenho saudades desses tempos em que o espectro da baboseira ia muito além da política e da pandemia. Hoje, isto é, um dia qualquer, sinto essa ausência como quem carpe a morte de um familiar.
Rodeado de um enxame de maltrapilhos e engravatados, o taberneiro ia servindo imperiais, bifanas e amendoins de olho fechado, qual relojoeiro do boato. Tenho simpatia pelos taberneiros. São pessoas com conhecimento para fabricar uma bomba atómica com os restos dos petiscos enquanto palitam os dentes. E isso merece uma estátua. Após vários anos atrás do balcão, que é como quem diz, quando já tomaram o pulso à atmosfera da taberna, bailam graciosamente entre a máquina de café, uma questão de política externa e o facto de o António dos Caracóis ter voltado para a mulher, a qual, segundo as más-línguas, é a furgoneta da vila. Ao início, como se fizesse parte de um ritual, o recém-chegado à taberna é merecedor de um bom-dia. Com o tempo, a relação evoluirá para um “onde é que tens andado, meu cabrão?” Bons dias personalizados, imperiais como deve ser, um pires de amendoins e por momentos o homem, outrora esfalfado, existencialmentne esfrangalhado, quase fareja a felicidade. Não podemos desejar muito mais que isto.
Realizados todos estes trâmites destinados ao estreitamento de laços entre a fauna da taberna, recuperam-se temas antigos e os convivas entregam-se à filosofia das minudências num tom exaltado, próprio dos apaixonados. Espero ansiosamente para que estes tempos áureos regressem.
Roberto Gamito
18.01.21
A vantagem de escrever um texto sobre as razões que me levam a achar que sou estúpido — concedo, tema mil vezes adiado, mas de hoje não passa — é a de não ter de me dar ao trabalho de explicar os pontos como se fosse uma investigação filosófica. Mal me abalanço para vos comunicar a minha estupidez, já vocês a receberam como verdade absoluta. Assim dá gosto. É curioso perceber que, no tocante a este capítulo, a nossa ligação é perfeita, digna de uma relação burilada pela paixão. Assim que acabo de pronunciar “Sou es…”, vocês, leitores ávidos de participar quando é chegada a altura de apoucar o escrevinhador, concluem sem enguiço “és estúpido, sim, nós sabíamos”. Embora a franqueza sem indício de hesitação me magoe, uma coisa é eu dizer que sou estúpido, outra é ser reconhecido como estúpido por uma multidão de desconhecidos — é assim que as refregas de tasca começam —, reconheço que o que conquistámos, a capacidade de ler a cabeça do outro, deve ser preservada a todo o custo.
Não obstante a estupidez me caracterizar abundantemente, sou inteligente nas horas em que ninguém nota e em labutas que ninguém passa cartão. E vocês dir-me-ão: “Mas será isso ser inteligente, Roberto?” Não vos consigo responder, neste momento estou na minha fase estúpida. Fora de brincadeiras. Já tive a oportunidade de assistir a episódios estúpidos, discursos estúpidos, atitudes estúpidas, pelo que, estúpido como sou, bebi inspiração em todos essas, digamos, disciplinas. A única coisa que peço é que respeitem a minha estupidez. Se não vos fizer confusão, consintam que eu filosofe pacatamente sobre o destino do Homem numa mesa de café. Não vos peço mais nada. Quero ter condições para me dedicar à tarefa de não dizer nada com nada.
Estamos entendidos? Óptimo, a próxima pagam vocês.
Roberto Gamito
15.01.21
Suponhamos que o leitor é um preguiçoso. Se assim é, para quê continuar? Não faço ideia. A verdade é que o argumento do leitor ausente não é mau, mas falta-me energia para o desenvolver. Para ser sincero, estou-me nas tintas para o leitor. Fui ríspido? Sim, mas provavelmente o leitor desistiu na primeira linha e prosseguiu em direcção a territórios mais agradáveis como as redes sociais, onde a indignação prospera.
Daqui a pouco, e prosseguindo neste tom enfadonho, ainda vamos — vou, dado que não posso contar convosco — dissertar sobre a solidão e em como ela, em certas condições, pode frutificar em algo maravilhoso. Contudo, não são horas para falar de coisas tristes. Aliás, diga-se o que se disser, escrever é um trabalho solitário.
No limite, a escrita só gera amizades postumamente.
Ironicamente, o escritor morto é uma criatura estupidamente sociável.
Não é trágico escrever um texto sobre a preguiça do leitor, esse animal à beira da extinção, e dar conta que tudo desemboca em coisa nenhuma? Talvez o leitor preguiçoso tenha acertado ao ter desistido da leitura. O que há num texto ou num livro que uma relação falhada não possa ensinar?
Qualquer coisa que se possa escrever é puro disparate, seja em torno de temas graúdos como morte e amor, seja à volta de uma gaita de beiços. Independentemente da mão chamada a garatujar as linhas tumultuosas, a incompreensão atingirá excelsitudes. A que excelsitudes chegará a mão que, ao carambolar nos meandros de um amor perdido, ressurgir à tona da pedra pejada de hieróglifos, a rocha frágil da existência, se transmudar num poema breve e incapturável?
Se alguém perguntar por mim, digam-lhe que morri.
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