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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

30.04.21

Neste catálogo de laracheadores pós-modernos, há pouco ou nada que mereça atenção de um olhar mais exigente.
A comédia passeia-se manca pelas frases, a pedir desculpa, em posições nada abonatórias para gente que se autodenomina séria, ora de cócoras ora de cu para o ar, comunicando a sua dor com exuberante espalhafato enquanto guincha qual esquizofrénico o seu génio afonicamente, para gáudio do público semisurdo ávido de um não sei quê, que, no desdobrar do número com ares de comédia, viu assim o seu ego afagado. O tempo dos grandes rasgos já lá vai. O tempo em que a voz tinha o poder de causar um abalo sísmico afigura-se-me, visto à nossa luz, matéria de lendas e mitos.

Acabaram-se os peregrinos, na antiga e talvez verdadeira acepção da palavra, os eremitas do deserto, que procuravam, sozinhos, o seu Deus, o vagababundo, o flâneur. A nossa época é um viveiro de turistas, jogadores e putedo. Eis o catálogo da sociedade, eis o catálogo dos bobos. Desculpem o exagero, o putedo não tem nada que ver com isto, numa sociedade polida não há putedo propriamente dito, não há comércio sexual às escâncaras. Quem sou eu para denegrir o bordel, um complexo habitacional susceptível de atrair "gente de fora", o qual auxilia com alegrias várias e abundantes, haja dinheiro para isso, a economia local.

Ainda como achega: hoje existe uma métrica exigida pela culpa, pelo medo, pelo politicamente correcto, pela visão consumista com a qual abordamos as coisas, pela forma turística de fitar o mundo, pesam-se as sílabas das piadas, quer seja pelo possível dano, quer pelos ditames da literalidade; as piadas são plasmadas com o mínimo de veneno possível, o conteúdo é relegado para segundo plano, é preciso é haver espalhafato e holofotes a dar conta da ocorrência. Uma contradição em termos, se pensar fosse a nova moda. A nenhuma frase é permitido explodir em várias direcções, ser rodopiante, contradizer-se, ser um nada à procura de ser algo. Embeiçados que estamos pela informação, a comédia perdeu a capacidade de ser mágica. De ir de um sítio A para um sítio B com estrondo.

Esta passeata pelo panorama, como direi, risivelmente humorístico que vivenciamos presentemente, como está bem de ver, é, desculpem-me o eufemismo, uma valente merda. E não me estou a referir à passeata em si.
Aqui entra, todo janota e cheio de ginga a personagem de que vos quero falar, José Sesinando. O primeiro contacto que tive com este senhor, ou melhor com a maestria dos dedinhos deste menino do humor, foi, salvo erro, num livro. Sublinhe-se a graçola, num esgar típico de youtuber, com careta à Malucos do Riso 2.0, que é para ter a certeza que perceberam. Foi há uns apitos de tempo que me apareceu, qual cometa, olha o menino a usar expressões de críticos literários a quem falta carne vocabular para descrever o flagrantemente novo, este senhor. O primeiro encontro, ou semiencontro, aconteceu numa crónica de Abel Barros Batista, senhor que tão bem preambula a "obra perfeitamente incompleta", de José Sesinando, recentemente editada pela Tinta da China. Dele, antes do contacto com este canhenho, só consegui ler algumas frases avulsas, algumas fagulhas humorísticas que fui coleccionando em textos alheios. Procurei a obra ântuma durante algum tempo em bibliotecas, em livrarias, em alfarrabistas e em bancas de merceeiro mas, como é meu apanágio, fracassei esplendidamente como gente crescida. Descansei quando, há anos, 3 ou 4 ou coisa assim, li que havia intenção de reunir a obra de Sesinando por parte dessa editora.

