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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

20.01.22

Escrever prende-se com a necessidade de arejar a mão. Conspurcamo-la com tarefas úteis e vagamente lucrativas e esquecemo-nos de a treinar num itinerário de apeadeiros vãos onde nada se concretiza. Embora não rejeite o apetite da turba pela carreira que há-de levá-la aos píncaros, Deus queira que sim, que o mundo não está para pobres, enamoro-me mais facilmente pelo sujeito agarrado ao trabalho inútil.

A história empenha-se unicamente em mudar o rosto e o nome da mesma luta. Durante milénios são separados os carrascos e as vítimas, sendo que, em certos períodos festivos, durante os quais o sangue é elevado a deidade, há uma troca de cadeiras.
Aquilo que o espírito engendra é um rol de qualificações novas; de tempos a tempos o Homem rebaptiza cada migalha do mundo, procurando nos novos apodos um novo começo. E tudo se repete.

Mudamos o nome do mal como mudamos os lençóis da cama. Como imaginar a vida dos outros, quando a nossa parece o centro do universo, cuja força gravitacional atrai todos os átomos do Cosmos? Coro de patetas, grupelhos de anestesiados, bolhas de estúpidos e nós, à parte e com as ideias e as palavras certas, os Esclarecidos. O acaso nunca nos apanhará desprevenidos.

Ao virarmos a cabeça, encontramos uma criatura agarrada aos livros e ao caderno a fervilhar de versos, vemo-lo mergulhar em apneia na folha num mundo injustificável, numa pilha de linhas eufónicas e de desejos cifrados, os quais comunicam quando muito sub-repticiamente com o mundo. De pronto, catalogamo-lo: mais um louco, mergulha mas não pesca peixe algum.
Se somos o centro do universo, como alegam os mais fanáticos narcisistas, se a nossa convicção é prima da verdade absoluta, como tolerar esse exercício fútil da escrita, como deixar passar a paixão posta em discurso dos escribas destituídos de faraó, como consentir que desgraçados semeiem os primeiros grãos de uma utopia numa folha povoada de emendas?

Enquanto o nosso miolo ingénuo e o nosso coração aprendiz se encontrarem hipnotizados por teses umbigocêntricas e nos deleitarmos no universo do nosso próprio reflexo, prosperarão palavras embusteiras como empatia e Outro, vogarão ao sabor do acaso ou da agenda — episódio revelador do nosso falhanço enquanto transmissores de humanidade, o qual, uma vez dissecado na folha, se revelará a atitude mais antiga de sempre.

Viver é um verbo intransmissível porém em parte comunicável.

apetite pelo inutil, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

19.01.22

Como recompormo-nos após o saque da juventude — ela que nos ludibriou com o mundo luxuriante todo frutos e nos entregou à idade adulta depenados e com uma verticalidade postiça. Somos abandonados dentro de uma caixa cheia de côdeas. Os sonhos deram origem a migalhas. O inferno é um paraíso quando comparado com a cabeça de um Homem. Tudo o que há foi parido na cabeça de um homem desesperado. Nada e de supetão tudo — um tudo apinhado de unhas, mandíbulas e fome. Cercados de um sem-número de predadores não nos resta nada senão simular no grito uma avalanche, rezando para que os predadores, canibais e necrófagos tombem, uns atrás dos outros, como peças de dominó. Recompormo-nos de um itinerário de faquir: trilho de áscuas, vidros e promessas quebradas. Em habitando a víscera-mor, seja um deus ou uma mulher elevada aos píncaros, o nome sairá escoltado por uma procissão de berros e gemidos e roncos animalescos. Eis as crónicas de um homem sem asas.

Entrementes, envelhecemos. A idade adulta assemelha-se a uma doença à qual tivéssemos sobrevivido em virtude de termos pago um preço elevado, uma perna, um braço, uma porção substancial do cérebro. Não chegamos inteiros à idade adulta. Cada ser humano é uma variação de Proust: dentro de nós engendra-se, ora às escâncaras, ora às ocultas, a composição de Em Busca do Tempo Perdido. O resto da vida é tentar regressar a um passado que aos poucos vão perdendo os contornos. Eis-nos Ulisses rumo a uma mancha situada na província das assimptotas. Dotados de uma réstia de clarividência, damo-nos conta da impossibilidade de regresso. A cidade de onde partimos já não existe, já não existimos na íntegra, somos outros, somos, com efeito, o cadáver esquisito posto em marcha pelas mil e uma mãos surrealistas de que a vida é dotada.

E de um momento para o outro o concreto passa a abstracto. Que terapêutica empregar contra um quadro mental que não passa de um borrão — ele que pode ser tudo e nada simultaneamente —, de que modo nos podemos desembaraçar da doença se nos fundimos com as sequelas. É impossível apagar o legado das chagas sem nos aniquilarmos.

Exceptuando um punhado de desocupados mais versados em voos poéticos e os reis do absurdo e demais bailarinos cujo passatempo é ensaiar as primícias da loucura, todos os espíritos parecem subjugados por uma vocação que não lhes pertence.

Só aqueles que se emanciparam — e para quê, perguntar-me-ão —, uns através do questionamento perpétuo, alcançando o caroço do nada, outros através do bailado da loucura, ao passo que os demais, mais sensatos ou mais loucos que os loucos, resolveram abrir mão de tudo o que é palpável.

