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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

26.07.21

Margarida Rendeiro, Roberto Gamito

Margarida Rendeiro. Professora universitária e Investigadora.
 
Margarida Rendeiro é Investigadora Integrada no CHAM (Centro de Humanidades), FCSH da Universidade NOVA, realizando investigação de pós-doutoramento e Professora Auxiliar na Universidade Lusíada de Lisboa. Os seus interesses de investigação centram-se em questões relacionadas com literatura e cultura de expressão portuguesa. Coorganizou Challenging Identities and Rebuilding Identities: New Voices undoing the Lusophone Atlantic (Routledge, 2019)
 
Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber: Alexandra Lucas Coelho, o cânone literário, livros surpreendentes, escrita como espaço de hospitalidade, o palavrão é bem-vindo, Lenka e os fiscais do corpo feminino, reflectir ou explodir monumentos, estátua do Padre António Vieira, filmes de ficção científica, o siso e a memória estão em vias de extinção, as três Marias de 74 e as mil uma Marias de 2021, as prateleiras da eternidade.
 

Podem ouvir o episódio aqui ou noutra plataforma de podcast.
 


Roberto Gamito

26.07.21

Burocratizei a trajectória da bala, gritou o poeta no cadafalso.
Lume parasita e exageradamente pago; do outro lado da história, o silêncio magoa no pino da solidão. O século-eunuco ocupa os dias a foder-nos em vastos salões vazios. Laivo de ouro povoado por palavrosas sanguessugas recém-chegadas, vida relatada — ó maravilha das maravilhas! — por abutres. Uma despedida em linha recta.

Não se assuste, menino, eu não vim para ficar, ribomba a tempestade. No entanto, terá de me suportar. No atoleiro onde os pirilampos descobriram o seu âmbar, os Homens tentam, engessados, ensaiar novas danças. O xamã — aquele que vê no escuro — prosseguia com o ritual funéreo, a luz acabara de falecer. O único ser vivo à altura da morte.

Mar revolto, pequenos pinguins vigiados pela fome do leão-marinho, gigante quando comparado com os pequenotes torpedos que na água descobrem o seu voo. As ondas rebentam num festival de espuma selvagem, regurgitando pinguins ao calhas como pevides, uns safam-se com sorte, outros com mestria, enquanto alguns cessam a coreografia na boca do predador. O mar baralha os destinos dos pinguins e cada um tenta a sorte onde o precipício entoa o seu hino. Perdigotos cuspidos pelo mar nunca afónico. O leão-marinho permanece imperturbável no seio das tormentas. Os pinguins pressentem-no: um salto em falso, um capricho oceânico e é o fim.

O pinguim aproxima-se da boca inimiga como que empurrado por uma mão fluida, todavia foge à boca do Golias por um triz. Sem tempo para celebrações, prossegue a fuga em terra com os seus passinhos atabalhoados. O leão-marinho, espicaçado pela sorte do pinguim fêmea (o pinguim macho fica no ninho com a cria) sai das águas com grande pompa cinematográfica e vai no seu encalço, também ele atabalhoado. Tudo fica mais claro. Fora do seu meio, leão-marinho e pinguim, presa e predador, exibem, na sua forma de andar, o lado ridículo disto tudo. Ao rés do pinguim, o leão-marinho tenta abocanhá-lo mas tropeça na rocha. Ao ver o seu pitéu andante afastar-se, desiste e regressa ao mar. A sua reputação de temível predador sofreu um rombo, escreveu o pinguim jornalista. A cria, a qual espera ansiosamente pela refeição trazida pela mãe, nunca saberá o preço a que o peixe está.

Pinguim e o Leão-Marinho, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

23.07.21

Um homem — e em especial um homem com boas pernas e bom ouvido — daria em presa se fosse obrigado a pôr o garrote na língua.

Pálpebra empoeirada, vaticínio gaguejado. O ramerrame do cérebro amedrontado, a chacota das feras solteironas e desdentadas. Pés bem assentes no deserto, a cabeça em água. Homem nómada, oásis acometido por surtos de amnésia. O fim como palco e guião. Tira a camisa, põe a camisa: vê ao espelho a virilidade arruinada.