Ora, José Sesinando é aquilo que se pode chamar...uma pessoa, que além de ser pessoa, é um filho de Laurence Sterne. Se acreditarmos em Deus, tem pelo menos três pais.
Sesinando só precisa de um mísero pentelho para fazer a frase dançar. Onde os outros estacam por escassez de meios, Sesinando baila madura e doidamente. Do pai Sterne herdou a sabedoria de intuir que para se falar de alguma coisa podemos ir por veredas marginais e, se for preciso, nem tocar realmente no assunto. De Deus herdou a habilidade de parir milagres. Um valente pirete literário às formas convencionais de vistoriar as coisas. Dos poetas malditos, aprendemos que podemos ser mais humanos a falar de inumanidade do que a falar de humanidade, é preciso é haver mãozinha para isso.

Muito mais haveria a palrar sobre Sesinando, e, como Sterne, tentei, através de uma coreografia de tangentes, passar-vos a vontade de dançar que se apossa de mim ao ler este grande escritor de humor. O que importa nos livros é a vontade com que ficamos para fazer algo após a sua leitura. Este livro, ou esta reunião de livros, tipo bíblia, cumpre eximiamente a sua tarefa. Obrigado, José Sesinando. Sei que estás morto, mas o livro só me chegou agora, por isso espero que me perdoes o agradecimento impontual. Obrigado*.

*Perdoa-me a escassez de notas de rodapé.
 

José Sesinando, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

30.04.21

É torturado em perfume numa cama de memórias. E nelas nos deitamos como em cruzes. Isolado, apartado das convenções, o eremita cozinha o jejum da cintura para baixo. Corta!

Opondo a barreira da convicção contra o rio caudaloso dos dias, as ficções, umas levadas em ombros, outras em estandartes. Eis que sobraram os esqueletos das ideologias pretéritas. É preciso ter dente treinado se o fito é consumi-las. Corta!

No labirinto da mente, imola-se uma ideia desesperada. A sua correria pelo dédalo alumia os cotovelos do mito. O rosto da morte é revelado nessa fuga vã. Corta!

Foste perdendo o gume, nem pode dizer-se que te apanhe de surpresa, concordar com tudo, seja veneno ou perfume, carne ou osso. Personagem, tu reages às coisas de modo bastante bizarro. Peço desculpa, não sobreviverás à carnificina das emendas. Corta!

Agora atraiçoas o menino que foste. Tornado mestre na arte da guerrilha, apunhalaste sonho a sonho a tua vida. Corta!

És já incapaz de musculada dança. Precipício e palco soam-te a sinónimos. Orlas o gume como um desvairado, apoucando a carne.
Cumpridas as leituras, o desembarque de um novo homem. Olhos regressados da faina. Homem a braços com um cachalote. Já foi feito. Corta!

Com ou sem alegria, a escrita é um mausoléu. O rescaldo, o somatório de cavaleiros da triste figura. Que bela alhada em que nos metemos. Os moinhos golearam-nos. Corta!

A ideia que tínhamos do pássaro
desmorona-se ao vê-lo empalhado.

Estou grato pela oportunidade de frequentar este filme. Cachalotes dão à costa como se o oceano os regurgitasse. Não me atrapalhem, tenho uma morte à espera. Que cérebro é este por detrás destas palavras? Que mão é esta por detrás da mão?
A língua, mais rebelde que o costume, treina a aterragem na folha no arame farpado. Corta!

Segundo os meus cálculos, a vida ia a meio. Estava lá, mas morta qual cerveja sem gás. É tempo de correr além do casulo do eu e dar aos passos um desígnio. Precisávamos de um período para recobrar o fôlego. Corta!

Submissos, comemos aquilo que não nos dão. Leigos cheios de tiques de intelectual, intelectuais postiços, a última coreografia do pó. Apesar disso, ainda crente na arte. Corta!

Lanço as mulheres que fui incapaz de amar ao fogo crematório a fim de desimpedir os corredores da memória. Eu vi-me extinguir às portas do paraíso. Grande parte de mim foi incinerada por ideias suicidas. A depressão, essa, escorraçou-me da minha jornada. Calcorreei os bastidores de todos os cadafalsos à procura de uma morte que me servisse. Quão imbecil me tornei deste então. Corta!

