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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

28.02.21

Tendo-se extraviado por motivos que não ousamos qualificar de estapafúrdios, para que não se diga que nos encontramos a mando de interesses maldosos, Inácio, um homem que noutros séculos arrecadaria sem problemas nem oposição o epíteto de palerma, era um indivíduo que levava ao êxtase massas consideráveis de pessoas quando, lastimosamente, dava largas à sua veia geradora de teorias de conspiração. 

Na volta, era tão-somente uma forma de convívio entre sandeus, uma espécie de bródio no decorrer do qual se tentava perceber o mundo após uma queda num caldeirão de estupefacientes.

Felizmente para Inácio, o terreno nunca estivera tão fértil, pelos menos se a intenção for cultivar nabos. Uma imbecilidade, por mais graúda que seja, que noutros tempos estaria condenada à nascença mal a razão desse com ela, tem hoje pernas para andar. Retrospectivamente, magoa-me só de pensar nas provações e privações a que foi votada a imbecilidade durante séculos, a qual, destituída de membros, pernas e fanáticos, via-se negra para prosperar. A razão, essa sacana cujo fito é maltratar ‘ideias parvas’, via nela uma erva daninha. Afortunadamente, a idade das trevas da imbecilidade terminou; segue-se a idade de ouro.  

Inácio era um circo apto a regurgitar disparates, qualidade que intrigava muita gente, e causava inveja a outras tantas, essas incapazes de aglutinar pessoas ao rés do seu paleio.   

Impando de satisfação, temos o prazer (à falta de melhor termo) de caracterizar Inácio como um endireita. Concedo que é um termo vago, tanto é válido para activistas de sofá, como para fanáticos da conspiração. Ambos são criaturas que tentam endireitar o mundo sem estudos para tal, acabando, o mais das vezes, por escavacar o esqueleto ao nosso planeta. Ao menos sabemos que os destruidores da nossa esfera azul são, amiúde, movidos por um fundo bom. 

Eu, que estou com um pé nessa história meio ficcional, e outro no armário que dá para Nárnia, podia puxar do meu talento (palavra hoje anacrónica) e desancar selvaticamente com argumentos polidos o bigorrilhas do Inácio.   

Na volta, o mequetrefe zombaria de mim, e com razão, uma vez que falamos línguas distintas, seria macaqueado aqui e ali pelos seus seguidores, o combate seria posto em cena pelas mãos dos seus efusivos tragediógrafos e eu seria caracterizado como o mau da fita, o saloio-mor, aquele que se recusa a ver a verdade.     

Eu leio onde os outros rezam, somos de seitas diferentes, incomunicáveis. A pandemia expôs as tensões, esfumou as pontes, exacerbou os palermas. O público, saturado de estímulos, não se afeiçoa a factos, coisas tão desprovidas de pirotecnia. 

Gabo o virtuosismo de Inácio, a mentira é professada num estilo afrodisíaco de aliciar cabeças moribundas. O pão é uma miragem; endividamo-nos para adquirir o maior circo de todos os tempos — o século XXI.

 

Conspiração, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

26.02.21

A vida é uma porta giratória de sonhos e caprichos que transitam entre o passado e o futuro. Aqui, no presente, esvaem-se as fronteiras entre o que sou e o que poderia ter sido, derretem na forja de episódios que se avizinham.

Este prelúdio irá turvar as águas, confundir os papéis tradicionais de quem fica e de quem viaja.

Poderosas afinidades com o desconhecido — perdoem-me o mamarracho linguístico — favoreceram a aquisição de uma máquina do tempo. Namorei-a durante anos a fio e finalmente é minha. Não teve saída, ao que sei, ninguém comprou nenhuma. O consumidor cheirou nela o embuste, a patranha estapafúrdia, pelo que foi uma pechincha. Graças ao desdém da maioria, alcancei a possibilidade da viagem desimpedida de obstáculos. Sou o pioneiro da viagem a quatro dimensões. Creio que mereço uma pitada de respeito.