A obsessão insípida de ser útil tornou-nos primos dos objectos. Num primeiro encontro, fitamos o outro como quem compara iogurtes. A humanidade, a haver, existe como vestígio na tabela de componentes. Alcançámos estas ideias sentados, numa sala de espera, na qual esperamos um diagnóstico que pode, qual fadinha malvada, mudar o curso da vida num segundo. Sou um, ninguém e cem mil. Estou de acordo em parte, senhor Pirandello, todavia cem mil são abatidos logo que o cancro é propalado pelas trombetas da medicina. Doravante seremos simultaneamente um e ninguém.

Quando, no mundo actual, o trabalhador é tão-somente átomo neste universo decorativo do capital, onde as ficções se encavalitam gerando pirâmides bizarras, as quais podem tombar graças a um suspiro, com efeito, há muito deixou de ser uma mais-valia. Mais rente à verdade, o trabalhador é um empecilho com pernas, feito barata tonta, porém vulnerável como porcelana, o qual pode ser visto, caso sintam necessidade de serem turistas de uma tragédia actual, na coluna mais tristonha da folha de cálculo. Presentemente, somos uma despesa nómada, obrigada a esforçar-se a toque de chicote subtil, mas nunca a transcender-se, para isso é preciso ter posses, o Deus no trono, não esquecer, é o dinheiro. Pedem-nos o infinito, exigem-nos a omnipresença, estar em mais de um sítio ao mesmo tempo, e, inesperadamente, dado que fomos feitos à imagem de um antigo Deus falecido, fazemo-lo. Somos pequenos deuses precários, não há ninguém que preste culto ao trabalhador. Não há fiéis nem aplausos, há crucificações e trabalho no dia seguinte.

Encontramo-nos à mercê deste jogo sinistro, vítimas de um diálogo estéril, vigiado e guionado. O improviso é punido.
Somos uma família, apesar do chicote incansável, apesar dos salários cadavéricos, eis o que diz o aparato do branding no interior da empresa. A economia tornada negócio de família pela comédia mais negra. Se assim é, não me admiraria nada se isto tudo acabasse numa chacina.

Calados, os trabalhadores comunicam a sua dor e a verticalidade murcha com o olhar, é vital perseverar no sorriso, é-nos proibido quebrar a ilusão do cliente: o mundo é belo, recheado de oportunidades, eis o que assevera o punhado açambarcador dos lucros.

Dentro de cada um de nós, há uma guilhotina. Dissimulamos o carrasco numa avalanche de boatos, não matamos o senhor mas figuras virtuais, geramos o milho para pardais ávidos de tagarelice em vez de minar a arquitectura vampiresca do Capital, sobre a qual se apoia a Grande Ficção.

Não é fácil ser iconoclasta, destruir um ídolo não é para todos: dominar a marreta requer muito tempo, é preciso promovê-la ao estatuto de caneta e avançar sobre as estátuas de deuses erigidos pelo dinheiro insuflado pela ganância qual poeta prolixo que rescreve a História da primeira à última linha. Não há meias revoluções. Espártaco que o diga. Parar é morrer.

Mas como virar os seus olhares povoados de iguarias de faz de conta para os cantos mais obscuros onde a patranha não sobrevive? Embeiçados pela promessa de conforto, parece que somos incapazes de nos comovermos quando assistimos de camarote a essa fanfarra cinética que é a extinção da liberdade.

Às carambolas entre os meus jugos, os meus arrependimentos, os meus amores, os meus fracassos, há um pensamento que não se dá por vencido. Teria defendido o Homem se acaso acreditasse nele, cogitam alguns, defendê-lo-ia contra as cruzes agendadas, contra a invasão dos papagaios catequistas e contra a avalanche de mártires por geração espontânea. Nos olhos vazios dos bustos, refiro-me às pessoas, não há pinga de depois.

Entretanto, há alguém que desfigura o quadro dos cabisbaixos, e ousa olhar para cima, saciando-se com um céu a abarrotar de estrelas: Qualquer dia arrasto Roma — uma cidade inteira — pelos cabelos, ato o século à minha carroça e hei-de passear-me com o seu cadáver sem recear ninguém nem tão-pouco a morte. Talvez isso acorde o Homem.

O Espectáculo do Tédio

 


Roberto Gamito

18.01.22

Quando, em tantas estradas e precipícios despovoados de metáforas, os nossos corações fizeram as vezes dos olhos e se recusaram a fitar o horizonte, estavam a preservar, através da sua cegueira, a carne atormentada. As nossas lágrimas desperdiçam tempo connosco. Apesar da dor, habitual freguesa da nossa cabeça, tudo se mantém decadente. A recusa de dar livre curso ao grito animalesco, o qual nos libertaria do fardo de décadas, leva-nos pela mão até à província do tédio. Nessas terras interditas ao homem contemporâneo há duas e apenas duas ocupações: crescer ou morrer.

Um vive como se fosse eterno, varre a morte para debaixo do tapete; o outro pensa constantemente no fim e vive a vida de suspiro em suspiro.

A impossibilidade de dizer algo acertado alimenta em nós o gosto pelas coisas barrocas e faz com que nos devotemos a arranjar legendas para todos os quadros. A nossa cabeça tornada exposição movediça apinhada de quadros mutantes. Aquele que não conhece o tédio ignora o seu nome. Prisioneiros estúpidos da pirotecnia do espectáculo, hipnotizados pelo som e pela fúria da cor mansa, fundamos cidades entre nós e o nosso reflexo.

