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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

30.06.21

Foi deplorável ver como as frases mais medrosas se escapuliram à socapa do texto com a chegada dos censores.
Desistiram da pugna, enfiaram-se em pardieiros sem luz nem norte para beberem as suas cervejas inspiradas no sabor do mijo.
Quanto às oportunistas, mais expeditas que as medrosas, partiram, feitas sanguessugas, em busca do seu cu de ouro.

Aquele que admira coisas ficticiamente altas é um estúpido a abater. Eis a razão pela qual me aventurei rumo a mares jamais vindimados, com o mais barrigudo dos respeitos, pondo o oportunista-contorcionista no topo da minha lista, obrigando a vetusta caça grossa a recuar para o papel de figurante.

Enoja-me o hábito de lisonjear e rastejar de todos aqueles que ao pé de um novo holofote de metamorfoseiam em mosquitos. Se, ao resmungarmos numa língua vera a falta de coisa para o coração trincar, aparecesse logo alguém disposto a uma conversa estufada com batatinhas a murro. Em todo o caso, a estatura que o mundo teimava em atribuir-nos, deu-nos muitos e bons loucos.

Éramos sete ou nenhumas pessoas, e acabava aí as semelhanças, a cavaquear sem açaimes com a musa capturada. Como é, filha, vais contribuir para a demanda ou temos de continuar a gritar?

Na ausência de Deus, qualquer candeeiro Lhe faz as vezes. O oportunista apaparica-o com os melhores acepipes que o tempo pode comprar, com vista a uma vida melhor. O lado humano, as células da verticalidade, acotovelam-se no meio das metásteses da servidão até o seu atrofiamento ser completamente irreversível. Se a vida é uma máquina de gerar precipícios, o oportunismo é uma máquina de produzir quadrúpedes sem coração.

Oportunista-contorcionsita, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

30.06.21

Não gostei da atitude da divindade. Encarreguei um amigo mútuo de comunicar a minha decisão ao númen da forma mais amistosa possível, dizendo-lhe que tinham surgido perturbações insanáveis na nossa relação e era impraticável continuarmos amigos. E foi esse momento que fez a luz desabrochar.

Fui assaltado por recordações dos velhos tempos, tempos deliciosos em que as horas passadas a conversar sabiam a pato.
E agora, quaisquer que sejam os intérpretes que venham a contribuir para esta mixórdia de chatices, permitir-me-ão que me gabe que eu, pelo menos, segui a minha vida como se nada fosse. Ênfase no nada.

A propósito: como alguns leitores são mais lentos de miolo, posso também dizer-vos que isto mudou a forma como eu me relaciono com o mundo. Antes de tomar a decisão de pôr termo a esta relação espinhosa, consenti que o azedume tomasse conta de mim. Por esses dias era comum ver-me no campo a dar pontapés nas flores, como que me vingando na obra perfumada do Criador.

Isto é sempre a mesma merda, diz um beduíno ao deserto. O camelo aproveitou a pausa para esvaziar a bexiga. A sua pequena contribuição no sentido de transformar o deserto num oásis.
Tal ofensor é, no que à etiqueta diz respeito, um palhaço extremamente enfático e inútil. O deserto manteve-se imperturbável — está feito um adulto. Em tempos não muito recuados, ter-lhe-ia brindado com uma tempestade de areia capaz de lhe pôr os olhos a pedir perdão.

Prostituta: Metia-a na boca com tanta elegância, que acabei por lhe conquistar o coração. Chorei quando me contaram, sou um romântico intratável.

A única inovação que admitia na escrita era o estilo avalanche, ao qual se entregava com grande entusiasmo. O objectivo: soterrar de supetão o que há pouco se pavoneava.

Embora não seja preciso especificá-la de tão óbvia que é, a moral desta história é que há uma caterva de coisas desagradáveis que, em sociedade, somos obrigados a engolir. A sociedade, deuses inclusos, é um monstro de mil e uma pichas ávidas de ejacular na boca dos acocorados. Saltemos então de picha em picha de molde a assegurar a continuidade da nossa cabeça.
Já que assim é, façamo-lo com um sorriso.

mil e uma pichas da sociedade

 


Roberto Gamito

29.06.21

Mão: Acorda, dorminhoco, o teu trabalho está por confeccionar.
Há dias, estava eu vencido no topo de uma pirâmide de cadáveres liquidados pelas emendas, uma vozinha veio ter comigo e disse-me: “Quando um homem tem este tipo de animais a habitar-lhe a cabeça é um perfeito disparate tentar escapar-lhe”. Não se volta a repetir, comuniquei-lhe.

