Corpo em revolução, figura parva ou geométrica. Redondo ou quadrado, carne para uso, descarte ou disparate. De quanta obsolescência serão dignas as minhas frases? Linhas que aos demais não assentam, nem à justa nem à larga, nem em prosa nem tão-pouco em verso. Lá vão elas rumo aos bastidores da tratantada com as tetas bem apertadas de molde a não desarmonizarem a eufonia, as sílabas, acotovelando-se no meio do texto íngreme e a raiar o inútil, as sílabas, o mundo enquanto lugar de caça e fuga, as sílabas.
Poder ser que seja um acto louco, mas ajo de acordo com o pulsar do texto: eis a minha crença mais arreigada. Já de rastos ou a meio da queda, sintonizava a vida com o respirar da literatura. Éramos, cada um à sua maneira, dois animais aflitos a braços com o fim.
Que mal pode haver em querer escrever e carecer de começo de língua inédita? Ao rés da folha, desenteso ao fitar o inferno do mesmo. Outrora, desentendíamo-nos ao primeiro verso, poeta e leitor dois bichos singularizados pelo desnorte. Um poema perfeito é uma paixão recém-chegada. Salvo o calor e suas múltiplas acepções, não entendemos peva. De joelhos, aquiescemos face à língua ígnea e estrangeira.
Choquei alguns acólitos do gelo, alguns paladinos de coração emperrado, alguns cruzadinhos de espada romba. Morte ou vida é-me igual ao litro, grito ao sacristão. Doravante o sino dobrará sem porquê.
Amor. Terei eu pé mesmo se o tema teimar em aprofundar-se ao ser desnovelado na língua em solavancos tépidos? Nas minhas costas, o mundo.
Disparate: emendar o que quer que seja quando nada é certo. Enumerem, caso haja tempo para futilidades, os sábios que se cruzaram convosco até então. O animal amolece, nada duro e durável. Tento entender a trajectória dos projécteis adiados.
A sedutora 4x4, adaptada a qualquer terreno, fez mais uma vítima. Retirei peso ao seu negrume, confesso-me.
Ao ruminar o que terá acontecido longe do radar das minhas pupilas, as hormonas decidiram entrar-me pela prosa adentro, qual rusga, insuflando-me os verbos outrora flácidos.
Amor ou morte? A ganância tomou conta das mãos indecisas. Nem ouro nem poesia. Temi as consequências, o retorno a um início primevo, desta vez de mãos vazias e afónicas.
Imaginava-me de pés e mãos atados, encimado por um carnaval de flechas desejosas de se abaterem sobre mim. Voar é um exercício vão quando o céu principia a dar mostras de querer ruir.
A carne, a eterna suspeita. De um lado os idólatras, do outro, os iconoclastas. Sou um entre a multidão de anónimos. Espero pacientemente a minha vez de arder na pira. Palavras demasiado concludentes. Em tempos idos, fui ensinado a deixar o mundo de fora da língua. Não digas isto, isto e isto. Então falo do quê?, respondia. Ninguém me sabia responder, o gato finalmente comera-a.
O rei dos oportunistas palmilhava a estrada do sucesso com a sua corte de sequazes que, espante-se, massajava-lhe os nobres tintins sem descanso.
Ninguém me ensinou a afogar — tudo o que ignoro aprendi sozinho.
Respirar para tão pouco. Cá estamos, camaradas náufragos, neste mar vindimado pelo medo.
Desisto da minha condição de estátua. Inicio a dança, faço as pazes com o movimento. Não é comum depararmo-nos com uma magia consumada que não aproveite o momento para mamar da teta dos holofotes.
Tardava o confronto com o tempo. Entretanto, ia-se entretendo a lutar contra espantalhos e pardais. Se quiseres ser homem-estátua, pára, se continuares assim, a andar feito parvo, não vais a lado nenhum.
Não temo a morte, tenho um ataúde à sua medida à sua espera em cada esquina do texto. Como afiançam os místicos, não é o Homem que entra no templo, é o templo que entra no Homem.
Terei de me assumir inábil para lidar com o amor. Já o tive nas mãos mas…
Volta para a direita, volta para esquerda, hesitação, simulo a volta para a direita e volto para a esquerda. Um tiquetaque obnóxio, uma tentativa de abrir o cofre da alma e pôr o Homem — o que poderia ter sido se a plenitude fosse alcançável — diante do Tempo vertebrado para avaliação.