Sempre me pareceu curta a frase “o presente é que conta”. Isto não implica que devamos ceder à falácia natural de que é tudo é igual ao litro ou interpretar este inédito desabrochar de possibilidades como uma valência notável e uma inevitabilidade inerentes à viagem no tempo. Fui exemplo para alguns, todavia continua a ser uma jornada de poucos. Vamos lá despachar isto, eis a frase que gosto de pronunciar no início de cada viagem. Eclipsando as artes tradicionais de palmilhar o mundo, podem designar-me, embora não aprecie por aí além o termo, mas nunca encontrei nenhum melhor, turista 2.0.

Apesar de já ter visto muito e lidado com ideias inconcebíveis para os habitantes do presente, dominando hoje a arte de persuadir cada ser humano no sentido de escolher isto e aquilo, preferi uma espécie de distanciamento. As minhas palavras podiam influenciar o curso das coisas no presente, pelo que, de há uns anos para cá, fiz um voto de silêncio, o qual é retomado a cada regresso. As repetidas viagens obrigaram-me a ruminar a vetusta ideia de Homero presente na Odisseia, o regresso é, de facto, impossível. Quando muito, um arremedo, um simulacro. Tudo nos molda, somos barro nas mãos dos outros e do tempo. Nunca conheci um Homem imperturbável, capaz de fugir com mestria à chuva de mãos que nos moldam sem pedir licença.

Não obstante o lado inédito disto tudo, há aspectos da viagem e até da passeata solitária que se mantêm. Quando diante de portentos naturais, ou grandes proezas levadas a cabo pela nossa espécie, que as há se as procurarmos, embora de longe em longe haja uma facção de marreta em punho que as tenta derrubar, tendemos a relativizar a nossa própria dimensão. Com efeito, cumpridas mil e uma peregrinações aos cumes do mundo e do Homem, sinto-me hoje o mais pequeno dos bípedes. Há muito que me despedi do ego. Se a memória não me falha, há uma canção dos Mão Morta intitulada ‘Há já Muito Tempo que Nesta Latrina o Ar Se Tornou Irrespirável”, a qual serve de legenda para todas as eras. Seja qual for o sítio ou a época, há sempre alguém a pensar da mesma maneira. Para o bem e para o mal, a viagem dá-nos o Homem.

 

Diário de um viajante, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

25.02.21

Sou estúpido, gritei eu numa praia deserta enquanto fazia tempo para o pôr-do-sol. Quatro anos depois, a mensagem está mais actual do que nunca. Neste ambiente de trauma, ansiedade e demais temperos próprios da época, é óptimo quando recordamos sem bloqueios episódios onde, inegavelmente, fizemos figuras de parvo. Em alturas de maior lucidez, a incapacidade de prever se há criaturas dotadas de smartphone nas redondezas seria uma fonte de vergonha e desânimo, sobrepondo-se à minha preocupação de soltar o grito num cenário paradisíaco. De facto, a possibilidade de nos imortalizarem a levar a cabo um episódio degradante fez com que o ser humano, em média, se retraísse. Ou melhor, a nossa necessidade de efectuar manobras dignas de um estúpido foi transplantada para as redes sociais, esse circo onde os Homens disputam entre si o galardão de maior pateta. Por um lado perdeu-se a magia da estupidez no mundo — que continua a haver, mas involuntária — graças ao nosso narcisismo exacerbado, por outro, permite que qualquer um possa ser estúpido nas redes sociais, volta e meia até mesmo sem querer.

E há explicações mais prosaicas: o estúpido evoluiu, mudou de casa, fartou-se do mundo dito real. Por outras palavras, a estupidez no mundo real não gera engajamento. Eis um problema ao qual os filósofos se esquivam. A estupidez no mundo real repele, no mundo virtual atrai. Porquê? Enquanto procuro a resposta, a custo, o Homem do século XXI abre caminho para um novo mundo feito às três pancadas. A minha hipótese é a de que o Homem prefere o estúpido digital porque o meio proporciona o tal distanciamento óptimo para quem anseia sentir-se superior.
A estupidez real, percebo o equívoco do termo, uso-o apenas para atalhar, não beneficia da distância. Habitualmente, estamos demasiado perto do estúpido para enveredarmos pela senda ilusória da superioridade. Lá no fundo sabemos que podíamos estar no lugar do estúpido. Isto para dizer o quê?
Quanto mais conheço as pessoas mais gosto de humoristas.