O meu nome espalhou-se pelos quatro cantos do mundo e hoje toda a gente se chama Palhaço. Tenho (e por esse dom me congratulo com intermitente gratidão) a capacidade de dividir o mar de lérias em dois. Moisés da intrujice guiando as sinapses rumo à Terra Prometida.

O besugo deixara-me embasbacado; nunca me passara pela cabeça que o peixe tomasse a liberdade de me dirigir a palavra.

Não devemos julgar os palhaços de forma gratuita ou apressada.
Há palhaços relativos e indiscutíveis.

Quando falo de indiscutíveis, refiro-me a palhaços que são palhaços em qualquer cenário, nos bastidores e no palco, na companhia de quem quer que seja, online ou offline, de manhã à noite, do berço até à cova, da embriaguez até à sobriedade e vice-versa, calados ou de língua prolixa, de pé ou de cócoras, cândidos ou de quatro, com ou sem maquilhagem. Os relativos, como está bem de ver, são palhaços em determinadas situações da vida e em determinados contextos. Em suma, são palhaços quando lhes convém. Palhaços interesseiros ou palhaços por vocação: eis as duas tribos.

Palhaços relativos e palhaços indiscutíveis, Roberto Gamito

 

 

 


Roberto Gamito

29.06.21

Morte. Essa que tenho nos braços já não é. O mágico recompõe a mulher cortada com o cuspo das palavras mancas e mágicas. Segundo o mágico desencantado, não vale a pena viver pela metade. Não adianta muito abanares a cabeça — a dança não passa pela negação.

Animais bípedes dotados de armadura. Blindados da cabeça aos pés, sentem-se protegidos das flechas do quotidiano. No entanto, a chuva ácida escarnecerá a bom escarnecer de tanta protecção.

O teu nome, ontem redescoberto pelo gemido, é uma escarpa a pique. Uma certa personagem cujo nome não retive tinha uma relação de amor com a montanha até as mãos começarem a fraquejar. Esperar é a mais dura prova de resistência. O subir ao pé do esperar não passa de um entretém de gaiatos.

A comédia agarrou a gravidade pelos cabelos e fornicou-a por trás. Vocês, hóspedes deste século, fãs do mexerico corpulento, estão autorizados a efabular gradamente sobre o episódio.

Aprendi a dançar perto de explosivos, mas suspeito que não me serve de nada. Ao entrar no mar, perdemos o pé. Cabe-me a mim o destino de garatujar o norte num século arruinado onde a luz vê no holofote um irmão. A minha vocação, pensa o semimessias, deve ser anunciada à paisagem toda cabeças em moldes de grande eloquência. Entrementes, ninguém sabe bem o que dizer.

Amo-te, diz ele. Pois bem, retruca a matemática, gostaria saber em que cálculos se baseia para tecer tal afirmação.

A mão tão prematuramente destilada (oh tão jubilosa tarefa) em verso. Administrar ao branco da folha o correctivo da palavra. O risível raspanete do Homem ao retrato de Deus.

Poder-se-ia acrescentar numerosos exemplos para clarificar que, em tempos de escassez, o homem procura Deus em todas as coisas.
Quando um palhaço brilha no palco, há outro que o amaldiçoa nos bastidores.

Comédia fode a gravidade, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

29.06.21

Tudo o que é eterno é tão antigo que só pode ser ininteligível.
Traduzir o que ao longe se afigura como ponto em pacífico é um acto excepcionalmente ingénuo. Ao longe até o dragão é um ponto.

Cadáver divino, sangue de um vermelho que não existe na natureza. Vermelho de deidade caída em desgraça. Como pintar então este quadro?

Ninguém conseguirá abolir a Primavera, no máximo, adiá-la. Nesse impasse onde a tribo se bifurca em escolas distintas, as flores discutem sobre hipóteses inéditas de florescimento.