A ira decompõe-se em versões mais mastigáveis. O animal é domesticado por uma rede subterrânea de rodapés. O barco vazio, a voz ao leme. A metamorfose do chicote. Quem é que não consegue gostar dele e perdoar-lhe os seus pequenos caprichos?

Entre a espada e a parede, falo com uma e com outra. Hoje, agarrados ao corrimão, simulamos a velhice que nos há-de esvaziar. Caíamos em tentação, amolgadela na auréola. Retomamos, pois, sem mais palavreado, após um aparte de décadas, o assunto que mais nos interessa: o amor.

Aproxima, repele, homem-partícula de carga indecisa. Parte, ajuda a partir, reparte mafiosa ou irmãmente, despede-se sem qualquer palavra nos olhos, de mãos e pés atados. A sedução por parte da lâmina realça o sabor da queda. À lupa, apontaríamos outros pormenores mais sinistros. O pássaro sangra em pleno ar no verso que o obrigou a ir além do voo. Estrela hermética capturada pela mão esquerda. Eclipse tagarela, duelo com os corvos. A literalidade amputa o canhoto e sobram-nos os factos.

A metáfora magoa, faz-nos perder o pé onde ontem o mar era raso.

A Metáfora Magoa

 


Roberto Gamito

22.07.21

Em vez de descobrimos a careca ao dragão, em vez de descortinar os pequenotes que sob as suas vestes se ocultam numa estatura postiça, estamos aqui a choramingar como meninos sem mãe e a tecer louvores a guilhotinas rombas. O precipício cantante. É preciso encontrar a origem do sofrimento e fazê-lo explodir como um universo.

E não caíamos na tentação de ceder diante da novidade, essa nómada bagatela, esse vulgar pirilampo face ao qual os párocos da pose são contorcionistas exageradamente flexíveis. Crio raízes onde os demais fogem. Diante da escoada piroclástica, não sou senão um projecto de estátua a sonhar com o futuro.

Afastemo-nos, também, das definições que nos emperram as asas.
Num tom acima do comum, mas não tão acima que se possa considerar musical, admitiremos, de forma bastante profética, o fim que nos caiu no colo a estrebuchar qual peixe saído das águas. A razão ganha pernas e centra para o coração da área, um passe humanamente aflito em direcção à cabeça da imaginação.

O receio obrigou as mãos a retroceder, encolheu-as até os domínios do microscópico. Uma fera por natureza, um homem por ficção. Entre uma coisa e outra o teatro.

O cardo fazendo as vezes do coração do deus derrotado. Poesia maldita: carbúnculo à prova de hienas. A íntima vergasta depaupera a pluviosidade da língua. Os porcos dos vindouros hão-de refocilar no lamaçal à cata de ângulos mortos, os quais hão-de guarnecer de mediocridade a obra do escritor. Vimos muitos exemplos de como esfrangalhar o Homem, todavia urge continuar à procura de novidades.

Critério fluído, génio maleável, abutre-fabulista dando voz aos animais apinhados de vermes. O encontrão na morte, um deus ébrio sem pretensão à imortalidade. Suplico-vos, cuspam em todos os meus passos para que a argila da jornada nunca cristalize.

Noite cheia de olhos ferinos, uma vaga de panteras abatendo-se sobre a horda de turistas. Entretanto, meteu-se no negócio dos fardos. À porta do seu mundo, o seguinte aviso: vende-se dor para fora.

Carbúnculo à Prova de Hienas, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

21.07.21

No entrave entre a língua prefaciadora e o sexo, habitou, selvagem, hoje romantizada, a obra do poeta. Oh, lacaios da faúlha ressentida e restante comitiva de papagaios, mais um incêndio em Alexandria? Caramba, não dão sossego à vossa mediocridade. O interregno entre infernos teorizados — e Deus vos abençoe por isso —, a bala carpindo a emenda póstuma no romance inacabado, revelou-mo a sacerdotisa degolada. Tudo ardis no sentido de insuflar silêncios dolorosos. As pessoas definham, sozinhas ou agrupadas em cachos de eremitas, sob o tecto arruinado da catedral abandonada. Do chão ao tecto vai apenas a ideia de verticalidade. Em todo o caso, trazer o coração à baila numa cantiga de amansar espíritos mais agrestes é-me insuportável. Por estes dias, contento-me a inventariar os vermes da minha carcaça. Quantos mais serão necessários a fim de reclamar a minha morte?

