A ferida ingressa cambaleante na casa de espelhos — uma máquina de produzir seres humanos.
Julgo que há uma suspeição generalizada sobre a mão indómita. E se ela, no pico do seu não querer saber, nos rasga o mundo em dois?
Só acredito na ideia que nasce sem destino. A outra, a com agenda, é um nado-morto, que é como quem diz, como o dicionário nos elucida, foi dado à luz sem vida.
A cólera que lhe habitava o subterrâneo da pele não o ia impedir de tentar ser humano. Ia seguir o conselho do vulto: cantar a horas certas ou a desoras.
Silêncio. Puta que pariu esta deixa, ouviu-se. Minha personagem, estamos a passear-nos no palco da vida o melhor que sabemos, pedia-lhe uma certa contenção. Em todo o caso, tudo se enevoará no porvir.
É a poesia que desencalha deuses, que os impede de morrer na praia, cogita o Diabo numa espreguiçadeira enquanto aproveita o pior que o mundo tem para oferecer.
Ponho tudo o que sou no poema, comunicou o poeta à flor surda, lego aos exegetas a labuta de desempacotar o cosmos.
O mundo não tarda será outra coisa — o melhor é adormecer com a caneta na mão. A escrita é tramada, tanto nos pode conduzir aos píncaros, como ao mais inescapável dos abismos. Se tivesse de adivinhar, diria que a queda está em curso. Outro Ícaro? Não me faças rir. Receio que, desta vez, o nome será outro.
Meu amigo demónio, o que sabe você dessas lâminas ébrias jamais pronunciadas? Não quero, como Satã, criar um incidente diplomático com as luzes. Todavia a situação actual é insustentável. Alguém tem de se chegar à frente de molde a enfrentar o infinito.
Não chore, leitor, veja a situação pelo lado positivo: não há ninguém com quem competir. Deus está morto, o carrasco, que pode ter sido Nietzsche, Darwin, Freud ou um algoz mais humilde deixou-nos a braços com o doloroso rescaldo.
Poema isto, poema aquilo. Cale-se, aceite que a vida o transcende, comunica o psicólogo ao poeta. Nada contra, só gostaria de acrescentar uma humilde adenda às palavra de Simone Weil. Não prefiro infernos reais a paraísos postiços. Reais ou fictícios, prefiro sítios frescos.
Metade deste trabalho vão é consentir que o mundo abalroe a escrita estagnada, o outro é sobreviver ao desastre e obrigá-lo a colidir connosco novamente a conta-gotas.
Há várias décadas que os dicionários assinalavam a sinonímia entre homem e analfabeto. Mesmo que quisesse, não vos consigo dizer onde li tal ideia.
No ano passado, ao folhear o Livro que não li, converti-me ao ateísmo. Já não tenho idade nem saúde para estar de joelhos.
O filho da puta, tal como Deus, é imutável. Alcançou o estado de perfeição no seu ofício, o mundo não lhe pode ensinar mais nada — que inspirador!
Pôs a vida mais baixo e apaixonou-se pelo ruído. O deus cansado viu ali a oportunidade para passar a batata quente a outro desgraçado.
A prosa ferida pela emenda do intelectual de pacotilha, o que nos calhou na rifa deste século de papagaios. Chamámos a ambulância, mas o mal estava feito.
O amor é uma sorte corpulenta que veio para ficar.
Nem pensar que me arrancam daqui, eis-me no lugar onde o norte singra. Levei décadas a encontrá-lo, inventei-o à custa de incinerar noites e eclipses.
Numa das divisões do quotidiano, duas pessoas ensaiavam com ganas as deixas insípidas do costume. A desculpa, o Hermes do casamento cuja incumbência é entregar mensagens lacónicas, era um bumerangue ricocheteando nas suas bocas.
É melhor estar atento às ruas, ao aparecimento dos primeiros peixes-voadores — está no tempo deles. Não se pode pedir mais à fantasia nem os dias.
A determinação regressara-lhe ao olhar para provocar tumulto — musas, daimons, deuses, demónios cirandavam à sua volta. O Homem sem máscara, o buraco negro à volta do qual as inspirações de outrora gravitavam antes do seu último colapso.
A dor estava a escapar por onde podia. Era dor do andar ao olhar.
A noite rebelde, a qual resiste à gaiola da arte, impressiona-me, mas não me amedronta. E todavia. Urge enfrentá-la, não há outro caminho. Primeiro tenho de perceber o que a luz me está a tentar dizer. Dar cabo do canastro aos dias também é uma hipótese.
Escrever é assassinar o universo sem dar muita bandeira.
Escrever é matarmo-nos sem dar muita bandeira. E podia continuar por aí fora se vida houvesse para mais.
O mar desculpava-se onda sim, onda não. Porra, sou incapaz de construir um verso com isto. A sua vida era um compêndio de deixas dos seus filmes preferidos, a sua vida, um filme chamado Adiado Cadáver Esquisito.
A mão, sob a influência de uma paixão recente, arma-se em estrangeira. Ignoro que fogo é esse que povoa a folha de hieróglifos façanhudos. O fogo não veio para cantar nem para criar, veio para destruir. Vem fazer as folgas do Deus colérico.
Actualmente, sei quem sou. E antes? Não faço ideia. O silêncio está a anos-luz dessas xaropadas da arte contemporânea.
Isto é sobre o quê? Isto? Que isto? Sem as certezas, o poema é a dúvida passada a limpo. Proeza ao alcance de poucos.
Em que posso ser inútil? O Homem simulou o Paraíso o melhor que pôde. O que sabe você dessas demandas?, questionou uma personagem assomando-se da gaveta dos textos inacabados. Mal ouviu o guia turístico falar sobre a obra, o Homem percebeu o embuste.
Ia cair até dar, o humor não ajuda ninguém — carece de mãos. Ainda havia nele todas as vozes. Essa certeza desoladora deu-lhe para gargalhar. Há dias, contaram-me que a Esperança é a mãe do Quixote.
O que contarão desse homem? O que escreveu? O que iluminou, o que escureceu? Resta-nos cair com as mãos atrás das costas, não vá a sorte intrometer-se na jornada.