Aquele que levou a cabo o exorcismo pelo seu próprio pé, sem auxílio de terceiros, sejam eles de origem terrena ou divina, aquele que não se entregou à empreitada da angústia e sentiu, no seu estômago, a biblioteca do mal, no interior da qual personagens de alto coturno engrossavam a definição de morte, que nunca saboreou uma falésia com os olhos apagados de esperança, que nunca soletrou a sua própria extinção num poema de Georg Trakl, nem provou os arpões de um deus enraivecido no lombo, jamais se curará de si. Ao passo que aquele, engodado a princípio pela morte, acostumado à disciplina de povoar de gente a folha assombrada e ao dispêndio inútil porém apaixonado de energia, mestre no capítulo de fazer tudo para ninguém, aproximar-se-á do fim sem gaguejar e logrará pôr a morte para trás das costas. Sem luzes e sem as ilusões das palavras fortes, afastados os véus, guilhotinados os deuses, dizimados os demónios, estaremos nós em condições de habitar, finalmente, o nosso nome?

empreitada da angústia, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

17.01.22

Na mesma linha, o autor x e o autor y, empacotados como clássicos, vindos da província estrangeira da literatura, comunicam em torno da mesma ideia puída, guiados por uma mão tempestuosa. A loucura de pregar o óbvio nunca me seduziu. A velocidade com que diploma fanáticos enfurece-me: é um precipício almofadado, sem arestas cortantes, que não nos impede de cair. A morte talvez nos pudesse ensinar alguma coisa. O grito não é uma escola. Se a ideia é passar um século aos gritos ao menos inscrevam-se em aulas de canto. Esta repetitiva porque breve arte de seduzir os humanos com bagatelas é o último esforço para que haja refrães universais. Mas para quê? Para nos curarmos de que doença?

Só alguém vertical sem seguidores à vista, dado que à sua volta vivem um sem-número de círculos de lume que impedem a crença de se aproximar, pode ofender um século impunemente. Como argumentar com um homem que escolheu para si o papel de Diabo? Como refutar um homem que arde sem ambicionar o depois? Como dinamitar um homem cuja língua foi apadrinhada pela Morte?

É um bárbaro canoro, eis a conclusão precipitada, um homem que aprendeu a ziguezaguear o labirinto da farsa com o Minotauro. Todo o progresso vai no sentido de civilizar a agonia. Nas palavras certeiras de Cioran, a vida cria-se no delírio e desfaz-se no tédio. Nestes anos em que a alegria me visitou como quem visita um familiar no lar, isto é, esporadicamente e sem se demorar, o tédio buscou inspiração na minha ausência de afazeres pirotécnicos. O Homem — o maiúsculo e o minúsculo — apinha os minutos de espectáculos para que o tédio não singre. Temos medo daquilo que o tédio poderia dizer de nós. E se nos legendasse de cadáveres, não adiados mas pontuais? E se a vida não passasse de uma farsa gerada pelo delírio? Conversarmos sem parança, não consentimos que o silêncio se espreguice entre as deixas de um diálogo atabalhoado. O tédio revelar-nos-ia sem vernizes, monstros sem dentes nem garras. De facto, tentamos enganar a fome com alimentos de faz de conta. O coração definha, o cérebro definha, a alma definha: injectamos a luz de um falso Deus em cada átomo, todavia permanecemos vazios. Seduzidos pelos holofotes que criam anjos e demónios por geração espontânea, somos cachalotes derretidos nas margens surreais de um século farto e decadente.

Numa hora em que ninguém desconfia, a ideia funambulesca percorre os fios altos e abandonados do cérebro. Não há público, nem a salvação proporcionada pelo aplauso.
Uma viagem fabulosa entre ídolos caídos, deuses de gatas, constelações de sonhos feitos em papa. Não há parede à altura deste quadro.

O sucesso e o fracasso são-me indiferentes. Tudo depende da dimensão do fio. Um fio infinito, mesmo para o mais virtuoso funâmbulo, significa partir em direcção à morte.

O fanatismo do óbvio e a obsessão pelo útil são-me estranhas. Desesperado por instinto, elíptico por vocação, triunfo sobre o desfile de carcaças que fui sendo. Novas fogueiras, porventura sublimadas, prosperam à sombra de novos dogmas.

Banalização da banalização

 


Roberto Gamito

16.01.22

Ó néscio, rabujam vocês, ó tu cuja mão afónica se entrega ao bailarico da descrição e pintas o mundo de cores cadavéricas, tu enganas e reduzes os homens a pilhas de bagatelas. Acaso não há por aí um magote de figuras inspiradoras que te ensinem a verticalidade heróica? À luz dos critérios actuais, vocês nem sequer existem, dado que não falam coloquialmente. Frases como “a tua nudez irá iluminar-me, mesmo havendo a possibilidade de ser pronunciada por um escroto mais inspirado — a testosterona enquanto musa ignorada —, os pais e os fiscais da ficção proíbem-nos tais galanteios barrocos. Em suma, citando um velhote cá do sítio, o último sábio residente que passa recibos, sendo que o resto da turma do cume são sábios precários obrigados a vergar a mola e aconselhados a ver na sabedoria um biscate sem fins lucrativos — demasiada batata, pouca carne. Está aqui um caldinho!