Aquele que profetiza é maior do que aquele que fala línguas — Coríntios I. Por conseguinte, mesmo que quisesse, seria inábil em traduzir o meu destino para o vosso idioma.

Ao caminhar sobre gelo fino, o corpo transmuta-se em calcanhar de Aquiles. Seria terrível se a sorte nos abandonasse num momento como este. Rezar seria imprudente, trazer o peso de Deus para uma situação destas é pedir a morte.

A cruz está aqui, só que está por montar. Aquando da crucificação de Jesus, Deus ter-se-á virado para Abraão: “Vês, não é assim tão difícil sacrificar um filho”.

O progresso enquanto algoz cuja incumbência fosse abater homens-estátua. O Homem, segundo ele, está programado para dar o passo seguinte. Tenho receio de domesticar o meu coração no ginásio das tarefas vãs. Amedronta-me ter desperdiçado uma vida a treinar o coração com o fito de se bater mano a mano com as ficções.

Escrever até os ossos estalarem e as tripas cantarem de tanta fome. Seguir a frase de Cioran como uma máxima: “A saúde é uma ausência de intensidade”. Emprestar a vida à folha e contentar-me com os restos.

A cólera é o sino apto a convocar o bárbaro acoitado no interior de cada Homem. É preciso fechar a boca de molde a não consentir a saída do selvagem. Cada palavra é um túnel, um indício da selvajaria que se avizinha.
O homem santo, inexperiente no tocante às possibilidades da maldade, foi atropelado por um zoo bíblico — espezinhado após uma dança de cascos. A morte por um lado, o regozijo dos animais, por outro.

Após a fornicação, é preciso dar uma vistoria aos bolsos da mulher, não vá ela ter-vos roubado o coração. E quem diz mulher, diz homem. E quem diz homem, diz larápio da víscera-mor.

O sonho húmido do déspota é transformar o Homem em pedra, em coisa pacatíssima. Mas até a pedra, bicho em princípio imóvel, tem dias em que resvala.

O abismo e o suicídio não são invenções deste século. Dois terços do trabalho está feito — não nos podemos queixar. Como pintar então este quadro? Negro sobre negro povoado tão-somente por um grito lindíssimo?

E o futuro, pergunta ela, no primeiro encontro. Como falar de um lugar tão fundamental com alguém que acabei de conhecer, responde o homem, destoando da atmosfera. Como pintar então este quadro?

Até que ponto vale a pena passear os cotos num mundo morno?
Salta de cama em cama, qual rã da fornicação. A estranha aventura de coleccionar calor em estranhos. Todavia o coração permanecia adiabático. Será isto o purgatório: a província obtusa onde os hóspedes procuram um resgate há milénios? A esperança, irmã do bem e do mal, permite igualmente a acção e a paralisia.
Em parlapié de taberneiro, a esperança é pau para toda a obra. A ninfomaníaca riu-se.

Sou um ninguém cujas letras não pousarão jamais, sou o espectro apinhado de dúvidas entre o nome e a coisa nomeada.

O mundo? Pois, temos aqui muito por onde desesperar. Versos robustos, inquebrantáveis? Que suspeitos, aqui é tudo de partir, para usar e deitar fora. Mesmo calado não digo nada; trata-se de um silêncio sem grandes pretensões literárias.

Todas as jornadas são demandas em círculos: não logramos fugir daqueles que somos. Como pintar então esse quadro?

Entre o socorro posto em prosa elegante que amiúde nos acompanha a fome de carne e a aquiescência sorridente que legenda o avanço da mão marota, instala-se por vezes um instante onde o impossível é degolado.

O canibalismo é impossível entre os Homens. Cada Homem é uma espécie à parte.

Os dias, fartos da mansidão de outrora, abeiram-se de nós com uma catadupa de tempestades. A tempestade faz bem aos medrosos, escorraça-os do território da dúvida. A mão defende-se como pode na folha, mas nunca está inocente. Será esta a culpa inextirpável sentida nos textos de Kafka?

Para onde virar o holofote da minha atenção se o mundo, na sua copiosidade de mundinhos, reclama a minha vida? Estímulos que me sugam vampirescamente os dias gota a gota.