De relações cortadas com o mundo, careço de forças para propor uma definição alternativa para o amor. Não obstante, tenho as minhas lutas. Aliás, estou disponível para pugnar as altas escaramuças intelectuais. Com efeito, sou o que — ou quem — precisarem como adversário. Corta!

Se é realidade palpável ou construção, não me questionem. Não tardará o ajuste de contas. Admiro qualquer forma de castigo divino. Não escarneço nem desmonto a cruz. Noutros tempos mais inocentes, apossar-me-ia dos atalhos cozinhados pela indignação, tentando o elevador da superioridade postiça. Tudo obedece ao faz de conta. Crianças calejadas na burla. Corta!

Eu e ela? Pouco nos separava de sermos carrasco e vítima.

 

Brincadeiras na cruz, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

29.04.21

Oh meu vão megafone que não magnifica voz nenhuma. Cercado por ideias incendiárias como uma cidade nos tempos do império mongol, G., meu comparsa doutras andanças, fez-me um pedido invulgar. Suplicou-me que o tornasse o mais capaz dos personagens. Recusei-me a prestar tamanho auxílio, G. sempre foi um homem igual aos outros. Estranhei o pedido dada a altura em que foi.

Lá do alto, cuspiam nos meus passos. Queria sair à força do labirinto, todavia ignorava a que divindades recorrer a fim de ser alvo de um milagre.

Da minha dúvida não arredo pé. Apesar de o tempo insistir em brincar comigo, não abdico da curiosidade típica de garoto, a que vê em tudo coisas para brincar. Pudesse eu ser aquele que se atira palavrosamente ao mundo com um sorriso nos lábios, aquele que se está a marimbar para o nexo, o que se borrifa para o geral e para o particular. É preciso beber em memória de cada momento. Cada dia merece uma coroa-de-flores. Companheiros de uma vida.

A dor é certa, é preciso, qual faquir, aprender a beber com uma espada enfiada na garganta. Mas o que é isso se tudo resvalará para o pó? Catapultando prosa venenosa, vou ensinando abutres e hienas a desviarem-se de mim. Por ora, não quero nada com a morte. É angustiante fingirmos que estamos vivos só porque ainda não encontrámos uma morte à nossa medida.

Não sei por vezes o que há entre dois pensamentos. O momento onde o silêncio recua para dar lugar ao suspiro. Quem foi feliz foi-o sob algum juramento e cada vez que se lembra disso percebe quão infeliz foi durante a vida. Invisto a minha prosa contra o outro como quem esgrima. Uma saraivada de golpes no cérebro alheio. Nada surte efeito. Falar com o outro é tão inútil que dá vontade de pôr termo à vida no final de cada conversa.

Despertaram-me o coração do seu sono de 30 anos. Não me peçam que vos detalhe o que há de mágico nesse ritual. É um avançar que desemperra. Quanto ao resto, sei tanto como vocês.
E bato o pé, comunica a personagem. Erra sem destino; ontem era a dança que o movia.

São patéticas as minhas peregrinações até ao nome da minha amada. No lugar dela, um pedestal vandalizado vaga a vaga pela memória. Enquanto a luz não chega enformada numa figura derradeiramente vertical, entretenho-me a retirar o pus da cruz ao sabor da prosa, como quem tira batatas de um pacote.

O tempo é velho, a ampulheta incontinente. O amor é querer o mundo e darem-nos uma caricatura. O amor é querer o bolo e darem-nos migalhas. Suspeito que esta frase não pertence aqui: o beijo é vir à tona dos teus lábios. Eis a minha missão: encontrar pessoas que me impedem de ir ao fundo e tentar pagar-lhes na mesma moeda.

Uma cara antes fechada que, ao receber um amo-te, se abre como uma romã.

A minha voz não presta para levar o eco ao altar. Ali o gigante, além já pequenote. Ah, porra, resvalei para o lado esconso da biografia.