Encheram-nos os bolsos de promessas e musicaram-nos o esqueleto com pancadinhas nas costas, seguimos as pessoas erradas até aos sítios certos. A mãe levava-lhe um tupperware de bons conselhos semana sim, semana não e mesmo assim ingressou na má vida. Que é como quem diz, atrás da rata de Hamelin, uma fila pirilau de flautistas reformados. Concordo, esta crónica dá guarida ao disparate. Agora caladinhos que nem ratos que o meu coração vai cantar o fado.

Que lides mais estranhas são estas em nossa casa?, pergunta o cérebro ao coração apaixonado. O homem, o qual fazia gato-sapato do cérebro para não tropeçar no primeiro vigarista que lhe aparecesse à frente, dirigiu-se cavalheirescamente à mulher: “Princesa de garra afiada, posso adicionar uma quantidade generosa de chouriço à sua vida?” Ao que a pretensa princesa ripostou, sou vegetariana. É o que eu digo, a mulher actual é imune ao romantismo. O século XXI é um terreno estéril no tocante à plantação de amor e de nabos. Como homem feio e solitário, isto é, agricultor caseiro, que passa a vida a enterrar o nabo em ficções, exijo um subsídio hábil em cobrir as despesas da minha fome.

E depois? Enquanto poeta-sapateiro armado em menino de ginásio tenho cabedal para um único poema. Eis as sobras em discurso.
Ao darem-se conta do engodo, os átomos da fila metamorfosearam-se num ápice sem auxílio de fadas. Do balcão para a pista de dança, o orçamento da imaginação não dá para mais.
Eis a magia da zaragata: indivíduos aparentemente civilizados transformados em animais graças ao álcool. A magia existe é preciso é saber procurá-la. Finda a rixa, distribuídos os papo-secos pelos carenciados, o velho sábio legenda o quadro: demasiada batata, pouca carne.

demasiada batata, pouca carne

 


Roberto Gamito

14.01.22

Desafortunadamente, o mundo das letras e por arrasto o das carnes estão a ficar doentiamente chatos. De há uns tempos para cá, é raro ver uma ratita alegre e um piçalho folgazão a espreguiçarem-se sem rédeas numas linhas de texto sacrílegas.
Pôr Jesus por extenso, que é como quem diz, ressuscitar Lázaros de baixo ventre com meia dúzia de palavras: eis um labor digno a que poucos se devotam. Ai meu Deus, o que pensarão de nós. Resultado: uma população de colhões e clítoris ou clitóris agrilhoada, obrigada a discursar numa língua sem pinga de tesão. Esta mão e a sua entourage pouco dada à pureza — refiro-me aos neurónios, não sejam porcalhões — dar-nos-á um nobre contributo: uma palmada nas nádegas do mundo com vista a espicaçá-lo e a catapultá-lo para as paradisíacas margens do prazer.

Seguem-se alguns fragmentos, os quais oscilam entre o relato e a ficção mais disparatada.

Mesmo nas barbas do abade, a freira entregava-se a um esfrega-esfrega sem parança. Segundo o ornitólogo, a pássara estava na muda da pena. Deus é amor, comentou a freira ao dar-se por satisfeita.

Num aposento menos religioso, o homem de picha brincalhona malhava com amor a cona húmida. Tudo isto acompanhado de gritos e deixas: “Fode-me, caralho, mais depressa! Fodes-me como se eu fosse de porcelana. Não metes o suficiente, gemia a fêmea. É o que tenho, ripostava o macho, onde é que vou arranjar mais caralho a umas horas destas — está tudo fechado ao Domingo.”
Em todo o caso, introduziu-lha na racha cantante, mergulhou-a até ao fundo, como se procurasse uma civilização perdida, e ela, não sei se séria, se a gracejar: “como é longa e traquinas”.
E vieram-se por inteiro.

O que importa é fazer amor
ora nas torres de marfim
encontrar entretém numa punhetita
ora num chavascal animado
por uma turba de conas famintas.

Como adorador de fanesga,
introduz a gaita
e seja nossa a tua música.

Será sempre uma distracção frutífera apresentar ao outro o que se acoita sob a farpela. Não há necessidade de votar a cona ao anonimato. Se há fome de celebridade, é encorajá-la a perseguir esse sonho.

Entretanto, num quarto numa dessas vilas de nome orelhudo, ouvia-se: “Lambe o néctar testicular, minha linda, pois amanhã apetecer-te-á esporra e eu posso já cá não estar". A mulher comparava a picha do parceiro com as que havia guardado na arca da memória e suspirou: ”Esta cona já viu melhores espécimes, enfim, é trabalhar com o que temos”. E todavia ela contorce-se, como diria Galileu se tivesse trocado a Física pelo mundo da pornografia. A porta de casa abre-se e o tesão sublima-se, passa de sólido a gasoso. O calmeirão foge com passinhos de bailarina com a picha tesa na mão, ao passo que a cona desolada cantará elegias que atravessarão os séculos. Foda interrompida é tragédia merecedora de todas as nossas lágrimas. Venham-se até se converterem em animais, até se esquecerem que sabem falar, não consintam menos que isso.