O papel do escritor — quem vem lá com a prosa desembestada sem o açaime das convenções?! — é quebrar a hipnose da paz postiça. O escritor é o carrasco dos paraísos artificiais.

Carrasco dos Paraísos Artificiais, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

28.06.21

O jogo do Euro 2020 que opôs Portugal e Bélgica relatado segundo o parecer de um taberneiro.

(Segundo a ordem do jogo)

 

O curling consegue ser mil vezes mais emocionante que o jogo de Portugal.

Se eu soubesse que o jogo ia ter este ritmo, tinha convidado o Sá Pinto para vir cá a casa. Levava no focinho, mas ao menos não adormecia.

O ataque de Portugal é como o bêbedo que regressa a casa: pára em todas as tascas.

Espero que não me cancelem, mas o Palhinha tem cara de contabilista.

Grito do capitão.
O jogo de Portugal não dá tesão e Ronaldo acabou de fingir o orgasmo.

Futebol espectáculo.
Finalmente percebo os franceses aquando da invenção da guilhotina. Isso sim era um espectáculo.

Comentador: Cristiano rima com golo.
Camões: Mas quem é este caralho?

Cristiano Ronaldo é como aqueles putos que descobriram os botões das fintas: até se esquece que precisa de marcar golos.

Portugal é um virgem na zona de concretização: só faz é merda.

Isto é espetar dois lá dentro para os belgas se sentirem em casa. Eles adoram batatas.

Hazard do caralho!

Se Rui Patrício não tivesse cortado as unhas, tinha apanhado a bola.

Os remates de Palhinha são de outro mundo. De Marte, que é para onde vai a bola.

A Bélgica se pudesse pegava na bola e ia para casa.

Na cabeça dos jogadores portugueses, é uma baliza de hóquei.

Bélgica, país das batatas fritas, do chocolate e do engonhanço.

Fernando Santos sentou-se no banco da Bélgica, não foi? É tão bom treinador que está a treinar duas selecções ao mesmo tempo. É o "não jogar um caralho" a fazer escola.

Portugal não consegue sair para o ataque? Mas quê? Precisa de pedir autorização ao encarregado de educação. Estou fodido com estes putos.

Pepe é activista vegan — está sempre a molhar a sopa.

Bom jogo de preparação. Mais dois destes e estamos prontos para o euro.

Enquanto o golo não chega, masturbamo-nos com o domínio de bola de Cristiano Ronaldo.

Depois do jogo preciso de ir a um funeral para ver se me alegro.

Os belgas são fortes no jogo aéreo, no chão, a relva atrapalha. Nem que joguem com a cabeça da picha, mas marquem.

Perdemos o festival europeu da monotonia.

BélgicaxPortugal, segundo o taberneiro

 


Roberto Gamito

28.06.21

A ferida ingressa cambaleante na casa de espelhos — uma máquina de produzir seres humanos.

Julgo que há uma suspeição generalizada sobre a mão indómita. E se ela, no pico do seu não querer saber, nos rasga o mundo em dois?

Só acredito na ideia que nasce sem destino. A outra, a com agenda, é um nado-morto, que é como quem diz, como o dicionário nos elucida, foi dado à luz sem vida.

A cólera que lhe habitava o subterrâneo da pele não o ia impedir de tentar ser humano. Ia seguir o conselho do vulto: cantar a horas certas ou a desoras.

Silêncio. Puta que pariu esta deixa, ouviu-se. Minha personagem, estamos a passear-nos no palco da vida o melhor que sabemos, pedia-lhe uma certa contenção. Em todo o caso, tudo se enevoará no porvir.

É a poesia que desencalha deuses, que os impede de morrer na praia, cogita o Diabo numa espreguiçadeira enquanto aproveita o pior que o mundo tem para oferecer.

Ponho tudo o que sou no poema, comunicou o poeta à flor surda, lego aos exegetas a labuta de desempacotar o cosmos.

O mundo não tarda será outra coisa — o melhor é adormecer com a caneta na mão. A escrita é tramada, tanto nos pode conduzir aos píncaros, como ao mais inescapável dos abismos. Se tivesse de adivinhar, diria que a queda está em curso. Outro Ícaro? Não me faças rir. Receio que, desta vez, o nome será outro.