E aqui temos o naufrágio burilado, sem tábuas de salvação nem deuses a quem pedir uma côdea. O sangue seduz os tubarões, dá-lhes currículo, sugere-lhes o círculo da fome — a possibilidade de posfaciar a carne.
Mas, alto lá!, ainda não chegámos à carnificina. As ondas legam melancolia ao último turista, que há-de morrer na praia. Desafortunadamente, não legará postais aos vindouros.

K. está lá em baixo a vigiar o convés atafulhado de fruta apodrecida. Os deuses, velhos solteirões, se preferirem, entregam-se a um oficioso banquete canibalesco. Maquilhagem no gesto, rosto, digamos, a descoberto como manda a moda da época, truques de mágico com o fito de distrair o público do que realmente interessa.

Lâmina e corvo agouram à vez. Cabeça de João Baptista, timoneiro no barco fantasma. Na mesa ao lado, o biógrafo mumifica o faraó entronizado pelos holofotes. Génio escarnecendo do século, barómetro receando pela sua obsolescência. Morte marcada para depois do poema perfeito: eis a maldição do poeta imortal, profetizada pelos cadáveres das musas.

O mofo na métrica, o bolor no verbo, o nome apinhado de arrebiques e a frase parada por falta de peças e talento. O filão do amor à espera de mineiros, mineiros esses abortados pelo século independente.

O shaker das desculpas apresenta-se como cronista do rescaldo. Uma relação falhada emboscada por caminhos jamais percorridos. Lobos postos em passos, lobos quilométricos por cima dos quais podemos alcançar a morte perfeitíssima.

Amputada a folia, o vate destes anos crê dar à luz poesia. Uma ideia sem pernas impedida de sair da folha rumo à cabeça dos leitores desnutridos de luz. Anacrónico exagero. Aconselham-me a abandonar o voo e a substituí-lo por um simulacro. Uma pedra emplumada é suficiente se a ideia for despertar a atenção destes cérebros encalhados no ruído.

Grito que venho em paz, todavia o hálito a guilhotina denuncia-me. Fera de esferovite aplacada pelas carícias e os afagos brincalhões dos indefesos, eis outra legenda deste marasmo.

Lufada de ar fresco na sala de mafiosos. A querela burocratizada pelas boas maneiras. Um apego abrandado pelas notas de rodapé. Uma distância em pulgas de ser dinamitada e nada.

Pequenos homens, fingidores de proezas, adquirem hérnias com migalhas aos ombros. Embrenha-se-nos o cadafalso na carne e na língua. Doravante cada passo em falso será morte certa.

Fera de Esferovite, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

20.07.21

Parangonas a feder a sangue, escaramuças montadas no sentido de atrair público, famintos e sequiosos de todas as épocas aproximam-se a fim de participar no ritual de desmantelamento. Se tais iscos mutáveis não existissem, seríamos peixes a boiar de tédio escutando a custo sermões insípidos sobre o lado luminoso do Homem. Tanta luz, tanta luz e eu continuo às escuras. Não te apoquentes, se quiseres ler o teu epitáfio, aproxima-te sem medo, disse o peixe-diabo ao peixe-palhaço.

Invejada pelos porcos, a sua vida não saía da lama. Se acreditássemos nos poderes embelezadores da lama, por esta altura estaríamos diante da criatura mais bonita que alguma vez pisou esta espécie de esfera chamada Terra.

Para enorme desgosto, fui incapaz de dizer o meu nome num tom que a pudesse hipnotizar. Escrevia anualmente folhas e folhas das mais indómitas linhas, porém, quando a situação puxava pela língua, revelava ser um desportista gago no campeonato do engate. Um dia quase acertei; infelizmente, escapei por um triz ao elogio.

Esse cutelo com o qual cortas a biografia é o teu orgulho, pois é com o corte que apadrinhas o sangue.

Ritual de Desmantelamento

 

 


Roberto Gamito

19.07.21

Tertúlia de Mentirosos Andreia Azevedo Moreira

Andreia Azevedo Moreira. Escritora.
 
Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber: os livros Pode um corpo morto e o As paredes em volta, escrita, escritores, referências, desafios, superação. 