As fodas abortadas pela ingenuidade ou pela falta de traquejo na arte do engate amanhã roer-te-ão os tomates, meu caro homenzinho inexperiente. Propagandeia o vergalho, o teu moço de recados solícito, sem descanso, faz com que a agenda cresça em horas para acomodar fodas de última hora.

Enquanto as carpideiras choravam o enterro do caralho, o menino da cidade moveu-se para o campo à procura de cona biológica.
O que só prova que a malta nova liga muito à alimentação.

Quando ela ficou tesa como um cadáver, a princesa de anca travessa sovou o mangalho com a fenda palpitante. Malhou com tal fervor que fez lembrar um ferreiro da Idade Média. Só química nesta relação! De seguida, mamou esforçadamente o mangalho para deleite do homem. Por todo o lado espirravam moles de descendentes, por assim dizer, jaziam esporrados pelos quatro cantos do quarto vários projectos de futuras civilizações.

A queda do êxtase ocasionou alguns pensamentos pouco dignos, a saber: o almoço de amanhã, ter de levar o carro à revisão entre outras bagatelas. O homem tentava animar o soldado esforçado recorrendo à memória, bisbilhotando a secção das conas de colecção, na caixa e por abrir, de molde a não desvalorizar.

Após extenuantes negociações, a cona apossou-se do fundibulário murcho. E ensacou, tipo esquilo, caralho e colhões na bochecha. Não me perguntem se tal é possível, estou a vender o peixe ao mesmo preço que mo venderam.

O nível da esporra continuava a subir, os noticiários não passavam outra coisa. Ai o aquecimento global a chegar ao reino das cuecas húmidas. As terras foram conquistadas a pouco e pouco por cursos de sémen. As castores abandonaram os rios convencionais e mudaram-se para o rio argênteo — e os mais galhofeiros foram a correr construir um dique.

Reunidas na cave de uma cona experiente, as conas aprendizes formaram a guilda do pipi. Ao longo de séculos, este grupo secreto tentou engendrar uma prática que muitos julgaram impossível. Grosso modo, um pontapé nos tomates que, além de provocar a proverbial dor, obrigava o homem a esporrar-se. Se bem feito, isto é, se todos os colhões do mundo fossem brindados ao mesmo tempo com esse pontapé, o planeta seria inundado de leite de macho. Tal como nas esmolas, cada um contribuiria com a sua pinguinha.

Em menos de um ai, as mulheres dos quatro cantos do mundo (nessa altura o mundo era demasiado quadrado para ser redondo) abeiraram-se dos homens que viam naquela aproximação um prelúdio de festa rija, desabotoaram-lhes as calças, apoderam-se dos colhões ingénuos, sopesando-os qual merceeiros, e vá de pontapé nos abonos. Reza a lenda que, após o dilúvio, até o deserto começou a dar fruta.

Dilúvio de esporra, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

13.01.22

Amadurecem os frutos da imaginação quando passam pelo crivo do desejo. Eis uma frase descabida sobre a qual não vou acrescentar pevide. Mudemos de mão. Estava eu a roçar os colhões na corcunda da velha quando, de chofre, fui assaltado por um bando de ideias brincalhonas. Eu, líder indestronável dos palermas, encabeçando com lérias bandos de patos bravos, ia dotar o muro velho, pintalgado de palavras de ordem, de mais uma camada de esporra. A estafada metáfora, o muro, merecia um novo recomeço — e eis-me disponível, de piçalho no ar, fazendo jus à celebre frase segundo a qual o homem é um animal político. De rostos escancarados pelo pecado, as mulheres humedeciam-se à custa de poesia sacana que joeiravam, à sorrelfa, da conversa dos machos de braguilha entrevada. Cercadas de rebotalho, e com a cona em condições de semear arroz, fechavam os olhos e imaginavam os homens e os caralhos em falta.

Bem perto dali, a picha vegetava nas calças, qual guerreiro após longa batalha. Depois de ter pelejado com uma turbamulta de cricas assanhadas, consentiu que a vitória o murchasse e começou a escrever as suas crónicas. Citemos uma nesga do livro que há-de ficar bem enterrado nos anais da História. “Um jacto de esperma que, após cumprir a sua trajectória, a qual surpreendeu físicos teóricos, purificou a cara da fêmea que cantarolava um refrão animalesco.”

Reza a lenda que o macho endiabrado tatuou uma cruz no escroto. Segundo o parecer de gente entediada e por conseguinte à cata de boatos, a sua ambição era proporcionar ao parceiro de cama uma foda santa. Outro personagem esgalhava pívias nas pausas do tabaco — nunca conseguia estar parado: o que lhe valeu uma promoção na indústria pornográfica.

A pandemia — perdoem-me o salto inesperado, mas eu não consigo estar parado — transformou o mundo num estúdio de filmes pornográficos: estamos com os colhões na mão. E cá estamos, nervosos, de calças em baixo, à espera que alguém peide um pequeno equívoco para içarmos o cadáver da humanidade das águas estagnadas.

