Roberto Gamito
15.06.21
Assustamo-nos com frases, ontem com feras. A frase como uma gruta apinhada de ursos.
O mundo? Respondo que não o vejo há dias. Que o perdi de vista quando comecei a escrever o livro.
Quando a ave canora se distrai um segundo, o poeta avança. Eis o ofício de paciência: aproveitar as pausas das aves para treinar o canto.
A apresentação de um livro é inútil. O mais que se pode fazer é anunciá-lo à plateia como uma mãe que anuncia o nascimento de um filho. Nada se pode dizer daquilo que acabou de nascer.
Repetir alto o nome de Deus até ele deixar de fazer sentido. Quantas repetições serão necessárias até Deus se dissolver no ar? Apontar o número de vezes que é preciso repetir uma palavra para esta perder sentido. Eis um indicador da sua força.
Uma piscina vazia povoada por um casal de patos que acabou de aterrar. Outrora a piscina era sinónimo de felicidade e lazer. A desilusão que é regressar aos sítios onde fomos felizes.
Como se chega com a mão ao coração sem abrir o peito? Carne permeável ou impermeável ao olhar demorado.
Cada número representa um tijolo de uma ficção de perder de vista.
Memorizo poemas como se adoptasse cães. Em momentos de perigo, principio a dizê-los em voz alta. Bater à porta de pessoas ao calhas e perguntar-lhes se não gostariam de ouvir um poema. Ideia: Uber de poemas. Mandar vir poetas para nos dizerem poemas à porta de casa. Esgotar todas as rotas da salvação antes de desistir.
É um cadáver encalhado — refiro-me ao cachalote sem nome — com várias vidas lá dentro. Uma comunidade de Jonas sai um a um do corpo putrefacto.
O mar revolto tomba-nos sem pedir licença. Ficamos a sós com a nossa queda. Ou levantamo-nos ou afogamo-nos. A dificuldade que é encontrar mãos solícitas no meio do oceano. No que pensará o náufrago minutos antes de desistir? Uma síntese, motivos para nos mantermos à tona. Em faltando tábuas, agarrarmo-nos a memórias.
Arte adulta, a saber: livros, poemas e frases adultas, que não dependam de mim para continuar vivos. Menos que isso é um falhanço.
Se não te divorciaste dos fantasmas, és uma casa assombrada ambulante. Sujaste o muro de poesia, diz o fiscal da normalidade ao poeta. Olho em volta, as pessoas são agora pontos ao sabor da maré, peixes resignados ou mortos. O poeta terminou o seu último poema: não desejo isto a ninguém. Ouve-se um tiro.
Um único verso. Isolado da obra como um idoso sem familiares.
Em certos labirintos, há cobaias a deambular sem queijo nem objectivo.
Respirar tornou-se ainda mais decisivo. Não se deve olhar para os números quando estamos sem fôlego. A folha de cálculo é incapaz de nos ofertar oxigénio.
O mundo está a morrer, comentou o velho. Não haverá funeral, não há onde o enterrar, ripostei com um sorriso amarelo. E continuei: daí a necessidade de bombas cada vez mais potentes, urge reduzi-lo a cinzas.
O velho fuma um charuto à porta da igreja. O milagre tem-me na mão. O mundo é o mesmo de sempre, mas sem brilho.
Avanço com a mão vendada rumo a um nome que julgo amar.