Como recompormo-nos após o saque da juventude — ela que nos ludibriou com o mundo luxuriante todo frutos e nos entregou à idade adulta depenados e com uma verticalidade postiça. Somos abandonados dentro de uma caixa cheia de côdeas. Os sonhos deram origem a migalhas. O inferno é um paraíso quando comparado com a cabeça de um Homem. Tudo o que há foi parido na cabeça de um homem desesperado. Nada e de supetão tudo — um tudo apinhado de unhas, mandíbulas e fome. Cercados de um sem-número de predadores não nos resta nada senão simular no grito uma avalanche, rezando para que os predadores, canibais e necrófagos tombem, uns atrás dos outros, como peças de dominó. Recompormo-nos de um itinerário de faquir: trilho de áscuas, vidros e promessas quebradas. Em habitando a víscera-mor, seja um deus ou uma mulher elevada aos píncaros, o nome sairá escoltado por uma procissão de berros e gemidos e roncos animalescos. Eis as crónicas de um homem sem asas.
Entrementes, envelhecemos. A idade adulta assemelha-se a uma doença à qual tivéssemos sobrevivido em virtude de termos pago um preço elevado, uma perna, um braço, uma porção substancial do cérebro. Não chegamos inteiros à idade adulta. Cada ser humano é uma variação de Proust: dentro de nós engendra-se, ora às escâncaras, ora às ocultas, a composição de Em Busca do Tempo Perdido. O resto da vida é tentar regressar a um passado que aos poucos vão perdendo os contornos. Eis-nos Ulisses rumo a uma mancha situada na província das assimptotas. Dotados de uma réstia de clarividência, damo-nos conta da impossibilidade de regresso. A cidade de onde partimos já não existe, já não existimos na íntegra, somos outros, somos, com efeito, o cadáver esquisito posto em marcha pelas mil e uma mãos surrealistas de que a vida é dotada.
E de um momento para o outro o concreto passa a abstracto. Que terapêutica empregar contra um quadro mental que não passa de um borrão — ele que pode ser tudo e nada simultaneamente —, de que modo nos podemos desembaraçar da doença se nos fundimos com as sequelas. É impossível apagar o legado das chagas sem nos aniquilarmos.
Exceptuando um punhado de desocupados mais versados em voos poéticos e os reis do absurdo e demais bailarinos cujo passatempo é ensaiar as primícias da loucura, todos os espíritos parecem subjugados por uma vocação que não lhes pertence.
Só aqueles que se emanciparam — e para quê, perguntar-me-ão —, uns através do questionamento perpétuo, alcançando o caroço do nada, outros através do bailado da loucura, ao passo que os demais, mais sensatos ou mais loucos que os loucos, resolveram abrir mão de tudo o que é palpável.
A obsessão insípida de ser útil tornou-nos primos dos objectos. Num primeiro encontro, fitamos o outro como quem compara iogurtes. A humanidade, a haver, existe como vestígio na tabela de componentes. Alcançámos estas ideias sentados, numa sala de espera, na qual esperamos um diagnóstico que pode, qual fadinha malvada, mudar o curso da vida num segundo. Sou um, ninguém e cem mil. Estou de acordo em parte, senhor Pirandello, todavia cem mil são abatidos logo que o cancro é propalado pelas trombetas da medicina. Doravante seremos simultaneamente um e ninguém.
Quando, no mundo actual, o trabalhador é tão-somente átomo neste universo decorativo do capital, onde as ficções se encavalitam gerando pirâmides bizarras, as quais podem tombar graças a um suspiro, com efeito, há muito deixou de ser uma mais-valia. Mais rente à verdade, o trabalhador é um empecilho com pernas, feito barata tonta, porém vulnerável como porcelana, o qual pode ser visto, caso sintam necessidade de serem turistas de uma tragédia actual, na coluna mais tristonha da folha de cálculo. Presentemente, somos uma despesa nómada, obrigada a esforçar-se a toque de chicote subtil, mas nunca a transcender-se, para isso é preciso ter posses, o Deus no trono, não esquecer, é o dinheiro. Pedem-nos o infinito, exigem-nos a omnipresença, estar em mais de um sítio ao mesmo tempo, e, inesperadamente, dado que fomos feitos à imagem de um antigo Deus falecido, fazemo-lo. Somos pequenos deuses precários, não há ninguém que preste culto ao trabalhador. Não há fiéis nem aplausos, há crucificações e trabalho no dia seguinte.
Encontramo-nos à mercê deste jogo sinistro, vítimas de um diálogo estéril, vigiado e guionado. O improviso é punido.
Somos uma família, apesar do chicote incansável, apesar dos salários cadavéricos, eis o que diz o aparato do branding no interior da empresa. A economia tornada negócio de família pela comédia mais negra. Se assim é, não me admiraria nada se isto tudo acabasse numa chacina.
Calados, os trabalhadores comunicam a sua dor e a verticalidade murcha com o olhar, é vital perseverar no sorriso, é-nos proibido quebrar a ilusão do cliente: o mundo é belo, recheado de oportunidades, eis o que assevera o punhado açambarcador dos lucros.
Dentro de cada um de nós, há uma guilhotina. Dissimulamos o carrasco numa avalanche de boatos, não matamos o senhor mas figuras virtuais, geramos o milho para pardais ávidos de tagarelice em vez de minar a arquitectura vampiresca do Capital, sobre a qual se apoia a Grande Ficção.
Não é fácil ser iconoclasta, destruir um ídolo não é para todos: dominar a marreta requer muito tempo, é preciso promovê-la ao estatuto de caneta e avançar sobre as estátuas de deuses erigidos pelo dinheiro insuflado pela ganância qual poeta prolixo que rescreve a História da primeira à última linha. Não há meias revoluções. Espártaco que o diga. Parar é morrer.
Mas como virar os seus olhares povoados de iguarias de faz de conta para os cantos mais obscuros onde a patranha não sobrevive? Embeiçados pela promessa de conforto, parece que somos incapazes de nos comovermos quando assistimos de camarote a essa fanfarra cinética que é a extinção da liberdade.
Às carambolas entre os meus jugos, os meus arrependimentos, os meus amores, os meus fracassos, há um pensamento que não se dá por vencido. Teria defendido o Homem se acaso acreditasse nele, cogitam alguns, defendê-lo-ia contra as cruzes agendadas, contra a invasão dos papagaios catequistas e contra a avalanche de mártires por geração espontânea. Nos olhos vazios dos bustos, refiro-me às pessoas, não há pinga de depois.
Entretanto, há alguém que desfigura o quadro dos cabisbaixos, e ousa olhar para cima, saciando-se com um céu a abarrotar de estrelas: Qualquer dia arrasto Roma — uma cidade inteira — pelos cabelos, ato o século à minha carroça e hei-de passear-me com o seu cadáver sem recear ninguém nem tão-pouco a morte. Talvez isso acorde o Homem.