Formigueiro nos colhões, picha entorpecida.
E a Joana? A Joana teve por várias vezes a honra de me ir às trombas. Mas isso são águas passadas. Hoje somos pessoas diferentes, de colhões e cona domesticados. Há quem, mais medroso, se veja obrigado a preencher inquéritos antes de erigir o pau. Ao rés do guichet de uma nova repartição pública, há quem negoceie paus feitos, sendo que a resposta é sempre a mesma: o sistema está em baixo, passe cá amanhã. A burocracia apossou-se do tesão. Longe vão aos tempos onde a fama do vergalho tinha o condão de levar o homem muito longe, nem que fosse a toque de porrada. Presentemente, tiramos senhas e tentamos sossegar a flauta selvagem com a patranha: “Calma, és a seguir”.


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Roberto Gamito

12.01.22

Ao contrário de outras crónicas tendentes a afagar educadamente os neurónios mais exigentes, revelando-lhes o princípio de uma profundidade outrora oculta, este texto às três pancadas presta-se à folia vertiginosa, que é como quem diz, vamos discorrer marotamente sobre o reino ebuliente do baixo ventre, quando em contacto com as oportunidades certas. Justifica-se que tome estas e outras precauções, não para exibir o lado puritano armado ao pingarelho, tão ao gosto do Homem contemporâneo, mas porque tal constitui uma chance de despertar uma horda de pequenos Lázaros em horário de trabalho — nunca me perdoaria que tal acontecesse.

O Altíssimo é amor, pelo que Deus é o sponsor desta crónica.
E cá vai, mais uma vez, este gato travesso no seu obstinado funambulismo humorístico que o há-de acompanhar até se extinguir a centelha que o põe de pé.

As crónicas do piçalho, livro com muita saída — e entrada — num desses séculos em que os historiadores trocaram o apontar de episódios relevantes pela imemorial arte de coçá-los, começava nestes preparos: “vivi na obscuridade e sem um tostão, e volta e meia conhecia a luz, sendo que a luz era tão-somente a distância que me separava da noite onde o meu mestre me enceleirava da fenda hospitaleira. Apesar de ser um livro merecedor dos nossos mais rasgados elogios, optemos, antes, por uma questiúncula que já acometeu todos os homens: O que é que me eriçará mais espontaneamente a picha? Não é de estranhar que homens de todas as eras e coordenadas tenham partido à aventura, o chamado aventureiro de portinhola aberta, com o fito de hierarquizar os estímulos que cutucam o marsapo. Se o estímulo for uma espécie de Jesus, isto é, vulto luminoso capaz de levantar um morto, então estaremos em condições de estabelecer uma espécie de espectro da luz. Quanto mais intensa for a luz, mais rapidamente despertará o nabo. Não será descabido declarar que a ciência não tem passado cartão aos temas que interessam ao homem minúsculo.

Bem sei que há grandes fatias da civilização que se estão bem marimbando para a felicidade do pénis abstracto. Se assim é, vou abreviar a história do contabilista e da beata. Para beata era uma bela mulher, tinha uma saia levantada, nem muito nem pouco, exactamente onde o tesão se engendra e deixa espaço para a imaginação cultivar as suas imagens escaldantes. O seu caralho, teso qual português de classe média, disponibilizou-se para o labor mal foi pendurado o quadro sexual no miolo. Com efeito, em breve estariam a fornicar a bom fornicar. Sim, minha linda, gemeu o contabilista à beata, venho-me assim que preencher os papéis. Deus me perdoe, mas que bela piça!, gritou cristãmente a beata. Vá, minha luminosa fodilhona, vem-te depressa que amanhã é dia de trabalho e não podemos ficar toda a noite nisto.

Enquanto isso, os anões — porque não?! — vinham-se onde podiam, uns nas orelhas, outros nos sapatos, outros em cuecas que povoavam o chão do quarto. Não me perguntem como é que os anões ingressaram no quarto. Possivelmente — uma teoria da minha lavra —, atraídos pelo cagaçal da fodanga.

O velho, que fora aquecer a beata para o contabilista, e se fosse outro teria começado a história por aqui, avesso a segundas vezes, passou de actor a comentador pornográfico.
Num banco ao rés da cena infernal, havia cachos de mulheres com as cuecas em pantanas, umas davam à língua, outras ao dedo, ensaiando os primeiros acordes no clitóris. Artur, tímido de nascença, não achando nada mais interessante para fazer, decidiu passar o tempo a punhetear a sua chouricinha da felicidade. Os mais entendidos na velhacaria, apodam-na de sarapitola de adulto.
O adulto está ao corrente da volatilidade do tesão — é preciso agarrá-lo, não vá ele fugir e nunca mais voltar. Levantou-se, deu umas voltas, e enquanto pensava na vida, perseverou a punhetear-se enquanto dizia: “ainda há coisas boas na vida”.

Um gajo vestido de burro, cujo nome não interessa para a história, o qual estava na pausa do tabaco, dado que o quarto há muito se havia metamorfoseado num apinhado bar em virtude de uma fadinha embriagada que, ao ver a cena a pegar fogo, percebeu que era necessário expandir o espaço a fim de lhe fornecer verosimilhança. E o gajo vestido de burro? O gajo enfarpelado de burro pensou: Não é tarde nem é cedo, vou deixar de fumar. Assim sendo, aproveito estes dez minutos para exercitar maravilhosamente o sacana — e lançou-se sobre uma cona desocupada que andava, segundo os anúncios de emprego fixados numa das paredes do estaminé, a pedir colaboradores. Ao dar-se conta do homem-burro, latiu de prazer, qual alegre cadela fodilhona. Hospitaleira — porra!, ainda há quem saiba receber —, meteu-o entre as pernas, protegendo-o do frio que grassava naquela noite de chavascal.