Fotografia: (vcoragem.com)
Podem encontrar os livros da Andreia Azevedo Moreira aqui:
http://escritacriativaonline.net/livraria/

Podem ouvir o episódio aqui ou noutra plataforma de podcast.
 


Roberto Gamito

19.07.21

O seu nome espalhava-se pela província ontem vedada qual nódoa ingovernável. Os afónicos ganhavam voz à sua passagem como se se tratasse de um deus fluido; os poetas, mão, os predadores, ardis novinhos em folha. As tribos uniram-se em torno do mesmo medo como pequenos corpos celestes influenciados pela gravidade da estrela. Os detractores, que é como quem diz os bárbaros residentes, tentavam arpoar de olhos fechados a nódoa com uma salva de interpretações, hipóteses, teorias e demais mezinhas com vista a diminuí-la, a abrandá-la e quiçá extingui-la, porém o cachalote líquido prosseguia incólume num oceano só seu. O antigo verbo afundava-se na adiposidade das dúvidas ao descortinar inéditas areias movediças no Homem. O passado finalmente encontrara o seu túmulo. Mais um prego no caixão do oásis. Uma nódoa-nome inflamável ao rés de um fogo posto em poema. Num universo paralelo, volvidos milhões de anos, o imortal acabara de realizar o inventário dos grãos de areia do seu deserto. Mas eis que a tempestade se avizinha para baralhar o trabalho e os dias. Onde há vida, há Sísifos, comentou o sábio que comia uma espetada de escaravelhos-bosteiros, também eles miniaturas de Sísifo.

Conservo os meus relógios — e o mais que logro rapinar — numa gigantesca arca frigorífica. A minha maior ambição é congelar o tempo. Abandonei o meu antigo emprego de oficial das carnes (1) e desde então dedico-me à descurada tarefa de domar a arte do zero absoluto. O cume inatingível, afiançam os cientistas.
A imobilidade absoluta e de caminho transformar o calor, o amor, a paixão, a vida num mito. Trocar as voltas ao senhor Borges. Erigir das minhas cinzas um início como nunca houve. Não descanso enquanto não for o coreógrafo — o bobo-mor — da inércia indevassável. O Universo enquanto palco do tudo e demais ficções.

E agora, quaisquer que sejam as intenções dos vindouros que venham a contribuir para esta miscelânea de ideias aparentemente opostas, esta valsa lenta cumprida em bicos de pés entre o fogo e o gelo, permitir-me-ão que gabe a astúcia macaca deste menino; atirem-me todos os apodos da casta da inveja, mas pelo menos não sou um animal extinto. Ao contrário de muitos espécimes que tropeçam uns nos outros à cata de professor de dança, que é como quem diz, ficcionam a verticalidade e carpem os passos adiados e que, em dias de festa aziaga, fazem as vezes do sacristão e dobram os sinos em honra dos eus que, aqui e ali, abortaram, eu, inspirado por Ovídio, pelos druidas-das-mil-formas, pelos xamãs siberianos — faço lá ideia por onde o transe me conduziu —, eu, qual mongol a cavalo na mais indómita ideia, transfigurei-me num mamute bípede. O meu coração apossou-se de mim, desde a língua à mão, alcançando o lugar de maestro das estações. O gelo e o degelo são obra dele, longe de mim ficar com o crédito de tais façanhas.
O gelo enquanto casulo. Enquanto animal renovado saído do gelo, cumpri o cardápio das metamorfoses de Ovídio. Nada do que é bárbaro me é estranho. E agora?

(1) Se bisbilhotarem os anúncios de emprego por estes dias, hão-de cruzar-se com este poético eufemismo para talhante. Por norma, sou avesso a eufemismos e tudo quanto dilua palavrinhas isoladas em longas perífrases, todavia algum dia teria de dar de caras com uma mui ilustre excepção. Belo nome, oficial das carnes.

 

Oficial das Carnes, Roberto Gamito

 

 


Roberto Gamito

16.07.21

Amor, paixão, arte, pensamento: fraudulentas maravilhas.
Como são ficções, estas palavras são impróprias para consumo. O louco desbobinou o rol de eus que havia encarcerado no miolo e cada um deles procurou sem demoras o pasto do mundo real.
O Narciso invejava o louco e agarrara-se com unhas e sem dentes ao seu magro eu.