Meu amigo demónio, o que sabe você dessas lâminas ébrias jamais pronunciadas? Não quero, como Satã, criar um incidente diplomático com as luzes. Todavia a situação actual é insustentável. Alguém tem de se chegar à frente de molde a enfrentar o infinito.

Não chore, leitor, veja a situação pelo lado positivo: não há ninguém com quem competir. Deus está morto, o carrasco, que pode ter sido Nietzsche, Darwin, Freud ou um algoz mais humilde deixou-nos a braços com o doloroso rescaldo.

Poema isto, poema aquilo. Cale-se, aceite que a vida o transcende, comunica o psicólogo ao poeta. Nada contra, só gostaria de acrescentar uma humilde adenda às palavra de Simone Weil. Não prefiro infernos reais a paraísos postiços. Reais ou fictícios, prefiro sítios frescos.

Metade deste trabalho vão é consentir que o mundo abalroe a escrita estagnada, o outro é sobreviver ao desastre e obrigá-lo a colidir connosco novamente a conta-gotas.
Há várias décadas que os dicionários assinalavam a sinonímia entre homem e analfabeto. Mesmo que quisesse, não vos consigo dizer onde li tal ideia.

No ano passado, ao folhear o Livro que não li, converti-me ao ateísmo. Já não tenho idade nem saúde para estar de joelhos.

O filho da puta, tal como Deus, é imutável. Alcançou o estado de perfeição no seu ofício, o mundo não lhe pode ensinar mais nada — que inspirador!

Pôs a vida mais baixo e apaixonou-se pelo ruído. O deus cansado viu ali a oportunidade para passar a batata quente a outro desgraçado.

A prosa ferida pela emenda do intelectual de pacotilha, o que nos calhou na rifa deste século de papagaios. Chamámos a ambulância, mas o mal estava feito.

O amor é uma sorte corpulenta que veio para ficar.
Nem pensar que me arrancam daqui, eis-me no lugar onde o norte singra. Levei décadas a encontrá-lo, inventei-o à custa de incinerar noites e eclipses.

Numa das divisões do quotidiano, duas pessoas ensaiavam com ganas as deixas insípidas do costume. A desculpa, o Hermes do casamento cuja incumbência é entregar mensagens lacónicas, era um bumerangue ricocheteando nas suas bocas.

É melhor estar atento às ruas, ao aparecimento dos primeiros peixes-voadores — está no tempo deles. Não se pode pedir mais à fantasia nem os dias.

A determinação regressara-lhe ao olhar para provocar tumulto — musas, daimons, deuses, demónios cirandavam à sua volta. O Homem sem máscara, o buraco negro à volta do qual as inspirações de outrora gravitavam antes do seu último colapso.

A dor estava a escapar por onde podia. Era dor do andar ao olhar.

A noite rebelde, a qual resiste à gaiola da arte, impressiona-me, mas não me amedronta. E todavia. Urge enfrentá-la, não há outro caminho. Primeiro tenho de perceber o que a luz me está a tentar dizer. Dar cabo do canastro aos dias também é uma hipótese.

Escrever é assassinar o universo sem dar muita bandeira.
Escrever é matarmo-nos sem dar muita bandeira. E podia continuar por aí fora se vida houvesse para mais.

O mar desculpava-se onda sim, onda não. Porra, sou incapaz de construir um verso com isto. A sua vida era um compêndio de deixas dos seus filmes preferidos, a sua vida, um filme chamado Adiado Cadáver Esquisito.

A mão, sob a influência de uma paixão recente, arma-se em estrangeira. Ignoro que fogo é esse que povoa a folha de hieróglifos façanhudos. O fogo não veio para cantar nem para criar, veio para destruir. Vem fazer as folgas do Deus colérico.

Actualmente, sei quem sou. E antes? Não faço ideia. O silêncio está a anos-luz dessas xaropadas da arte contemporânea.
Isto é sobre o quê? Isto? Que isto? Sem as certezas, o poema é a dúvida passada a limpo. Proeza ao alcance de poucos.