Não gosto de viajar, a minha jornada resume-se a caminhar para mim e não para os demais. Desde aquela temporada na casa de espelhos que tento fugir a essa burla. Por conseguinte, não é de espantar que a humanidade esteja tão desnorteada.

De bocarra bem aberta, assim carnívoro, aprisiono-te no meu sudário de dentes e gengivas. Do outro lado desta história, o Narciso exclama diante do reflexo: vida sensaborona que até dá gosto. Ah, bandido, quem diria — uma piada.

Insipidez com a qual polvilhaste até à medula as pessoas, o trabalho e os dias. Receberam-na como um fermento da nova escola. E eis que o grande nada cresceu, imparável.

Usemos, então, terminologia consumista. Por estes dias é mais difícil encontrar uma ideia que queiramos levar para casa do que encontrar uma peça porreira na última semana de saldos.

 

Última Semana de Saldos

 


Roberto Gamito

28.04.21

O porco saiu de pronto da boca do capital. Em boa verdade, gordo, na cabeça, uma pena. Corpinho procurando a justiça na balança. Figura injustiçada pelo espelho. Todas as coisas evocam as alíneas da magia gorada. Para remendar os mundos ocultos que levas na ideia, ó aprendiz de demiurgo, procuras feiticeiros afamados. Pretendes que o mundo te saia das mãos.

Tudo o que sobreviveu ao incêndio é como se não houvesse sobrevivido.

O que deveras me impressiona é — pausa para uma mija — saber que não há eremitas a trocar os olhos por uma amizade com dois corvos mui ilustres, a memória e o pensamento.

Embora invisíveis de tão frágeis que são, posso garantir (mas a quem pertence a voz?) que as ideias me coroaram a cabeça. Sou um rei sem reino nem súbditos. Há dias em que somos deixados a sós com uma grande dúvida. Contemplamos o suicídio, desnovelamos os ângulos mortos, tagarelamos com precipícios e lâminas. Letras minúsculas, que não se deixam pronunciar. Fora isso, admiro quando o desentendimento resvala para o afecto.

No peito esburacado pelas hienas, o coração canta o seu epitáfio. Há patetas a acreditar ser possível mudar o curso da guerra, inundando o coração do Homem com um verbo estrangeiro. Ignoro o que pensar sobre isso. Perder-me agora seria ultrajante, alcançar-te seria provisório, ter-te, por conseguinte, uma miragem . Embora descarte a visão da vida enquanto corrida, não nego que há dias, não sei se embalado pela sorte ou pela musas, em que me ultrapasso.

É criminoso acreditar que certas deixas sobrevivam fora da estufa do amor. O que fazer às coisas que nos fugiram da mão senão plasmá-las hieroglificamente na folha? Que os necrófagos tomaram conta da mão, novidade não constituirá, porém, apesar das carambolas que nos entontecem entre a vida e a morte, é vital não perder a fome. Ignoro o que fazer com este tanto que não digo.

O espelho fez-me predador de mim mesmo. Não me perguntem até que ponto pus para trás das costas as convenções do Império de Narciso. Às vezes o olhar é uma guilhotina depois de limpa.

É fruste julgarmo-nos melhores do que ontem. Tudo é vão se descascado o verniz. Não posso deixar de sentir pena do chicote por tido o azar de encontrar costas tão derrotadas.

 

Figura injustiçada pelo Espelho

 


Roberto Gamito

27.04.21

Piparote na língua de pendor magalânico, eco guinando para o lado das causas. Repara: já cá estamos. O nome do amanhã, descobri ontem, é Sebastião Depois.

A minha própria noite já teve melhores dias. Perdeu o juízo. Receio que não tenha resolvido nada de premente na minha vida até hoje. Está bem que faltam umas horas, mas não me parece que o mundo se importe com o meu esforço.

De gatas ante culpa a postiça: eis o retrato do século. Segundo a turba, o deus ignoto apreciará o gesto. Muito aquém de um Homem. Melhor dizendo: é isto um Homem ou uma piada?