Há detractores que alegam que a história está mal contada, que se iniciara no bar e não havia fada nenhuma — enfim, gentalha que não acredita na existência da fadinha da fodinha. Segundo a versão desses bandidos, uma mulher deslumbrante, cujas carnes eram dignas de figurar naqueles talhos cheios de marketing frequentados por ricos, apareceu e contaminou o bar de olhares famintos. Nisto, ouviu-se um inchar de mil piças.

Entrementes, começou a dar o jornal da noite, o que caiu qual guilhotina em cima do pescoço daquela cena. De facto, a situação económica do país é pouco estimulante e extingue mesmo o mais resistente tesão. As mulheres cessaram as guitarradas na pevide, a agricultura de nabos cessou, as pichas regressaram às cuecas, os anões foram exportados para um conto infantil, o homem-burro regressou ao seu part-time de mascote, o velho continuou a ser velho, o contabilista mergulhou nos seus papéis, e a beata agradeceu a Deus, em suma, o regresso à pasmaceira — eis o desfecho do episódio.

Será que não há outra versão, questiona o leitor enquanto toca xilofone com a pila. Há um desfecho apócrifo segundo o qual houve uma fusão à la Power Rangers, melhor dizendo, gerou-se um Megazord de Pichas, tipo obelisco cabeçudo que avançou rumo ao gajedo com ganas de lhes estancar o desejo de uma vez por todas. Todavia parece-me pouco credível. Uma coisa é acreditar na fada da fodinha, outra bem diferente é acreditar na união entre os homens.

Fada de Marotice, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

11.01.22

Senhores e senhoras, meninos e meninas, palhaços licenciados e palhaços autodidactas, teólogos da velha e da nova escola, evangelistas e microevangelistas, vândalos e fazedores, leitores e míopes, pedreiros do cânone e construtores apócrifos, caguinchas notáveis e caguinchas em princípio de carreira, parvos eternos e parvos provisórios, taberneiros de lábia treinada e taberneiros calados, leitores de poesia e leitores ávidos de gordas, dançarinos e atletas de atoleiro, hienas e cadáveres putrefactos, alquimistas e homens de mãos atadas, fodilhões e puritanos, demónios dos círculos infernais e anjos dos círculos correctos, caçadores e presas esventradas, novos e extintos, vigilantes de incubadoras e fiscais de desertos interiores, clientela amorfa e vendedores linguarudos, humoristas manetas e público surdo, Lázaros dorminhocos e Jesus armado em carapau de corrida, histéricos e cultores do entusiasmo nulo, devotos e despertos, negacionistas e colaboracionistas, autores de todas as coisas e papagaios uruguaios, oportunistas versáteis e peças de engrenagem, activistas de sofá e activistas de poltrona, burros em dias de festa e burros sem mais apodos, tragediógrafos amadores e tragediógrafos imortais, comediógrafos das pequenas coisas e comediógrafos das grandes, descendentes das sobras e herdeiros da abastança, felizardos e portugueses, incréus e crentes, fanáticos e carpideiras, intelectuais reformados e intelectuais de fazer de conta, poetas de casa de banho e poetas de manjericos, discípulos do norte e pupilos do desnorte, iluminados e apagados, escravos e homens eventualmente livres, vigiados e vigilantes, pais adoptivos e filhos por conceber, crucificados de pacotilha e Cristos de fim-de-semana, grávidas de ideias e prosadores enfadonhos, carteiristas infalíveis e criaturas que põem os pés pelas mãos, funâmbulos de fios de raciocínio e ecos emplumados, sonhadores e acocorados, infalivelmente imortais e tragicamente mortais, camaradas de gráficos de excel e sacerdotes do palpite, aprendizes em coisas de baixo ventre e vagas prostitutas calejadas, românticos e cínicos, ser humanos e youtubers, líderes isolados e turbas aos saltos, sujeitos despojados de eu e compinchas insuflados de eu, inquilinos da verdade e clandestinos, purificadores e conspurcadores, virtuosos presos por arames e criaturas devotadas ao pecado, terapeutas gagos e pacientes impacientes, criaturas horizontais e animais verticais, jornalistas pornográficos e cronistas contidos, zaragateiros e árbitros estagiários, cromos repetidos e cromos repetidos, apóstolos do afrouxamento e paladinos da intensidade, testemunhas e sinistrados, grandes achados e pequenas migalhas, contemporâneos da morte de Deus e saudosistas da luz cantante, artistas e ofendidos peço que me escutem: careço de tema para a crónica de hoje.

Império dos Chatos, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

10.01.22

De qualquer perspectiva imparcial, tenha ou não existido com poderes dignos de figurar nos filmes da Marvel, Jesus é reconhecido por crentes e incréus como tipo porreiro. Jesus, como mensageiro do amor, tornou-se uma figura excepcionalmente popular e hoje é o ponta-de-lança da religião com mais adeptos.

Versátil, pronto a curar leprosos e erigir pequenos e grandes Lázaros de ataúdes, Cristo foi amealhando simpatias graças à cinética dos alegados milagres. Nos bastidores desses episódios — e isso fá-lo palpavelmente humano — foi enceleirando detractores mais ou menos subtis.