 

roberto gamito, Mutações da estupidez

 


Roberto Gamito

24.02.21

Como gajo prevenido que sou, trago sempre comigo uma fita métrica, dessa forma posso medir o tesão que o mundo me suscita. Dois mil e vinte um, mesmo para uma criatura que viva habitualmente com as calças enfunadas, é um ano que não favorece a alegria na zona da braguilha. Em tempos de confinamento, os animais de circo terão de permanecer engaiolados nas calças. Desafortunadamente, os malabarismos de carnes cessaram por tempo indeterminado.

Às carambolas dentro de casa, numa coreografia de dançarina reformada e perneta, vagabundeamos de divisão em divisão, amiúde bêbedos, simulando aquela vez em que apanhámos uma piela colossal e calcorreamos às tantas da noite um pomar com as calças na mão.
Derretidos em cima do sofá como quem foi morar para um quadro do Salvador Dalí, perguntamos o que será de nós; o futuro, esse eterno sacana, assobia para o lado. No pino do tédio, fitamos a fruteira de longe e encetamos estimativas. Estimo, dizemos, que estão 4 maçãs, 3 bananas (fora o estimador) e um fruto exótico cujo nome não me recordo. Contamos a olho. A inércia transformou-nos numa lapa, a qual trocou o clima agreste da rocha pelo aconchego do sofá e da mantinha, que sobrevive à conta de Uber Eats e Netflix.
Mas a miopia não é grande conselheira no tocante às estimativas. Pensando melhor, a esta distância tanto pode ser uma fruteira, como um anão vestido de cores garridas a fazer table dance na mesa da cozinha.

O que vivemos fica na cabeça e na cabeça se transforma; percorre, como se costuma dizer, o seu caminho. Com efeito, a memória raramente deixa as coisas como estavam. Para ela, os episódios biográficos necessitam de constante aperfeiçoamento.
Vemos a sua obra, mas não compreendemos a artista. A razão pela qual a memória empreende o que empreende. Será ela míope ou virtuosa? Antigamente, em situações análogas, as musas punham-nos uma miríade de alucinações nas mãos e cabia-nos a nós vertê-las para o papel, qual ritual de exorcismo levado a cabo por um contabilista, sentado e imperturbável.

Não maltrato o presente, nem tão-pouco o passado. Para quê? Eles estarão a dias de se metamorfosearem noutra coisa.

 

às carambolas, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

23.02.21

A internet é um sugadouro em permanente actividade. Um vampiro insaciável, se preferirem. Há muitos Homens prontos a estoirar o seu tesouro com ela — essa puta entre putas. Indignação, trends, coscuvilhices e boatos são mel para os ouvidos do Homem do século XXI. Com efeito, perder um episódio dessa magna novela é perder o comboio, é não ter tema de conversa na hora seguinte. É sentirmo-nos postos de parte do curso natural — tumultuário — dos acontecimentos das redes sociais.

Heróis e sacripantas, uns e outros déspotas em formação, confessam nas redes onde o seu tempo é capturado, com ou sem açoites, uma biografia entregue ao tédio. As estroinices do bicho Homem ficam deslindadas. Toda a gente é suspeita. Sevandijas de todos os calibres pululam onde ficcionamos uma vida excepcional. Fazem-se retratos robot para adiantar serviço, adiantamo-nos ao crime. Em suma, integramos uma procissão de doidivanas inveterados. Não há hierarquia que nos separe em altura ou em qualidade; estamos todos à beira da loucura.

Submissos à gravidade que nos aniquila os sonhos um por um, cuspimos profusamente a nossa história para cima dos demais, sem nunca esquecer os detalhes e os ais. O outro, para a maioria, pouco conta. O outro é um bibelot na equação chamada diálogo. Ébrio de amores por mencionar o óbvio ululante, pouco sóbrio para a vida e para a síntese, que mais se pode esperar de uma criatura de miolo esfarrapado? Eco amiúde vertical, eis o que somos.

