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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

31.12.21

Não é um ajuste de contas com o ano que me desfalcou até ao tutano, rapinando-me as sobras da alma — mesmo assim, está longe de ser uma tragédia. Isto em si é uma comédia na medida em que a minha vida é uma comédia. A frase anterior não é fruto de ponderação anterior, foi parida no momento, sem olhar para trás para corrigir eventuais falhas de percepção. Estabelecendo assim as intenções, o autor destas coxas linhas lamenta que, no decorrer da crónica, tudo se desintegre. As próximas linhas serão prenhes de apontamentos de pastelaria, filosofia barata, poesia entre aspas, humor e coisas destituídas de nome.

A identificação à pressa com algo que nos beneficia é provincianismo; conduz também ao tumulto das proporções e relações entre o Homem e o mundo. Se há muita coisa parecida connosco (descartamos as outras), logo somos grandes.

Para citar Witold Gombrowicz, entendermo-nos por meio da arte é um mal-entendido divertido. A identificação, tão ao gosto do homem contemporâneo, é, por conseguinte, o atestado de não-arte. Se é múltipla, não nos entendemos; se tem apenas uma leitura, não é arte. Acrescente-se: o papel da arte é turvar as águas. Aquilo que não perturba as águas estagnadas é uma performance medíocre. A arte abre-nos a cabeça à vez, para uns usa o machado, outros uma navalha, outros um tijolo, uma garrafa, um piano e por aí vai. A forma como somos espancados pela arte maiúscula varia de pessoa para pessoa porque cada um de nós é um compêndio singular de forças e fraquezas. No respeitante à arte, não há dois lutadores iguais. Convém frisar que o Homem irá sempre ao tapete num confronto com a arte.

De há uma década a esta parte, é comum passear-me toscamente com livros e cadernos debaixo do sovaco, não para fins ornamentais ou para fotos de Instagram, mas para absorver os seus sucos com o miolo, do qual se exige o papel de esponja. O sujeito curvado diante da folha, seja ela branca ou prenhe de letras, é motivo de curiosidade. Em certos sítios, o leitor é mais raro que unicórnios. Ler é uma actividade tão exótica como praticar xamanismo num centro comercial. Ler para quê, eis uma das perguntas que me atiram à queima-roupa. No capítulo da escrita há sempre uma desconfiança, típica de Narciso. Ele deve estar a escrever sobre mim, pensam os cachos de pessoas à minha volta. Feliz ou infelizmente, poucas são as pessoas e as acções do quotidiano que despertam o meu interesse. Para o Narciso, todo o garatujador é um potencial biógrafo.

De longe em longe surgem excepções. A senhora Feliz — é mesmo o nome da velha — foi ao pomar dar com o marido pendurado pelo pescoço. Há ironias danadas — e esta é uma das mais fortes. Ao relatar o episódio, outra velha responde: “o céu está a pedir por todos nós”.

Chegámos ao último dia do ano. O cabrão apanhou-me desprevenido deitado na cama. Instante dramático em que passei em revista os projectos falhados e os muitos por conceber. Mais um ano para a sucata. Apressei-me como toda a gente, afinal não sou senão um átomo da turba, o destino fintou-me e eu fintei-o, porém empurrou-me estrondosamente de um ano para outro e, quando dei conta, já estava mais velho. O calendário não dá mostras de abrandar. Observo a mão invisível do tempo a marcar cruzinhas no calendário — a liquidar dias como se fossem moscas lerdas. A vida escapa-se através das datas, tal como a areia escorre pelos dedos.

A minha história em vias de chegar ao fim principia a dar-me um prazer quase inenarrável. Com efeito, produzi doidamente uma quantidade absurda de episódios do meu podcast Túnel de Vento, salvo erro mais de duzentos episódios. O rol de temas por onde os meus neurónios vagabundearam é assoberbante. Embora irrelevante para as massas, digo, sem erro, que evoluí um nadinha. Mas um passo seguro em direcção ao Nada. De quando em quando houve episódios em que acariciei os cumes daquilo que projectei para o Túnel de Vento. O improviso total fez de mim um funâmbulo a fazer pouco da morte. Quão estranho: finalmente, finalmente começo a entrever as primeiras sílabas do meu próprio rosto a sair do espelho.
Fora isso, há o Roberto Gamito, outro podcast, uma espécie de diário interior. O Tertúlia de Mentirosos, as conversas, arte da qual pouco ou nada percebo, começa a ganhar robustez. Há ainda o Evangelho segundo o Vergalho (sucesso inesperado), Bárbaro (onde digo alguns dos meus poemas) e Onde há Pessoas há Merda, este último criado a duas cabeças com o Gonçalo Patrício.