Em que posso ser inútil? O Homem simulou o Paraíso o melhor que pôde. O que sabe você dessas demandas?, questionou uma personagem assomando-se da gaveta dos textos inacabados. Mal ouviu o guia turístico falar sobre a obra, o Homem percebeu o embuste.

Ia cair até dar, o humor não ajuda ninguém — carece de mãos. Ainda havia nele todas as vozes. Essa certeza desoladora deu-lhe para gargalhar. Há dias, contaram-me que a Esperança é a mãe do Quixote.

O que contarão desse homem? O que escreveu? O que iluminou, o que escureceu? Resta-nos cair com as mãos atrás das costas, não vá a sorte intrometer-se na jornada.

 

Em que posso ser inútil, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

27.06.21

O único ser humano sem aspas que sobrevivera às vagas sucessivas de predadores está neste momento a editar a História da humanidade na sua cabeça. Suspiro, uma palavra antes da emenda, um e uma indícios, sementes de caminhos abortados.

Deus extinguiu-se num jogo de pirotecnia canhestro. Uns aplaudiram, outros assustaram-se. Houve até, vejam bem até onde vai a natureza humana, quem fizesse de conta que não aconteceu nada — o mais fácil. A noite pariu uma ninhada de cegos.

A estatura do gigante começava a dar mostras de querer definhar. Dizer o que se pensa é, antes de mais, um desperdício. Ademais, quem de entre nós saberá dizê-lo e, mais difícil, quem de entre nós está em condições de o ouvir.

Aterrando na mão, o beijo inicia o seu êxodo pela pele. Graças à imaginação, alcançar-me-á os lábios dentro de dois batimentos cardíacos, mais coisa, menos coisa.

É inútil medirmo-nos com coisas pequenas, cartografadas da cabeça aos pés, sem esquecer as entranhas. O fogo, esse, agiganta-se ao ouvir falar da minha fome. Poeta e fogo digladiam-se numa miríade de formas. Ambos peregrinam até à extinção enquanto se desdobram num chavascal de formas. Há quem afiance que o Homem pleno e o fogo homenageiam as metamorfoses plasmadas por Ovídio.

Sem ousadia não há pensamento. Não há passo em frente se a bipedia estiver cabisbaixa. O amor, seja ele um texto ou um deus, refugiou-se numa estória estrangeira. Hoje sou incapaz de o soletrar.

Não sei quantos eus dos que fui sendo passarão o crivo da memória. Ser legião é uma despesa inútil. Do muito o tempo faz pouco.

Reinvento a respiração onde o texto é mais lacónico. Venho ensinar-Vos a desistência; sentem-se e não se levantem por nada.
O discurso caudaloso é o primeiro indício da derrocada.

Ninharias empoladas pelos holofotes nada criteriosos.
As metáforas debandaram, esquivaram-se sem mapa nem norte ao jugo do literal. No pino do desespero, pariram um deserto íntimo — o que me sossega.
As gastas, as cheias de dedadas, refiro-me às metáforas convertidas ao literalismo, foram engaioladas como se fossem bichos sem asas. Vingar-vos-ei com a minha queda intraduzível.

O fogo combate-se com fogo. Tenho um inferno na gaveta, é tempo de o publicar. Usa a carne em tudo o que fazes. Põe a carne toda no assador. A bailarina faz dela — da carne — o que bem entende. Não esqueças de a rodar.

Consinto que os corpos encalhem na cama quando, no rescaldo da fornicação, a realidade nos doutrina chapada atrás de chapada.
Usou palavras que ninguém entendeu — Ele sim o estrangeiro.
Ele, o primeiro Meursault. Recordemo-nos do episódio em que Deus estava inclinado a chacinar o seu povo sem porquê. Moisés foi capaz de pôr cobro ao absurdo de Deus. Daí em diante, a lucidez — ou a razão — deixou de ser coisa que se peça.

Barricado nessa miragem, o estudioso de determinada bolha, diz que o mundo é um paraíso sem ângulos mortos. Disse isto, apesar das dúvidas. As penas e a cera escasseiam. Mesmo assim, urge simular outra espécie de Ícaro. Não tenho tempo para morrer, diz K., ao que R. responde, não demora nada. Num instante fazemos a festa.