Eis o que define este tempo: falar, continuar a falar, sem ter nada para dizer. A frase anterior é exemplo disso. Uma atitude de tal calibre é difícil de entender seja em que época for. E todavia não há ninguém que grite: “Alto e pára o baile, que assim não pode ser!”

Volvidas umas horas após nos termos exaurido por inteiro numa discussão nas redes sociais, damo-nos conta que, além de labregos, fomos estúpidos a ponto de não equacionar o desperdício de tempo. De resto, não deixo de pelo menos sorrir e menear a cabeça perante tal espectáculo de imbecilidade. Com uma agilidade e fantasia assombrosas, a língua de quem se derrama nas redes sociais, para além da expressividade e do conteúdo psicológico, é o retrato deste século de sobras.

 

Internet, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

22.02.21

Não haverá obstáculos morais, legais ou de outra natureza quando o assunto é vistoriar com fins pedagógicos uma mulher bem posicionada no espectro da beleza e analisar o comportamento alheio para fins humorísticos. A mulher bonita em vias de se descascar nunca causou engulhos a nenhum ser vivo pensante.
Os cientistas do engajamento anunciaram a morte ao culto do sexo e do corpo demasiado cedo. Se há coisa que permanece rijo é o culto do sexo,  perdoem-se a laracha.
Há dias escutei, perplexo, uma figura de proa da internet a sair-se como uma frase do género: a política, na internet, é um tema muito mais atraente que o sexo e seus derivados. As coisas que se dizem hoje em dia para manter a suposta aura de superioridade. Ou seja: quem nunca fornicou enquanto dissertava sobre política internacional ainda fode como um bárbaro. Quem não se masturba a olhar para uma folha de Excel é um selvagem.

Ontem, na twitch, a casa dos directos e do improviso, sucedeu mais um episódio da telenovela conteúdo. Uma moça com os seus vinte e muitos ou trinta e poucos pavoneava-se num jacuzzi de um motel enquanto ensaiava uma bebedeira com uma zurrapa qualquer, que também podia ser um champanhe de renome, enquanto se queixava da atmosfera tóxica da plataforma, ao mesmo tempo que era abençoada por uma saraivada de insultos no chat. Para terem uma ideia do que sucedeu em matéria de intensidade. Se os moderadores forem pagos ao ban, creio que podemos estar diante das pessoas mais ricas de Portugal. Mais um dia na twitch, dirá aquele que vagabundeia sem ideia de ficar pelos canais sugeridos pela plataforma. Numa plataforma que censura uma lista infinda de palavras independentemente do contexto, passando a ideia que o plano a longo prazo é transformar os streamers numa de três coisas: mimos, máquinas de gritinhos ou caixas de música de dizer obviedades, é de estranhar ver mulheres que passam horas a gerir o vestido, sem dizer uma única palavra, friso, sem dizer uma única palavra, descendo e subindo a roupa coreografando a tusa de um rebanho de piças adolescentes com ânsias de serem espicaçadas. A província encantada onde o pau feito se cruza com o gaming. Ainda há coisas bem feitas nestes arrabaldes da internet.

Que isto já não nos pareça espantoso, nem sequer digno de menção, evidencia o torpor psíquico que nos deixa apardalados face às transformações ousadas e inéditas de uma criatura calorenta numa plataforma que, para alguns, era rodeada de um halo de pureza. Guardem as explicações e as desculpas, o mundo é um sítio estranho, repleto de idiotas, e não me parece que vá melhorar tão cedo.

Mais do mesmo, sendo que o mesmo atingiu um cume.
Mas se nada de novo aconteceu o que motivou o tamanho fervilhar de indignações e consequente chorrilho de insultos? Essas causas foram, e continuam a ser, inescrutáveis a todos. O mais que posso é aventar uma hipótese grosseira, a qual, com boa vontade, servir-nos-á como ponto de partida para o entendimento do que é estar nas redes sociais por alturas da pandemia.