Aventurando-se onde a lâmina falha, o poeta avança e guerreia de mãos a abarrotar de letras.
Assim, ó reis míopes, entrego-vos as minhas primeiras impressões:
1) Brindamos sem vitórias para não parecer mal. É embuste atrás de embuste. Porém siga a marinha.
2) O oceano é o único animal conhecido a adorar carne humana, ainda que cuspa grande parte dela. Entrementes, apodrecemos.
3) Transitória mansarda logo logo escaparate. Nova espécie: eremita domingueiro.
4) Cérebro, pequena fornalha onde o milagre do pensamento acontece de longe em longe, se tanto.
5) À medida que a solidão se adensa, engrossa a certeza de que não somos pertencentes a esta história.
6) A menos que estejamos loucos, somos destituídos de nome. Ouvi isto um dia quando ainda não sabia quem era.
7) Homens indomáveis, daqueles que já não há. Criaturas que não cessam a marcha da liberdade nem a pretexto de chumbo.
8) À mingua de ideias, todas as dores são dores de burro. Urge procurar propagandistas para disseminar a mensagem no twitter.
9) Com o ouvido destreinado, papagaio e poeta, ruído e canto equivalem-se. Adenda: a ninguém ocorre parar para apontar as diferenças. O Inferno do mesmo.
10) O coração, lá nas voltas dele, corria em direcção a não sei quê, imitando o gesto da viúva que entra em casa com a certeza de que vai encontrar o marido novamente.
11) Pressenti-lhe na prosa o sossego, na poesia, a fúria. Puxei fogo à proximidade e entreguei-me de corpo e alma ao outro lado da vida nova.
12) A esperança nasce quando fitamos o magnífico semblante de quem esteve ocupado numa bravata existencial e saiu por cima.
13) Com ou sem metamorfose no pêlo, sempre há quem te veja doutra forma.
14) No cabo dessas andanças, acabamos por largar tudo e sonhar com o regresso. Ficam por saudar os lábios que nos curaram quando estávamos mais quebradiços.
15) Mesmo perto, enroscado em corpo alheio, soletrando as mais belas e possantes palavras, ainda assim estrangeiro.
16) Um punhado de sensatez nunca estragou um guisado.
17) A tristeza de querer agarrar o mundo e não ter mais que duas mãos e um desejo. Provavelmente a prova de que o mundo está entregue a catraios. Não há meio de o Homem crescer.
18) Tudo é vão mesmo quando dura. Dica meio útil: não ser merceeiro, não acrescentar peso fictício às coisas.
19) Nos bastidores da cidade, piscina entregue a mosquitos e sapos, o progresso e a sofisticação que não deram em nada. Em boa verdade, exibem o seu avesso. Ao menos a montanha pariu um rato. Não é fácil afastar a ideia da esterilidade do progresso.
20) Sabedoria popular recolhida em dias de copos. O que é bom nunca amargou; porém, após começar é comum o caldo entornar-se.
Uma pequena nesga de perfeição bem regada.
21) Independentemente das tuas coordenadas, a morte não dista muito daqui.

De resto, aprecio o intervalo onde a imaginação me engrandece e me faz transbordar da vida minúscula. E isto é só o começo. Uma vez desmantelado o paraíso, os problemas nascem como cogumelos.

Piparote na Língua, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

26.04.21

Esta, amigo ou leitor, é a última carta que escrevo ao meu passado. Homens sofisticados, no papel inteligentes, correndo sem plano atrás dos seus sonhos como quem persegue ficções. Que a vossa interpretação dê uma revolução de pendor incendiário. Que este tempo sentado na universidade nos dê um canudo telescópico para ver além do desemprego. Ontem amigos, hoje adversários. Divergiram, mantiveram-se fiéis à doutrina da repulsa. Atracção ou repulsão, a distância dita as regras. Átomos cheios de auto-estima.