Uma vez descalçada a bota que é confeccionar o primeiro verso, o poema anda sozinho, quase sem ajuda. As sílabas que colho da mão suada: frutos em botão.
Constato que o hábito recente deixara o monge inacabado.
Ao contrário do que nos foi ensinado nas redes sociais, é impossível reduzir o Homem a uma característica. Resumir um ser humano a uma palavra é um acto criminoso, sem direito a redenção, ó cruzadinhos da empatia.
O que é afinal o Homem? Animal exemplar, domesticado em dias de festa — sexo! —, de pronto solto no seu habitat penumbroso apinhado de olhos inquisidores.
A luz fraqueja diante das palavras maiores. Os anjos não se pronunciam. Esta manhã, graças ao nervosismo face à situação que me poderia pôr em cheque — e logo eu que nunca tive queda para rei —, aprendi, enquanto remexia as nádegas na cadeira, o samba da sala de espera — dança que, quanto a mim, merecia outro prestígio.
Suspeitem de asas tão franzinas. Estou certo de já ter passado por esta ideia. Por sorte, a cabeça será outra e a frase, resultante da observação, sairá noutros moldes. Não me questionem se tal constitui um ganho. Sim, distraio-me com o que estiver mais à mão.
Fugir ao medo? Com o calor que está? Não sejas estúpido. Aninha-te aqui e vamos lá ver se há material para erigir uma história de amor. Finda a fornicação, posso ocupar-me de outros assuntos. Não houvesse período refractário e o homem nunca teria inventado a burocracia. Sem período refractário não haveria Kafka, pensei eu após a ejaculação.
Não sei formular um pedido de socorro sem parecer uma causa perdida. Não sei pedir ajuda sem que me dêem extrema-unção.
O passado é fértil. Tanto é uma barragem contra fantasmas como se transmuda num viveiro deles.
A desconfiança tomou conta das minhas definições. Tento fintar o cinismo, todavia ele arranja constantemente forma de entrar a pés juntos na frase. Combatê-lo com ironia é engrandecê-lo. As armas para nos defendermos dele ou estão extintas ou ainda não foram inventadas.
As cabeças dos gigantes derrotados. Tê-las à cabeceira, sob a forma de rosário, é, a espaços, reconfortante.
À parte isso, sou, incontestavelmente, farinha do mesmo saco. Porém, ao estar em contacto com os meus semelhantes, fui impelido rumo à singularização. Não me peçam mais explicações, não estão em idade de compreender a minha jornada.
A abstracção de decantar a música cantada ao coração numa noite como nenhuma outra. Prosa atafulhada de inseguranças, perífrases atrás de perífrases, o nada mais copioso possível.
Mas…não vim ao mundo com o fito de moer palavras adultas e diluí-las em frases mansas, de pacote. A língua selvagem descansa. Ao entrar em casa, penduro-a, por fim, não na folha, mas no cabide, como coisa que só faça sentido ser usada na rua.
Peso infinito sobre os ombros. Já disse ao médico uma ou duas vezes. Não há meio do teste de ADN chegar, não me espantava nada que fosse filho de Atlas. Que vida é esta afinal? Carregar o cosmos às costas — façanha ao alcance de tão poucos — e suplicar ajuda às sanguessugas para que me cocem os tomates. O gigante mirra a cada súplica. Dentro de pouco tempo poderá ser derrubado por qualquer um: eis o destino dos grandes.
Tenho os dias pretéritos como reféns na memória. Sinto que levei a cabo um crime imperdoável que não cessa de engrossar.
Na folha, dou as voltas que o mundo não deu. Cada um foi para seu lado; um permanece no tabuleiro, o outro, comido.
Martelei-lhe a carne, conta a mulher A à mulher B, mas nem por isso ficou mais tenro — continuou, aliás, duríssimo. Mistério que intrigava todos os talhantes com que se cruzara.
Poeta: Planeio cada pormenor como quem arquitecta uma catedral.
Escrever ajuda-nos a exercitar a mão, que é por onde a humanidade abre o leque dos mundos possíveis.
O meu marido deixou de me procurar, comentou a mulher à amiga. Cessaram as buscas, fui dada como morta. E agora? O que faço eu à minha vida?
Para muitos, a vida é andar em manada, de mamada em mamada, um tudo ou nada de quatro ou de joelhos.
Este lugar, que assumiríamos meu, será, postumamente, ocupado por um sismo.
![Corpo em revolução, Roberto Gamito Corpo em revolução, Roberto Gamito]()