Podia afirmar, sem exagero, que a causa do tumulto foi o número de pessoas a assistir à live em questão— número astronómico para quem está habituado àquelas lides. O padrão está bem oleado nas redes sociais. Não gostamos, ficamos frustrados, de seguida insultamos e, se isso não for suficiente para diminuir o alvo, organizamos matilhas cuja incumbência é reportar a pessoa com vista ao banimento. Neste ambiente de vale tudo onde a hipocrisia mutante se adapta a um ritmo vertiginoso, e onde os frustrados se organizam de molde a mandar abater tudo o que mexe e onde saltamos de desculpa em desculpa para não irmos ao fundo, onde traçar a linha?

Seja como for, este é o século em que a superficialidade — o vácuo — pode prosperar sem obstáculos de maior. O espírito crítico há muito foi exorcizado pela velocidade destes anos bárbaros. E uma frase fora do contexto, como é apanágio por estes dias: As novas ideias para mudar o mundo já nasceram velhas e cansadas.

 

O peão da twitch, roberto gamito

 


Roberto Gamito

21.02.21

Um génio, a ser génio, é sempre incompreendido; mesmo entre génios. A título de exemplo, Miguel Ângelo apoucava Leonardo Da Vinci em relação à sua velocidade de aprendizagem, Einstein foi escarnecido pelo maior matemático da altura, o qual equiparou os seus dotes na disciplina à de um miúdo na escolinha. Darwin era visto quase como um caso perdido, quando comparado com um amigo, na altura apelidado de prodígio, aprendia as matérias a custo e só se preocupava em recolher bichos. Curioso verificar quão longe levou Darwin essa obsessão. Isolado no seu deserto, cortadas as ligações com as convenções e a língua vigente, o génio pondera o diálogo com a sede, a qual, em correndo bem, será perpétua. Antes da era da vitimização, a definição de génio era aquele que lograva vencer o obstáculo que os demais viam como intransponível; mais: era aquele que se agigantava fosse qual fosse o tamanho do obstáculo.

Num século em que os génios se extinguiram, talvez não seja inútil enumerar as características mais comuns nesse grupo singular, e sempre raro: concentração profunda, imunidade à distracção, semelhante a um transe, e uma devoção ao seu ofício que raia o religioso. Esta devoção remonta ao cristianismo antigo, o qual encontra parentesco nalgumas escolas de budismo. A devoção implica o esmagamento do ego. O artista perde o nome, funde-se no gesto que o singularizou, tornando-se impossível distinguir onde acaba o artista e onde começa a obra. Parece que com isto dá para perceber a razão pela qual os génios se extinguiram: a narcisismo exacerbado e a nossa incapacidade de nos concentramos por longos períodos de tempo. 

Nessa busca desse não sei quê, o génio entrega-se à missão de o trazer à tona sempre que possível, sem grandes ademanes. Há momentos mágicos em que o livre-arbítrio e o Destino se encontram na mesma esquina. Por exemplo quando Coltrane escutou Charlie Parker e obteve o seu momento eureka. Alguns de nós têm uma espécie de pré-voz; andamos à procura de um meio de a expressar, de nos livrarmos dessa afonia, às vezes uma vida inteira. Coltrane entregou-se ao instrumento com tal intensidade que, numa década, tornou-se o maior artista de jazz do seu tempo. Em suma, encontrou o meio perfeito para expressar a sua singularidade, calejou-se no processo durante um período suado em que, abandonando o guião das desculpas, só havia uma escapatória, comum a todos os artistas excepcionais: entregar-se à paixão com as mãos de um possesso. 

Mozart principiou as lides do piano aos 4 anos com o pai, que era professor de música. A sua irmã, à época com 7 anos, já tocava piano. Foi Mozart que pediu para iniciar a aprendizagem tão cedo. 

Graças à rivalidade entre irmãos, que os pais actuais condenam ou tenta suprimir, Mozart superou a irmã no espaço de um ano. Há quem afirme que, ao ver o amor que a irmã recebia do pai por causa do seu talento ao tocar piano é que Mozart levou tão a sério a sua aprendizagem.