Sou frequentado por duas ou três ideias que tenciono concretizar no próximo ano. De resto, é prosseguir com as que já sairam da inércia, seja podcast, vídeo, crónicas e o mais. Chegou a hora de pôr a carne toda no assador. Até para o ano.

motel do bizarro

 


Roberto Gamito

30.12.21

Imaginei-me irremediavelmente pobre. Vasculhei os bolsos como quem procura as sobras de uma civilização perdida. Tinha para cima de setenta cêntimos; sorri, estava economicamente livre. É a sorte de viver no passado, quando o dinheiro ainda tinha valor.

Após nova busca, fiz outra descoberta. Encontrei as ossadas de um antepassado. Um antigo eu que havia esquecido. Um misto de horror e exaltação, aquele ulular engolido pela vergonha, o qual vem à tona para nos assombrar, apossou-se de mim. Apesar de marmóreo, que é o consolo dos fracassados, não podia deixar de sentir um certo desassossego.
Entretive-me a arear o passado e, findo esse trabalho, comecei a namoriscar o futuro. Perdera um ror de tempo a inventariar possibilidades, ângulos perfeitos e trajectórias para as minhas ideias-bala.

Quanto ao amor, nada de poético há a confessar. Não suporto sucedâneos nem versões diluídas, nem na vida nem nos livros, irei protestar — embora à minha maneira, cifrada ou escancarada, todavia à minha maneira — quando me tentarem ludibriar. O gato por lebre no tocante às verdades mais apetecíveis, a saber: amor, Deus e morte não me seduz.

Quando um amor antigo me escorraçou pela porta das traseiras com um pontapé magnifico no traseiro, talvez não tenha sido assim tão mau para a minha postura. O desmame foi custoso. Reerguermo-nos das cinzas é um trabalho hercúleo. Quem sabe se a solidão amarga não me terá afinado o miolo? Ou pelo menos dado condições para que, em certos momentos, consiga trampolinar até novas alturas.

Os anos passam, entre eles um salão de festas — de vaidades —, de meias-verdades, de meia-vida, de meia-altura, de meia-verticalidade; em suma, uma província de fogo incompleto na qual os seres humanos, inebriando-se com as aparências, estatutos, dogmas, reputações pensam exorcizar a morte — e todavia.

Usando o nomenclatura deles, sou um falhado. Rapinaram-me até ao tutano. Coisas há que escrevi há mais de dez anos que conheceram sucesso pela mão e pela boca de papagaios paraguaios destituídos de talento. Usando o dicionário deles, sou irrelevante. As hienas sofisticadas souberam ocultar a sua gula por cadáveres.

Tento esvaziar a cabeça de todas as guilhotinas e venenos que me povoam. Não tenciono atafulhar o silêncio de obstáculos e lâminas ou retirar-lhe a habilidade de se espreguiçar e de receber o desconhecido. Não foi a minha intenção transformar a minha mente numa câmara de tortura onde, dia e noite, a depressão e a ansiedade me torturam longe dos olhares dos demais. Seja como for, aconteceu, fugiu-me do controlo. Mais uma vez a História do Homem repete-se no homem.

Terá um travo amargo que eu, criatura apta a ir ao fundo qual cachalote, tenha de — isto é mais forte do que eu — insistir nisto, tentar afogar-me. Na profundidade onde a luz não é bem-vinda, a calma e a fúria, verdade e mentira equivalem-se, e a grandeza e a pequenez são lentas. No fundo, onde a luz foi escorraçada, a morte não tem pressa.