Na folha, posso magnificar o grito até ao infinito e ensurdecer o cadáver de Deus. Neste Natal perpétuo desmantelamos presentes e rompemos laços a um ritmo que diria desaconselhável. O nome, seja ou não celebrado na festa da ascensão ou no festival da queda, será estraçalhado por abutres. És um merdas incorrigível, dir-te-ia se te aproximasses de mim. Calculei que um insulto ficaria bem aqui nesta relação finalmente amadurecida.

Olheiras conquistadas a custo, foram muitas noites sem dormir. Para não me matar, fui obrigado a arranjar um mundo em cima dos joelhos. Atrás das minhas costas, de nariz empinado, a turba partiu rumo à eternidade pelo atalho mais pisoteado da época.
O pó como que se riu. À mesa, garfadas sem intervalo
de molde a entreter o enfado e a solidão ruinosa. Estamos perante um esboço que não consente o apuramento. Sendo assim, contentemo-nos em pagar mais uma rodada aos demónios da hesitação.

Sem norte que me ilumine, cheguei a casa sem vida
despedaçado como um cadáver caído de uma falésia.

Necessitamos urgentemente de uma torção luminosa. Respiramos de alívio, renovamos o contrato com a rija húbris. Risos.
Só a carne — refiro-me ao pensamento —, há que censurar a salada mental ou, imagine-se, receber de braços abertos a beleza hoje fora de moda de ficar sem palavras. A vida interpela-me sem que eu tenha mão que a agarre ou escreva.

Na boca dos outros, sou resumo medíocre. Faltam-me as palavras para argumentar, os meus lábios, por mais que tentem ou acertem, são incapazes de pintar o meu retrato.

Fecho os olhos
ponho o meu coração para ver ao longe
tentando perceber a duração do amor.

Merda, cedi ao facilitismo. Regressemos sem medalhas ao nevoeiro prolixo.

Sou uma floresta em chamas, eu próprio, enquanto animal, fujo de mim. Bando de estorninhos em mutação. Quebra-se-me o fio de raciocínio, cai a ideia funâmbula. No solo, diminuído pela queda, dou três passos para trás, diminuindo as parangonas. Receio, e já não é de agora, que a vida não seja senão uma correria em círculos no centro da qual uma carcaça postiça nos seduz. Um engodo bem trabalhado pela ausência.

Do outro lado da história, a crueldade de abrir a boca para não dizer nada além do óbvio. E nós festejando em círculos de coristas. Cada refrão uma espécie de verdade. Sabes que mais? Isto é uma crónica e não é, conquanto estimes a deambulação espaventosa do escriba. Mas tudo isto aconteceu na primeira parte. Na segunda, contentámo-nos em segurar a derrota. Aventurar-me-ei um pouco mais? Deixo o peixe levar a corda ou começo a investir contra ele?

Terminemos por agora. Eu estou destroçado qual poeta que perdeu a mão no seu último poema.

 

Artista sem mão, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

23.04.21

Exagero na prosa? Acaso te referes ao alferes nos halteres? O taco taco a taco com o cassetete. Lince, tigre, homem inteligente, isto é, animais a caminhar sem medo para a extinção. O escritor avesso à depuração; no poial da década, o ruído a superá-lo dando às perninhas. Mão, versátil instrumento de captura. A interpretação rude da fuga. Munido com a inspiração, o vate do século repete sem maestria o papagaio, trocando as voltas à cotovia. Quem matou o canto desta vez? Fracasso num tríptico soluçar. Rosácea novelesca logo comentada. Prolifera a legenda. O silêncio faz-se sempre acompanhar de muletas inúteis. Na fronteira da província da metalucidez, os moços de recados eram ensinados a cuspir sem ganas nas convenções. Uma catanada nos gatafunhos: eis o bálsamo — outro embuste. Ao relento, lentos relatos sobre os regatos outrora povoados de histórias. Frases humanizadas graças à repetição, frases miseráveis todas sangue, suor e desgraça. O desequilíbrio padronizado segundo a época e a moda. Onde posso eu pousar este verbo em brasa? Corpo estacado na cadeira, mão migratória, uma mancha de texto qual bando de estorninhos. Mais um degrau aéreo na abstração. Alimento-me de ventos e labirintos. Um suspiro de perna curta, de pronto apanhado na curva pela garra predadora. Afobados, furibundos, de entaramelada convicção, as criaturas em farrapos. Os pintores vomitam face a tão sinistro retrato.
Mescla domingueira, engalanada para posar sem ousar. O Homem está morto. Anuímos em uníssono e prosseguimos sem soluços o banquete opulento. O pelintra versado no engano — perdoem-me, este é de outro quadro, não pertence aqui, é um estrangeiro à procura de oportunidades. Já está, já está. A vida? Não está, não está. Trabalhemos com o que temos.