Aos cinco anos já compunha as suas partituras. Volvido um nadinha, já o pai levava o prodígio e a filha para tocar em todas as capitais da Europa. 

Pouco tempo depois já o pequeno Mozart sustentava a família. O que faz dele o mais célebre (e provavelmente mais bem sucedido) trabalhador infantil de todos os tempos. Só isto daria para escrever uma crónica. 

Ao crescer, foi dando conta que estava sob o jugo do pai, que o aconselhara a ter um trabalho que, em nomenclatura mais coloquial, poderíamos designar “emprego certinho”. 

Fez várias viagens com o fito de agarrar esses supostos trabalhos certos, uma das quais para Paris, mas em todas o trabalho ficava aquém do seu génio. Era como se fosse uma mão incansável cuja missão fosse a de lhe abafar a voz. 

Ao regressar pela última vez, o pai recordou-o da dívida de gratidão que tinha para com ele. 

No fundo, repetia-se um dos episódios mais célebres do Homem. A família, como se sabe, ou é uma bênção ou é uma maldição. Zeus, Édipo, Kafka, Mozart. A relação com o pai forja o artista. Alguns matam-no, outros, em não arranjando coragem, canalizam o seu sentimento de revolta para a sua vocação.

Para Mozart, o pai era um obstáculo, arruinava a sua vida, confiança e saúde. Nunca queiram saber o que é a cabeça de um artista quando é impedido de se efectivar. O Diabo, esperto que nem um alho, aproveita essas ideias negras que pairam em redor da cabeça do génio de molde a melhorar as condições do seu estaminé. 

Dando o golpe fatal, em 1781, Mozart viajou para Viena e nunca mais olhou para trás. O pai nunca lhe perdoou.

Sentindo o tempo perdido a borbulhar e a fervilhar nas veias, Mozart compôs a um ritmo frenético e, como se em transe, possuído pelo mais fecundo dos demónios ( ou Daimon, se recuar até ao princípio da história da inspiração), reclamou o seu lugar na prateleira da eternidade. 

Resumindo e descendo da altura do génio para degraus mais modestos, o artista, no início, se é de atenção que necessita, em geral motivada por um vazio interior, espera preenchê-lo com o falso e movediço amor da aprovação pública. 

Quando o artista atinge a maturidade, principalmente o génio, a coisa muda de figura. É uma batalha corpo a corpo contra si próprio, obra e artista dançando no mesmo gesto, indiscerníveis, Ahab e Moby Dick caçando-se mutuamente numa peleja sem fim; fecha-se o círculo, pois o caçador faz-se na caça. Um homem com sede não se sacia com palmas nem sequer os apupos lhe fazem qualquer dano. 

Mas já Píndaro, poeta da Grécia antiga, nos havia alertado: “Torna-te quem és, aprendendo quem és.”

Mozart matou o seu Laio, Roberto Gamito

 

 


Roberto Gamito

21.02.21

Larachas, abundantes noutras épocas, essa requintada comicidade que rapidamente resvala com gosto para a boçalidade, essas palavras que se encontram sem tino na frase a fim de apimentar uma vida monótona, momentos em que falsamente nos conjecturamos superiores face aos obstáculos do mundo, o qual continua a maravilhar-nos de longe em longe. Clandestinamente, forjei que tinha dado à luz uma piada capaz de ressuscitar moribundos de supetão. Acabo de te apanhar em descarada mentira, ó bandido, pensa o leitor.