Regressemos à paixão. Os lábios aproximam-se fogosamente do meu pescoço, um coro de relâmpagos, gerado no coração, percorre o corpo de lés a lés. Paixão. Digo demasiado cioso da ideia perturbadora que esta palavrinha contém. Um fogo que se apresenta mínimo e cresce num estalar de dedos. Poeticamente, estou inclinado a afirmar: a paixão é a temperatura a que a carne humana arde.

À mercê dessas sensações, umas conquistadas outras imaginadas, o ser humano é obrigado a metamorfosear-se. Aquilo que sou não é suficiente, é preciso mudar.

A impotência total face ao que nos rodeia, com efeito, somos animais sem qualidades à beira da extinção. A incapacidade de chegar à nossa forma derradeira aprisiona-nos numa camisa-de-forças. Ou será um casulo? Sem comentários. A camisa-de-forças não merece qualquer apontamento.

Reservo as minhas horas mais obscuras para aprender a dançar com toda a espécie de verdugos. A morte defende-me da vida com unhas e dentes. Aproveito todos os instantes para desistir. Gostaria de poder espreitar para o interior do cadáver de Deus e perceber se há algo parecido comigo nas suas vísceras. Será possível asfixiar o futuro de tal modo que o mundo seja obrigado a inverter a marcha?

Então e se eu, nas traseiras mal-iluminadas deste século, de gatas e aos apalpões, dado que vendi a verticalidade ao Diabo, praticamente míope, fosse ao lixo catar uma nova espécie de luz?!!! Apesar de abundantes pontos de exclamação, a frase não chegou a ninguém.

Não se faz literatura com queixumes. Engulo oceano e cachalotes de um trago e prossigo, espero, fértil e criativo. Recomendaria uma cautela excepcional aos abutres, ou, pelo menos, uma inteligência ímpar no tratamento do meu cadáver aquando do saque. Um passo em falso e a minha morte trar-vos-á o dilúvio.

pobre em ouro mas rico em coisa nenhuma

 


Roberto Gamito

29.12.21

Afirmam-se curiosos no tocante ao tumulto nos lençóis, aficcionados da chapada nas nádegas e diletantes quanto às várias maneiras de levar a mulher ao céu; em resumo, acreditam deter o segredo da levitação orgásmica. Não preciso de me dar ao trabalho de pormenorizar o equívoco: o homem chafurda neste absurdo para afastar os parasitas da dúvida. A meu ver, levar a mulher ao céu é um empreendimento ambicioso. Proponho viagens mais modestas, a saber: levar a mulher até à vila, levar a mulher até ao talho, levar a mulher às compras.

Não hesito em asseverar que o pau humilde é um magro contributo para a felicidade da fêmea ou machos apreciadores de tal iguaria, porém, a ser verdade que a tal viagem ao céu se concretiza, temos de repensar o homem e seu pequenote.

Em chegando ao céu, a pila converte-se numa espécie de astronauta. O preservativo, apodado de capacete pelos mais velhos, ganha novas acepções. Um pequeno passo para o Homem, um grande passo para o pénis. Mas a verdade é que, ainda que objectáveis os méritos de certos nabos fanfarrões, relativamente as suas alegadas prestações, estamos a falar, por norma, de pénis sem estudos. E aí reside o motivo do falhanço. Se a verga é inábil em catapultar a mulher até ao Cosmos dos orgasmos verdadeiros — que os há, já li sobre isso —, tal se deve ao seu magro currículo. Ao contrário do astronauta, o qual é um indivíduo que leva os estudos a sério, dado que no espaço é a diferença entre sobreviver ou morrer, o pénis o mais que alcança é o diploma da escola da vida. Afortunadamente, a cona não é tão criteriosa quanto um foguete: não liga ao currículo. De contrário, o homem teria de devotar a sua vida ao estudo antes de poder ingressar nela.

E nisso a cona é amiga: é uma personagem disponível a dar a mão aos desgraçados, aos astronautas sem qualidades. Por conseguinte, há-de extrair o máximo que puder de um aluno medíocre. Tudo para bem da ciência e do futuro da espécie — e com um orçamento bem menor que o da NASA.

