Roberto Gamito
31.12.21
Não é um ajuste de contas com o ano que me desfalcou até ao tutano, rapinando-me as sobras da alma — mesmo assim, está longe de ser uma tragédia. Isto em si é uma comédia na medida em que a minha vida é uma comédia. A frase anterior não é fruto de ponderação anterior, foi parida no momento, sem olhar para trás para corrigir eventuais falhas de percepção. Estabelecendo assim as intenções, o autor destas coxas linhas lamenta que, no decorrer da crónica, tudo se desintegre. As próximas linhas serão prenhes de apontamentos de pastelaria, filosofia barata, poesia entre aspas, humor e coisas destituídas de nome.
A identificação à pressa com algo que nos beneficia é provincianismo; conduz também ao tumulto das proporções e relações entre o Homem e o mundo. Se há muita coisa parecida connosco (descartamos as outras), logo somos grandes.
Para citar Witold Gombrowicz, entendermo-nos por meio da arte é um mal-entendido divertido. A identificação, tão ao gosto do homem contemporâneo, é, por conseguinte, o atestado de não-arte. Se é múltipla, não nos entendemos; se tem apenas uma leitura, não é arte. Acrescente-se: o papel da arte é turvar as águas. Aquilo que não perturba as águas estagnadas é uma performance medíocre. A arte abre-nos a cabeça à vez, para uns usa o machado, outros uma navalha, outros um tijolo, uma garrafa, um piano e por aí vai. A forma como somos espancados pela arte maiúscula varia de pessoa para pessoa porque cada um de nós é um compêndio singular de forças e fraquezas. No respeitante à arte, não há dois lutadores iguais. Convém frisar que o Homem irá sempre ao tapete num confronto com a arte.
De há uma década a esta parte, é comum passear-me toscamente com livros e cadernos debaixo do sovaco, não para fins ornamentais ou para fotos de Instagram, mas para absorver os seus sucos com o miolo, do qual se exige o papel de esponja. O sujeito curvado diante da folha, seja ela branca ou prenhe de letras, é motivo de curiosidade. Em certos sítios, o leitor é mais raro que unicórnios. Ler é uma actividade tão exótica como praticar xamanismo num centro comercial. Ler para quê, eis uma das perguntas que me atiram à queima-roupa. No capítulo da escrita há sempre uma desconfiança, típica de Narciso. Ele deve estar a escrever sobre mim, pensam os cachos de pessoas à minha volta. Feliz ou infelizmente, poucas são as pessoas e as acções do quotidiano que despertam o meu interesse. Para o Narciso, todo o garatujador é um potencial biógrafo.
De longe em longe surgem excepções. A senhora Feliz — é mesmo o nome da velha — foi ao pomar dar com o marido pendurado pelo pescoço. Há ironias danadas — e esta é uma das mais fortes. Ao relatar o episódio, outra velha responde: “o céu está a pedir por todos nós”.
Chegámos ao último dia do ano. O cabrão apanhou-me desprevenido deitado na cama. Instante dramático em que passei em revista os projectos falhados e os muitos por conceber. Mais um ano para a sucata. Apressei-me como toda a gente, afinal não sou senão um átomo da turba, o destino fintou-me e eu fintei-o, porém empurrou-me estrondosamente de um ano para outro e, quando dei conta, já estava mais velho. O calendário não dá mostras de abrandar. Observo a mão invisível do tempo a marcar cruzinhas no calendário — a liquidar dias como se fossem moscas lerdas. A vida escapa-se através das datas, tal como a areia escorre pelos dedos.
A minha história em vias de chegar ao fim principia a dar-me um prazer quase inenarrável. Com efeito, produzi doidamente uma quantidade absurda de episódios do meu podcast Túnel de Vento, salvo erro mais de duzentos episódios. O rol de temas por onde os meus neurónios vagabundearam é assoberbante. Embora irrelevante para as massas, digo, sem erro, que evoluí um nadinha. Mas um passo seguro em direcção ao Nada. De quando em quando houve episódios em que acariciei os cumes daquilo que projectei para o Túnel de Vento. O improviso total fez de mim um funâmbulo a fazer pouco da morte. Quão estranho: finalmente, finalmente começo a entrever as primeiras sílabas do meu próprio rosto a sair do espelho.
Fora isso, há o Roberto Gamito, outro podcast, uma espécie de diário interior. O Tertúlia de Mentirosos, as conversas, arte da qual pouco ou nada percebo, começa a ganhar robustez. Há ainda o Evangelho segundo o Vergalho (sucesso inesperado), Bárbaro (onde digo alguns dos meus poemas) e Onde há Pessoas há Merda, este último criado a duas cabeças com o Gonçalo Patrício.
Sou frequentado por duas ou três ideias que tenciono concretizar no próximo ano. De resto, é prosseguir com as que já sairam da inércia, seja podcast, vídeo, crónicas e o mais. Chegou a hora de pôr a carne toda no assador. Até para o ano.