Alguém soletrou o meu interior noutra língua, no outro lado do mundo. Eis outra espécie de efeito borboleta.
Eu, adianta outra personagem, venho cá para bombardear as sobras de Deus com versos burilados. Está bem, abelha, prossegue lá rumo ao leite e mel.

Foda-se, não estou em condições de ressuscitar ninguém, as palavras carecem de poder para tal.
Nós, os poucos sem tribo, contra o mundo. Resta-nos enlouquecer para equilibrar os números.

Deus está morto. Choca-me que continuem a malhar no cadáver como crianças à volta de uma pinhata. Feliz ou infelizmente, estamos completamente às escuras quanto à doçura do depois.

Não havendo outra anestesia que não a palavra, a agrimensora de lábios infernais percorre-me, metódica, a cicatriz da alma. A fronteira entre o eu palpável e os eus estilhaçados.
Não vás por aí, vais meter-te em sarilhos, comunica-me uma voz prenhe de lábia.

Desço ao fundo de mim mesmo na esperança de não encontrar ninguém conhecido. Nem aí, foda-se!, estou sozinho.
Ao menos ajudou-me a endireitar a prosa.

O Diabo entrou em mim com mandato de captura. Digo-Lhe que deus não está dentro de nós, mas Ele não acredita.

Vigio a minha respiração à procura de falhas. Sinto que posso morrer a qualquer momento. Foi no que deu andar a brincar os criadores.

O Dinheiro, há muito coroado divindade, intromete-se com a errata: Odiai-vos uns aos outros.

A bailarina cai nos abismos do desespero quando o nervosismo se apossa dela. Quem vem lá para me coreografar a carne? A dor, que pode fazer as vezes das musas na poesia, é uma tragédia na dança. Chega ao rés da bailarina a fim de lhe adicionar gestos vãos a uma dança ontem burilada.

Animal de asas magras. Por sorte, a língua é permeável aos ensinamentos do perfume. Enquanto gladiador, sou uma farsa — estou à mercê do tiquetaque.

Sem mestres, o coração aflito marcava o ritmo da prosa.
Uma mão-algoz-do-nevoeiro avançava na folha sem pedir licença, sem se submeter a porteiros e a convenções.

Ninguém encontrava-se fascinado por aquilo que o homem acabara de erigir da página. Deus estava ali, diante dele, qual cachalote encalhado. Prossigo a dissecação sem maiúsculas. Imaginava-o maior, culpa das ficções, das lendas e dos livros. Esventrá-lo não é conhecê-lo. De seguida, deu ordem aos neurónios para desempacotar os futuros abortados do Homem de dentro do cadáver de Deus. Conseguiu salvar um punhado deles, mas isso teve um preço. Por mais que tente, não consegue livrar-se do cheiro nauseabundo de uma luz caída em desgraça.

Deus, o cachalote encalhado, Roberto Gamito

 

 


Roberto Gamito

25.06.21

Estou meio tonto: a cabeça a andar à roda qual compasso incendeia a folha branca.

A depressão é como um petroleiro naufragado. A maioria das tentativas de conter o derramamento revelam-se infrutíferas. Sou uma mancha de Rorschach se visto cara a cara, a noite, se visto do céu.

Todos calados, não liquidem o silêncio, vem aí o poeta. Não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar mais nenhuma oportunidade de o ouvir simular o voo com a língua.

Ao contrário do rio, a vida raramente corre bem. Não negligencies os sentidos mais obnóxios da jornada. Não descartar a hipótese de alcançar o Céu traçando uma diagonal desinteressada.

Ao lado dos mortos, na página ao lado, o nome dos ressuscitados. Uma página a que regressamos hora a hora, como o animal ao bebedouro. A cenoura subiu ao palco, desdobrando-se numa chuva meteórica de ideias, mas ninguém a aplaudiu. No dia seguinte, chegou a crítica avassaladora: não é carne, nem é peixe.

A pessoa com quem jurei partilhar a vida, comenta a mulher, está a transformar-se num pisa-papéis rabugento — passa os dias a lamuriar-se sentado numa pilha de facturas.