Mulher: O que fazer com os homens que não nos levam a lado nenhum?
Eu: É atirá-los ao mar e deixar os tubarões tratarem do resto.


astronauta sem qualidades

 


Roberto Gamito

28.12.21

Eis o nosso assassino. De estatura mediana, era de compleição delgada, a tender para o magro mas sem ferir as vistas, braços capazes de carregar uma saca de cimento sem lamúrias, naturalmente musculado, que é como quem diz, músculos criados no campo sem recorrer a rações cheias de químicos, sem carnes adicionais que, em ocasiões de disparos fotográficos, nos envergonham a bom envergonhar. Todavia, esta não é a descrição do assassino. O nosso personagem era um tipo normal, tão normal que é impossível decompô-lo em atributos sem adormecer.

Sob outros aspectos, porém, a sua aparência tinha algo de encantador. Refiro-me, pois, ao inventário mental. Aquela cabecinha era um hotel de demónios e fantasmas. Pelo menos é assim que o vejo e não há tempo para o confirmar — por ora contentemo-nos com a especulação. Dir-se-ia, admitiu a minha confiável informadora, a qual estava vestida de enguia, que naquelas veias corria sangue vermelho. E — ousadia da parte dela— o sangue de um verdadeiro assassino e poeta. De que modo as veias deste sujeito conseguiam albergar tanto sangue permanece ainda hoje um mistério.

Não daria o meu patrocínio a tão absurda informadora, confidenciam-me. Em boa verdade, tenho de labutar com o que tenho, não há orçamento para contratar melhor. Se tivesse meios, adquiria os serviços de uma informadora enfarpelada de hiena.

Embora me contradiga um pouco, felizmente estamos no século XXI em que a contradição é o prato do dia, urge dar-vos um lamiré sobre o nosso assassino. A cara dele foi o que o conduziu a essa vida. De facto, a face, que a turba via como velhaca apesar de ser uma jóia de moço, contribuiu desde tenra idade para o seu êxito junto de alguns dos zaragateiros mais famosos da aldeia. E de soco em soco lá traçou o seu caminho. Humilde, principiou pelo soco, avançou com a medicinal cadeira nas costas, passando pela cabeçada carinhosa. Um dia foi acometido por uma epifania, qual pessoa devotada à sua arte, e disse: “Se quero continuar a progredir na carreira de zaragateiro, não posso continuar a distribuir papo-seco a qualquer macaco, preciso, como se diz hoje, de expandir o meu portefólio de velhacarias. Vou começar a matar pessoas." Os três ou quatro gatos-pingados esmurrados minutos antes concordaram com a sua decisão e de seguida foram para casa inventariar nódoas negras.

Ao contrário do que costuma suceder quando abrimos negócio, o nosso assassino, vamos chamá-lo Irineu, teve a ajuda do seu melhor amigo — o qual se ofereceu para morrer às suas mãos.

Sobre a história que correu, na altura, sobre as relações de ambos, e que, verdadeira ou inventada, nunca foi oficialmente desmentida, nada tenho a acrescentar de extraordinário. Há quem afiance — atentem bem nas más-línguas —, que não passou de um ajuste de contas. Poucos são os que vêem no sucedido um acto de verdadeira amizade, do género: “Precisas de ganhar confiança na tua arte, terá dito a vítima, ofereço-me, assim como assim já não faço nada de jeito com a minha vida”.

Entretanto, os minutos perderam a noção do tempo e passam a horas, as horas a dias, e a areia vai escorrendo da ampulheta a um ritmo estonteante, tanto que nos mijamos nas cuecas — sim, envelhecemos. Caramba, não avancemos já para o fim; recuemos para idades menos provectas.

Como qualquer pessoa metida em negócios, o assassino tinha as suas preocupações. Começamos com sonhos e acabamos com dívidas.
As dívidas atormentavam-no, o lucro que retirava dos assassínios não dava para cobrir as despesas. Irineu não era menino para desanimar. Porém não há forma de fugir à realidade. Com efeito, o dinheiro começa a escassear e principiou a cortar — perdoem-me a brincadeira — na qualidade das facas. Era vê-lo, de madrugada, colado à televisão a babar-se ante os anúncios de facas supostamente fantásticas. Nunca vou poder exercer a minha profissão na sua plenitude. Ai, que triste fado o meu, lamentava-se o nosso assassino sem posses.