Para citar Lotário di Segni, isto é, o Papa Inocêncio III, todos os seres humanos são Job. É uma bela ponte entre o filho de Deus e o Homem. Dou-me conta da ousadia. Discorremos sobre Jesus, como se não houvesse séculos a separar-nos. Eis-me retratista do quase impossível.

Ingressarmos nas questões de Deus constitui um laboratório no qual, a partir de uma vaga inquietude, se destilam várias espécies de gritos. Para lá de todos os precipícios, encontra-se uma vontade primitiva de dar nome a essa luz que não cessa.
A meio da queda, com o auxílio in extremis do Altíssimo, o Homem adquire asas que o afastam, por momentos, da morte. Até quando?, questiona o mais impaciente.

Segundo o crente pacificado com o silêncio, encontrarmo-nos com Deus é um relaxamento face à ideia de morte. Para lá de toda a trivialidade, para lá de todas as cacofonias que enformam o nosso parlapié de futuro defunto, há uma migalha com ânsias de germinar, hábil em iluminar o nosso humilde caminho.

Em jeito de súmula, o Homem aproxima-se de Deus porque procura domesticar o que lhe foge. O problema não reside em acreditar ou não acreditar, mas sim na consequência nefasta do narcisismo galopante. Nas palavras de Peter Sloterdijk, ao deixar de pôr Deus acima de todas as coisas, o Homem ingénuo ou ganancioso, semelhantemente a Satã, escolhe-se a si mesmo como o seu objecto de eleição. E eis a queda.

Abandonemos a esfera da queda, quase não exige esforço desmontar a pose ficticiamente vertical do homem contemporâneo. Depois de Deus, a verticalidade é uma fabricação suspeita, engendrada por hipócritas que se pavoneiam em frente a uma turba de ingénuos.

Detenhamo-nos por um momento em histórias paralelas, uma das quais engendradas por Judeus. Há uma história apócrifa — que é como quem diz, rumor — segundo a qual Jesus é filho de um soldado chamado Pantera — belo nome —, resultando daí que Maria era uma espécie de prostituta disponível nas pausas dos eventos bélicos.

Só há duas formas de estar na vida, dois estilos diametralmente opostos: 1) passar por tudo, 2) prescindir de tudo.

O jejum do coração e do cérebro, quanto a mim, não me parece escolha saudável. Afastarmo-nos cinicamente das coisas não me parece a coreografia certa — é antes uma arma romba da sapiência contemporânea. O cínico olímpico cai na esparrela de florear a seguinte ideia: tudo é outra coisa, tudo o que vejo é pretexto para outra coisa. Têm predilecção por polemizar tudo aquilo que tocam. Afadigam-se na teorização da jornada e do cerco. Fazem de tudo para não dar um passo em frente. O cinismo, de facto, é porta-voz da ruína interior. Entronizam-se venenos a fim de dar consistência ao nosso desnorte, eis a criatividade pós-queda.

A palavra, doença ou terapia tartamudeada por outro, encontra-se hoje numa situação frágil. Tanto pode repelir como aproximar dois estrangeiros. Gaguejada não pode constituir promessa alguma, ao passo que se vier categórica é-nos suspeita.

A paixão, o amor, amizade, por assim dizer, nessas províncias de difícil acesso ao homem contemporâneo, carecem de itinerários fixos. Falar é importante, abrirmos o coração é indispensável, pôr o miolo em canção é necessário. Tudo isto para andar às voltas do dito Agostiniano: “A recompensa da confissão é que quem diz a verdade chega à verdade.” Longe do domínio senhorial do umbigo, habitar essa verdade é passar a dor a limpo, purificá-la e fazer as pazes com o passado.

Mas estaremos nós a pensar bem? Deixarmo-nos inundar pelas palavras de Deus conduzir-nos-á a um sítio melhor? A tensão intelectual associada à resposta começa a desaparecer, dado que não pode ser articulada em palavras. Mas regressemos a Jesus, será ele um representante imaculado do Amor?

Com efeito, Jesus foi alvo, ao longo das eras, de sucessivos retoques enaltecedores claramente tendenciosos. Fizemo-lo crescer em luz com os restos da realidade e exagerámo-lo como quem não tem escapatória senão a hipérbole.

Jesus. (João 2:4)
“O que tem isso que ver contigo, mulher?”, deixa com a qual cortou a palavra à Mãe, Maria, nas bodas de Caná.
Não me parece que tenha ficado muito bem na fotografia.

De um ponto de vista embriagador, uma das questões mais decisivas, presente no livro de Lucas. Outra vez Jesus:
“Julgais que vim para estabelecer a paz na terra?”

E por último, não me recordo o livro:
“Se alguém vem ter comigo e não odeia o seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos, as suas irmãs e até a sua própria vida, não consegue ser meu discípulo.”
Dá ideia de que o amor ficou para segundo plano.

Neste ponto, a distância temporal é mãe de todas as interpretações. O Homem lá foi tentando suavizar a postura de Jesus com contratextos, porém a dúvida persiste. Em todo o caso, há sempre a hipótese de nos tornarmos outro. Com ou sem auxílio divino, a metamorfose continua alcançável.
“Em toda a parte se encontra um Jordão.”

Deus dissecado pelo depois, Roberto Gamito

 

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