Com génios deste quilate, quem poderá adicionar uma legenda?

No capítulo da inércia, sou uma espécie de Usain Bolt, não fico atrás de ninguém. Há dias descobri que havia ganho diversas medalhas de ouro. Para honrar a minha postura de sedentário, não me desloquei à cerimónia. Não pratico a imobilidade pelos prémios, mas pelo amor à causa. Neste mundo veloz, o sedentário é o maior dos revoltados. Num mundo em que tudo é desfigurado graças à velocidade só o sedentário não abdica da sua forma.

Imagina lá tu que eles ficaram com a ideia de que sabíamos da poda?, diz o louco para outro louco ou para o espelho. Com efeito, basta atirar as palavras quentes do momento para nos levarem a sério. E eu é que sou o louco?, diz o espelho.

Malhemos à vontade no louco até este vomitar a multidão de cacos de personalidade, declarava o homem sensato. Um caco por cada homem. O resto é legado ao mundo. Os aspirantes a faquir hão-de agradecer-nos por isso, continuava o homem sensato.
Uma vez temporariamente ocupados na barbárie, o cérebro aproveitou a carnificina para descansar um pouco.
Deus me acuda, exclamava o louco. Trazer Deus à baila é, receio, uma manifestação de pedantismo, gritou o homem sensato. Narciso persistia no sentimento de inveja. Mesmo à beira da morte o louco não conheceu a solidão.

Fraudulentas Maravilhas, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

15.07.21

O…marimbem-se para o nome da personagem…esse ar competentemente feliz, o qual é um misto de intrepidez e desajuste face à época actual, que o caracteriza em dias de caricaturas elogiosas, apressa-se a entrar na sala maleável das convenções, pois é impensável que se misture com a ralé das ideias isoladas, as quais andam por aí saltando de cabeça em cabeça sem jogarem as unhas a nenhuma agenda política. Como sorri a qualquer tufo nómada, ultrapassa o facto de ser escandalosamente estúpido pela via da simpatia maquinal. A simpatia, assim como o pé-de-cabra, abre-nos muitas portas.

Papando dissabores qual mendigo à solta num banquete, descobriu, sem auxílio de mestres ou canhenhos que agissem como faróis, o caminho certo de entre o novelo de possibilidades. Aos poucos, aprendeu a exteriorizar a ganância segundo a moda, oscilando entre ganas de animal que não larga o osso e a pacatez de um velhote que já viu tudo.

Podia fazer, se houvesse miolo para tal, conjecturas de paraísos artificiais em relação aos próximos anos, que se avizinham macabros. Inúmeros fogachos incapazes de deixar descendência. Perdoem-me o desnorte, mas o incêndio aproxima-se.

O faro está aguçado como nunca. Há muito que não era joguete do rastro de perdizes postiças. As aparatosas quedas desse Ícaro armado em Super Mário com múltiplas vidas pertencem ao passado — imperador inderrubável de tudo quanto é valioso. As desajeitadas tentativas de voar são hoje apócrifas.

Quando são enumerados os maiores caídos da História, o seu nome vem forçosamente à baila, é demasiado grande para ser esquecido. Contudo, os biógrafos das suas múltiplas vidas encarregaram-se de pintar esses quadros com cores mais alegres, deslocando a verdade para o estaleiro das obras inacabadas. Seja qual for a margem escolhida para o acampamento, seja ela a verdade ou a mentira, há uma faca afiada à nossa espera.

Como explicar que D., o novo deus que ia fazer as folgas do dinheiro, tivesse desistido de erigir o novo Paraíso que já havia sido apalavrado? Estes novos deuses com fôlego demasiado humano não duram nada, somos obrigados a comprar um novo todas as semanas, sentenciava o sumo pontífice dessa religião onde os deuses nos ouviam por turnos.

Época de caça, peixe fresco, carne trepidante — tudo paleio de predador. Mete-te com alguém do teu tamanho, diz um pequenote para outro pequenote.

Por outro lado, além do cenário onde o negro foi pintado sobre o negro, ainda havia homens sonhadores. A título de exemplo, o ditador daqueles anos tinha o sonho de transformar o homem de carne e osso em bonequinho. Enchia-os de chumbo. Sem sucesso. E todavia persistia. Um exemplo.

Época de Caça, Roberto Gamito

 

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