A qualidade das suas ferramentas diminuíra a ponto de começar a assassinar por prestações. Por sorte, a vítima não era alheia à situação financeira de alguém nascido num berço de palha. Ao ver o assassino desolado, consolava-o: “Não chores, camarada, já me fizeste um corte no pescoço, o mais difícil está feito, amanhã vens cá e acabas o trabalho.”

Evidentemente, havia quem não quisesse morrer — gente dessa há em todo o lado. Não morrer, comentava Irineu, acarreta uma certa má vontade e, consequentemente, um maior dispêndio de energia e tempo. Veja lá se percebe o meu lado, sou assassino, não sou palestrante, o meu ofício não é convencer pessoas a ir desta para melhor. O que quer que eu lhe diga, ripostava a eventual vítima, não acho jeito ser assassinado. Pronto, vai obrigar-me a nomear as vantagens de permanecer morto. Convença-me, tenho todo o tempo do mundo, retruca a vítima, tem o senhor, comenta Irineu, mas eu não tenho, ainda queria matar outro desgraçado antes do jantar.

Irineu não logrou acompanhar o mundo. Os preços das facas aumentaram (já para não falar da mania de muscular os pescoços) e ele, que matava por amor à arte, já assassinava — ou melhor, tentava — com faquinhas de plástico, daquelas que levamos para o piquenique. De respeitado carniceiro passou a anedota. Ali vai o ex-assassino, gritava a turba com uma toalha de piquenique a servir de turbante.

Foram tempos difíceis, começou a aceitar trabalhinhos, ele que antes dizimava uns e outros sem receber algum. Na melhor das hipóteses, rapinava o que havia na carteira. O seu tesouro? Uma arrecadação apinhada de caixas de sapatos nas quais abundavam talões multibanco. Seja como for, teve de se fazer à vida.

Certo dia, encarregue de apertar o gasganete a um gajo qualquer, foi dar com o sacana dentro de um poço. Sentiu que a morte se adiantara, que lhe andava a retirar o pão da boca. Pode ser que dê, pensou Irineu. Com efeito, era indispensável que o cadáver fosse içado cuidadosamente do poço para que não raspasse nas paredes do poço. Esfoliei-o até à morte, eis uma frase que estava fora de questão. Teria de dar um jeito à cara verde — lá teria de recorrer à maquilhagem da filha mais nova. Uma vez levada a cabo esta precaução preliminar, apresentou o corpo a quem era de direito de molde a receber os 50 paus — sim, neste país não se dá valor aos artistas. Ah, mas este não é o Carlos. Foda-se, disse Irineu num tom de tenor. Cansado de tantas dificuldades, desistiu do nobre ramo do assassinato e abriu uma rulote de bifanas, negócio que gere com êxito estrondoso desde então. Ao que parece, as pessoas estão mais dispostas a comer bifanas que a morrer.

assassino sem posses

 


Roberto Gamito

27.12.21

A publicação desta croniqueta alarmará os aspirantes a virtuoso, que os há em qualquer buraco, salvo conas, que aí mora o pecado, mas é esse mesmo o meu intento. A sociedade de cavalheiros de piça engessada tem dado à luz pelo orifício não convencional uma prosa a direito (redundância, se formos vasculhar ao latim o significado de prosa; foda-se, escrevem como se fossem viver para sempre) de tal forma enfadonha que o comércio de calmantes está nas ruas da amargura. Há dias caiu-me no colo um relato segundo o qual um distraído, um daqueles ingénuos que acredita que a ida ao bar com os amigos é sinónimo de troca de piadas e comércio de alarvidades, sentou-se e de supetão, ao embrenhar-se na conversa com os convivas, murchou-se-lhe o sorriso. As histórias acaloradas de sexo, amiúde inventadas (ninguém fode assim tanto, até o caralho mais trabalhador tem dias de folga), deram lugar a discursos propagandísticos, quer dizer, troca de bolas, as típicas de activistas de sofá. Se acreditarmos em tal coisa, essa coisa torna-se verdade, não era essa uma ideia-chave no Elogio da Loucura? O que faço eu com este manancial de piadas a formigar no meu miolo, cogitava o ingénuo que aos poucos, para se irmanar no grupúsculo de virtuosos, se despojava de tais pensamentos pecaminosos.