Mas tratemos do assunto que nos trouxe cá. Quantas birras há aí motivadas pela carência de afagos e carícias de natureza mais íntima? Em todo o caso, a comédia e a tragédia acenam-nos continuamente, ao longe e à vez, como se nos conhecessem melhor que ninguém. E eis a piada, vinda sabe-se lá de que recanto da mente, proporcionada por um salsifré de pensamentos, palavras e pontas soltas, desagrilhoando-se do inconsciente e pedindo de empréstimo a nossa voz. Num ápice, o outrora sólido é liquefeito pela comédia. A magia caseira da subversão. Em termos de ganhos efectivos, refiro-me à piada beliscar a realidade, sabemos que vai um longo e sinuoso itinerário. Findo o efémero império do solavanco proporcionado pela piada, o mundo regressa ao que sempre foi. Por mais que gastemos energia a tentar perceber a fragilidade de uma piada, que, ao separar-se da surpresa, cambaleia num bailarico de falsos reacendimentos até à extinção, esta continuará arredia à ideia de imortalidade.

 

Laracha, Efémero, roberto gamito

 


Roberto Gamito

20.02.21

Aprendemos, por tentativa e erro, a tecer as nossas vidas. Ninguém nos ensina a fabricar uma teia em condições, pelo que, ao poisarem nela, os sonhos rapidamente esvoaçam para longe, ridicularizando a esparrela. O fardo de uma vida desprovida de alegria, a qual podíamos traduzir como vida sem norte, sem destino, uma vida de autêntico náufrago. Podíamos afirmar, sem exagero, que o Homem, enquanto bicho acanhado a braços com a sua vida, é o protagonista num palco inclinado, quer vejamos a peça como tragédia ou farsa.

Dessa cisão entre o que foi e o que poderia ter sido irrompe o eflúvio que contamina os passos ulteriores. A ficção sangra e afugenta o futuro.

A inflação da depressão desgastou as relações industriosas com o mundo para lá do ponto de ruptura. Personagem ou o meu retrato?

Os demónios, hierarquizados numa escala de gritos, aguardavam nos bastidores por esta oportunidade a fim de que as suas ideias fluíssem sem obstáculos para o vazio gerado pela depressão.
O suicídio passou a atormentar-me os dias. Condenado à competição perpétua com os cães que me abocanham, qual Actéon tornado veado, reinterpreto a minha biografia como um erro dispendioso.

O fogo dos últimos dias não deve ser consumido cru. Queremos exercer o controlo das nossas vidas, mas o titereiro não consente.

No âmago, as frases desordeiras descrevem, ao chegarem à mão fragmentadas, um sentimento de frustração. Volta e meia renasço. O amor pelas pequenas coisas arruinou a minha experiência.

 

Tentativa e Erro, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

19.02.21

Hesitante, saltitante, quase comicamente indeciso, por ser essa a natureza cambaleante de uma mão aflitíssima que se espraia na folha aspirando ao alívio. Tudo começa a partir de agora, declara um homem esperançoso nascido de geração espontânea. É preciso improvisar umas tangentes na folha para não emperrar. Separados do mundo, engaiolados em casa, os Homens engendram observações imbativelmente exóticas sobre a arquitectura de uma migalha. A pandemia como que nos obrigou a procurar mundos dentro de casa se quisermos prosseguir a senda das garatujas com o depósito da sanidade na reserva. Nomes que nos dão um empurrão, a saber: animais, leão, urso, pangolim, tubarão, alforreca. No fervilhar do poema, cada verso ameaça desdobrar-se num romance, numa nova vida. Ao especular, no alto da minha torre de marfim improvisada, feita de caixas e de entulho, no cume do meu celibato pandémico, sobre o futuro que nos coube, vou, sem surpresa, parar às fantasias onde o corpo desnudo aproveita as delícias de estar vivo.

Num dia bom, sou menino para enumerar todas as coordenadas onde me perdi durante a última década. Será possível escrever ao mesmo tempo que calcorreamos uma estrada de lâminas? Como esmagar o nevoeiro com uma linha? Para o melhor e para o pior, continuo a tentar imitar os pássaros canoros. O desejável seria ter tempo de sobra, passar os dias à espera de um pássaro estrangeiro e não me preocupar com nada a não ser a forma como a ave interrompe o silêncio. Rejeito, ignoro se com as palavras certas, o mito imperante de que o ruído conquistou todos os territórios deste século. Por ora, contentemo-nos com um rol esgazeado de projectos.

Rol de projectos, Roberto Gamito

 

 

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