Salvar os incansáveis, os que perseguem dia e noite uma obra.
Eis os imprescindíveis. Condenar à pira do esquecimento os papagaios. É vital alimentarmo-nos das sobras, porém sem alarde. Resistir à tentação de entoar o refrão da tragédia, se a intenção for massacrar o silêncio.

O amputado diz estar confiante na desforra. Desta vez, a lâmina não tem hipótese.

Vi nos círculos de Dante um bosque onde, em tempos, fui colher mãos. Aos saltos, segui, como uma criança desconhecedora da tragédia, com a cesta pejada de mãos canoras. No seio dessas mãos, a mão-mor — a do Diabo. A mão ousada e castigada.

Não há mal nenhum em supor a existência de um gesto idêntico ao que nos escorraçou do Paraíso. Que gesto ousado nos pode expulsar deste inferno?
O meu sonho é este: encetar o poema com a mão de Lúcifer, aquele que desafiou Deus, aceitar a queda, ir por aí abaixo aos tombos pelos socalcos da existência e eis que, de supetão, arrancando Deus do transe da omnisciência, colher do nada uma outra maçã. Principiar Diabo e acabar Eva. Tem de ser isto ou nada: não me sacio com diluições desta ideia.

É preciso ter ideias maduras, grita o louco mascarado de árvore.
O pintor, pouco confiante, lega à parede a tarefa de amadurecer os quadros.

Levar uma ideia ao limite, sair dela como uma cobra sai da sua antiga pele. Ainda não foi esta a ideia que me salvou, porém estou maior.

Faz hoje 45 anos que regressei do nada, comunica o louco enfarpelado de árvore. Há quem lhe chame aniversário, continua.
Isto não é biográfico, é uma ficção.

Sei que queres ser alguém, ó leitor, mas primeiro deves afeiçoar-te ao Ninguém. Ser Ninguém, como nos ensinou Ulisses, pode ser a nossa safa. Hoje durmo no anonimato, bramou o Diabo, está muito calor, não consigo habitar o meu nome.

Nesse mesmo dia, do ângulo morto de um poema de amor, apareceram novos Deuses. Agradecidos que ficámos pelas ideias frescas, comentaram, até nos esquecemos da nossa sede de sangue.

E eis que os antigos surgem com outros nomes. Entretanto, mais cauteloso, arquitecto um passaporte para entrar na vida dos outros.

Alguém fala sobre superar Dante sem nunca ter escrito uma única linha. O louco feito árvore postula: és louco.

Quadros a amadurecer nas paredes

 


Roberto Gamito

24.06.21

O jogo do Euro 2020 que opôs Portugal e França relatado segundo o parecer de um taberneiro.

(Segundo a ordem do jogo)

 

Daqui a uns anos, quando já não houver dinheiro físico, o árbitro, em vez de atirar a moeda ao ar, olhará para as subidas e descidas da Bitcoin.

Isto era giro era ver um jogo entre o campeão europeu e o campeão do mundo. 

Fernando Santos está sempre com aquela cara de quem perdeu três filhos na guerra.

Levou pau, mas o árbitro mandou seguir. Momento patrocinado pelo Grindr.

O jogo está tão parado que daqui a pouco temos um foco de dengue.

Renato Sanches trabalha no mercado financeiro. Ora ganha, ora perde...bolas!

Há 15 anos que o Moutinho anda a ensaiar estes remates de fora da área.

Golo da França.
Guarda-redes para um lado, vitória de Portugal para outro.

O Palhinha não pode estar ao pé do William. O William, que é uma tartaruga, pode sufocar.

Segundo golo dos franceses.
Portugal com o golo da França transformou-se numa baleia. Morremos na praia.

Última hora.
A selecção portuguesa está a recrutar treinador. Podem enviar currículo para FernandoSantosÉoCaralho@gmail.com.

Sofrimento e morrer na praia. Não percebo como é que o jogo de Portugal não está a passar na cmtv.

2-2.
Por mim, Cristiano Ronaldo ficava logo na marca de grande penalidade para marcar o terceiro.

O futebol são 11 contra 11 e no fim empata a Alemanha.

Aquando da substituição de Renato Sanches.
A saída de Renato de Sanches foi patrocinada pelos ctt.

Portugal-França segundo o taberneiro

 

 

 

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