Longe vão os tempos em que Swift sugeriu que, em tempos de escassez, se comessem crianças. Bem apanhado: pequenitas, carne tenra e fáceis de caçar. A piada é hoje um lince ibérico. Um bicho em vias de extinção que ignora como se acasala. Não preciso, porém, de me dar ao trabalho de descrever o cenário trágico em que o Humor se encontra. É na forca, a escassos minutos do fim, que me coube a honra de ser escolhido pelas musas mais coxas, ao que pude apurar, dado que é o momento capital onde a cabeça é habitada de pontas soltas, legaram-me o difícil papel de contar o que é a vida.
E a comédia, por arrasto. Quem não consegue ironizar a sua própria imagem, desconhece-se por completo. Perde espessura e torna-se tão magro quanto uma folha branca.

O fã contemporâneo de comédia recorda-me o rico apinhado de manias que vai ao campo pela primeira vez e diz: “Venho ao campo e é só arvoredo; não há nada para ver.” No tocante ao diletante do humor, a frase é mais fina: “Venho ao sítio onde se pratica comédia e é só comédia; não há nada para ver.” Pelas suas tendências, podemos muito bem chamá-la Sociedade para o Incitamento ao Chapadão nas Fuças. Não condeno o humorista que, após ouvir tamanha baboseira, desça do palco e comece a distribuir papo-secos de qualidade, qual padeiro parisiense, ao seu público. Querem humanidade?, vocifera o comediante, tomem-na toda, agora engulam este caldo de porrada — e só vos faz é bem.

A literalidade é rei e senhor desta ligação entre artista-público. Mas não vejo rei nenhum, questiona o público. No máximo, rainha, opina outro gatuno de lugares no pódio. Seja como for, este mundo veio parar-me às mãos por acaso, logo eu que vivia no passado, apesar de todo o cuidado posto em esconder-me do presente e nunca ter agarrado nenhum papel activo no teatro da sociedade. Contentar-me-ia com o magro papel de figurante. E todavia.

Torna-se evidente que o público exigente (como se auto-intitula, ah, as ofuscantes proezas de um umbigo inchado — o médico que veja isso) e sem dentes exigirá da comédia um estilo que não lhe pertence. A comédia pode continuar a laborar desde que deixe de ser comédia. É como que declarar: “Gosto de tudo em ti, mas mudemos cada pedacinho de ti, assim não pode continuar”. O Narciso contemporâneo é um Deus tardio. Não descansa enquanto não fizer o outro à sua imagem.

O mundo evolui e a comédia deve evoluir também, como se ouve por aí em qualquer beco deste século. Evoluir para onde? Para tapar os buracos da vossa fragilidade narcísica — a qual é recebida pela mente como um narcótico? Vamos lá ver uma coisa, meus campeões: a arte não está ao serviço de ninguém. A arte não veio ao mundo do Homem para ser aia do vosso ego, não está cá para fazer festinhas — o seu verdadeiro papel é conduzir-vos, em virtude de um soco imprevisto, ao tapete.

E a arte? A arte também tem culpas no cartório. Nunca pensei que meia dúzia de néscios palavrosos, três para dizer bacoradas, três para funcionar como coro, pudessem pôr de joelhos algo tão esquivo e tão tentacular como a arte.

Mas quem é esta gente, a qual ouve as sereias pelo megafone do seu umbigo a comunicar magotes de patacoadas? A comédia não pode continuar a ser o que sempre foi? Ignoro como responder a esta questão senão com: a arte nunca é aquilo que pensamos dela, está sempre um passo atrás ou à frente. Abaixo os inteligentes! Abaixo a metáfora! Abaixo aquilo que não for um reflexo enaltecedor de nós próprios! Dinamitem os cumes, preencham os vales, não queremos sentir o desconforto da vertigem, gritam uns e outros a cavalo do pónei amputado da empatia.

Platão, como muito bem se sabe, é o maior mentecapto de todos os tempos, nem todos podemos ser brilhantes na vida, contradiz — atentem no descaramento deste bandalho — os activistas mutantes no respeitante à palavra. Então quer dizer que o problema permanece indecidido. Quer dizer que a verdade nos é inacessível, como nos afiança Goethe? Mais luz, mais luz, mais empatia, diz o Werther contemporâneo antes de estoirar os miolos. Era só o que faltava a verdade ser-nos inacessível! É possível que, uma vez por outra, já tenha mandado esta nova casta de bípedes para a casa do senhor do baixo ventre. Se isto não é ser virtuoso, e Aristóteles não me deixa mentir, gostava então de saber o que é.