A tempestade na língua não cai do céu.

 

Mão migratória, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

22.04.21

Marufle, tela sobre tela. Dias em cima de outros dias. Um retrato corpulento encimando o engano. Gostaria de saudar o inferno numa língua vera, sem arrebiques nem venenos, uma língua só luz capaz de competir em altura com as chamas perpétuas.

Fui inventor de uma espécie de funambulismo caseiro, todavia não quero que isto se saiba. Fui assíduo na fogueira quando me torturava. Os meus passos talvez fossem considerados menores, mas aprendi a enaltecer a vida presa por um fio. Despojarmo-nos nas alturas tem o seu quê de sandice. A maromba, caso exista, é o ponto de auxílio, um grão de ficção no qual depositamos fé de que é possível manobrar a morte. Lá no alto, o passo ganha a forma de um verso curto, contundente, sonante e sem resquício de gaguez, quer dizer, um grito. O passo em frente é um afago na cabecinha do norte. A plateia do sopé, aquela cujo distinto pedigree no tocante ao bitaite já nos deu o tanto que esquecemos, prontamente apontará defeitos a quem cambaleia. O que falhou na vida de quem desafia. Enfim, cultores da mediania, do barroquismo entediante, quer dizer, sentimentais fazedores de desculpas. Ainda que o funâmbulo inspire os demais, os seus passos não podem ser exportados, enxertados, desnorteados e traduzidos em várias narrativas favorecedoras deste ou daquele. O homem está sozinho sem ficções que o auxiliem. É apenas um homem de mãos vazias a tentar perceber onde começa e acaba a vida. O homem despreocupado com a farpela, os pés gretados pelo fio, suor e sangue como se fosse um poema de um aspirante a poeta. Pensa: quem sabe, talvez seja possível sobreviver a isto. O homem inocentado pelo passo em falso. O coração acelera na orla da vida. Equilíbrio retomado. Nas alturas, o desequilibrado — o louco — só lá vai com equilíbrio.

 

Marufle, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

21.04.21

A cratera enquanto cinzeiro de um deus maior. Sedação, sedução. O clorofórmio do engate fragilizando o olhar. Na carótida, o beijo, na perna, a garra retráctil. Personagem colhendo o seu discurso nas sobras de um guião. A torneira calcinada, o protótipo de felino no papel. Mesclam-se dilúvio e incêndio.

De assíduo a ausente, serpenteando entre as armadilhas e engodos, o homem feito cobra sobrevive com a língua intacta.
Nome tirado a fórceps de uma mulher moribunda.
Rajada inclemente de grãos de areia. Mais um ciclo na ampulheta.
A distância e o esquecimento inoculam o gesso. E no entanto, ela move-se.

Febril e irrequieto no horário de trabalho, homem-estátua à hora de ponta. Lamaçal indecifrável do qual extraímos diamantes. Muleta linguística, implante no desnorte. Dias pretéritos expedidos em contentores despedem-se da memória. A vida enquanto vela avessa ao vento. O sujeito desta frase arrecadou, após um íngreme entendimento com a morte, um monte de promessas quebradas.

 

Homem-estátua à hora de ponta, Roberto Gamito

 

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