Por isso lhe disse logo: Carlota (Diogo ou Rodrigo, tanto faz), estás enganado a meu respeito. Eu sou um vulto, já morri faz trinta e sete anos. Simpatizo com a tua tristeza, mas estás impossibilitado de me assassinar. É muito melhor contentares-te com uma solução mais humilde, porém com resultados mais imediatos, do que andares para aí armado em parvo — atitude que te celebrizou —, a saber: estar caladinho até te surgir uma ideia, ó traficante de citações.

A ideia prevalecente era a de que se enforcara há muito, mas nem por isso deixara de contar a sua história. Ah, caramba, fomos apanhados na esparrela da ficção, numa espécie de desdobramento literário. Quer dizer que todos estes personagens são apenas várias faces de um tipo?, questiona-se Deus ao olhar-se ao espelho enquanto pensa na humanidade.

Avancemos uns belos anos. Começou, como a História do século XXII nos há-de elucidar, com o encontro fatídico de um homem puro com uma piada no twitter. Riu-se e cometeu a imprudência de seguir o humorista para, veja-se a loucura, pôr os olhos em mais piadas. O homem puro como um anjo foi adquirindo maldade em virtude das piadas — facto confirmado por aquilo que, daqui a uns anos, se chamará “Ciência”. Achou graça a uma piada na qual a velha era espancada; começou a espancar velhos depois das cinco, que era quando saía do trabalho; riu-se de uma piada de pedofilia, tornou-se pedófilo, ele que nunca se havia aproximado de uma criança para encetar uma conversa; gargalhou com uma piada de violação, tornou-se, como esperado, violador. Semanas mais tarde escutou uma piada sobre ditadores, tornou-se ditador (esses eram os anos de ouro da ditadura, qualquer um podia mandar vir um starter pack ditador da Amazon). Por azar, num dia que até lhe estava a correr bem, escutou uma piada de suicídio e não teve outra escolha senão matar-se. Doravante a comédia como hoje a conhecemos foi proibida. Surgem rumores da existência de um punhado de locais nos subterrâneos — nos esgotos, melhor dizendo — onde se reúnem os últimos apreciadores de comédia e um cacho de humoristas que logrou escapar à purga. Na superfície, persistem os Clubes de Comédia nos quais são permitidas — apenas — piadas sobre marcas de bonés.

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Roberto Gamito

24.12.21

Novo episódio de Tertúlia de Mentirosos.

Hugo Pinto, Tertúlia de Mentirosos

Hupo Pinto. Realizador.

Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber:
a primeira curta, escolha de actores, transformação de um conto em argumento para uma curta, escola da televisão, realizador Hugo e editor Pinto, relação entre realizador e actores, os efeitos positivos e negativos dos prémios, Viver Todos os Dias Cansa de Pedro Paixão, Humor no cinema português, plataformas de streaming, a pandemia, patrocínios, licença para gravar no exterior, a relação com o guião, viver com as personagens, Joker.

(Partilhem, sigam o Tertúlia de Mentirosos no Spotify e dêem 5 estrelinhas no itunes)
 
Podem ouvir o episódio aqui ou noutra plataforma de podcast.

Aqui


Roberto Gamito

24.12.21

O Natal modifica a fauna da pastelaria — dão à costa novas espécies de peixes. Uns ficam com os olhos esbugalhados a olhar para a vitrine apinhada de bolos natalícios, quais peixes hipnotizados, outros, mais indecisos, são uma espécie de zorros que apontam o dedo qual florete a qualquer coisa que se assemelhe a um doce.

Há velhos em fila indiana a babar-se enquanto namoram o bolo-rei. Há os que, mais bebidos, escrevem quadras em homenagem ao bolo-rainha. E não vai um escangalhado?, pergunta o pasteleiro. Escangalhado já eu estou, riposta agilmente o velho. O Natal é época de ter mais olhos que barriga. Por esta altura, o português é uma criatura cheia de olhos. Eu, que de burro tenho sempre um pouco, olho para a cena como para um hieróglifo, tentando decifrar a sua razão de ser, da qual sei apenas que é tradição, que existe e está aí para as curvas. Não sou nem quero ser o detractor do bolo nem do Natal. Cada um é livre de encher o cu com o que mais gosta. Estranho. O Natal, exortando ao amor e à autenticidade, conduz-nos a gigantescas falsidades. Se usamos a comida para nos refugiarmos do mundo, não será o Natal a época do ano em que o Homem atinge o cume da falsidade?

Preenchemos o vazio existencial com comida, todavia ele cresce.
Teorias, teorias. Intrometem-se na minha existência e não me deixam saborear o pudim de mente vazia. Será que não consigo esquecer a morte entre garfadas? As várias teses de que o Homem é capaz de se transcender em épocas como esta poderão revelar-se meras verbosidades. É o costume, porém com uma mesa repleta.

Entrementes, chega a minha sobremesa preferida. Amaina, por agora, a tempestade.

Peixe fora de água

 


Roberto Gamito

22.12.21

Careço de meios financeiros para contactar com a vida. Não é com cafés e garrafinhas de água que a engodo. Não estou a lamuriar-me por ser pai solteiro de uma carteira anoréctica, limito-me a dissertar que uma coisa está dependente da outra. Sem carteira gorda é difícil aproximarmo-nos da vida com a pose certa. Cada passo que damos tem um custo associado. Em havendo cabeça, tal dá origem a uma atmosfera fantástica, uma trapalhada sofisticada que intoxica a mente com mundos baratuchos, os quais nos consolam nos períodos de carência.

Enquanto turista do mundo anterior, passeio-me enfarpelado como um rei, montado num unicórnio barrocamente adornado, enquanto saúdo as gentes que choram de alegria ao contactarem comigo. À medida que avançamos na feitura desse mundo consolador, afogamo-nos por completo numa massa de abstrações — em suma, um mundo almofadado onde as arestas cortantes foram abolidas.

É difícil assistir, sem sentir embaraço, à sua demanda rumo à trapalhada fantasiosa e à transmutação da gata borralheira em princesa, cogita quem está de fora. Se ele tivesse conservado o ouvido, a vida tê-lo-ia posto ao corrente de alegrias mais em conta. Ao estreitar laços com a fantasia, enceta a dramatização do real, tornando-o inacessível pelo seu próprio pé. A imaginação fértil — a rede de onde escapa todo o peixe miúdo. De olhos fechados, acredita ser caçador de episódios mirabolantes, rastreador de perfumes que o conduzirão ao amor, uma espécie de flautista de Hamelin atrás do qual seguem, em fila, todos os sonhos da humanidade.

Ele, que não tinha nada de génio e tudo de estúpido, começou por remendar a sua biografia com pequenos fogachos da imaginação e acabou por se aprisionar num mundo mirífico. Foi um período de existência fervilhante, um período de grandes tumultos — as ideias ultrapassavam os obstáculos à primeira. Todavia o mundo permanecia o mesmo.

Mundo interior

 


Roberto Gamito

21.12.21

Continuando na senda do episódio do ano passado, os melhores livros que li durante 2020, decidi levar a cabo a edição de 2021. Eis uma lista sumária de alguns dos melhores que li durante este ano. Cada livro é acompanhado de um breve comentário. Foi um ano pautado pelos Contos e pelo Ensaio. E muitas releituras, daí que a poesia, o género que é mais querido, não tenha tantos representantes como em anos pretéritos. Ao terminar o episódio, dei-me conta que me esqueci de alguns vultos. Só para citar dois, A Era do Capitalismo da Vigilância de Shoshana Zuboff e Confabulário de Juan José Arreola. 

Túnel de Vento, Roberto Gamito

Túnel de Vento é simultaneamente um podcast e um erro.
Há improviso, humor, lamirés sobre literatura e poesia e, de longe em longe, javardice de elevado quilate.
De Roberto Gamito e suas vozes.

Espero que gostem do episódio. 

Podem acompanhar o Túnel de vento nas plataformas habituais: Soundcloud, Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts

 

 

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