Roberto Gamito
07.01.22
Como o pensamento é próprio de tempos antigos, qualquer Homem que o use de forma voluntária transgride a ordem de uma taberna: desviriliza-se, que é como quem diz, abandona os tomatinhos, abdica do seu estatuto de palhaço versátil e perde a oportunidade de gritar sem ter razão. Um desperdício para quem, como eu, assiste regalado às escaramuças verbais típicas desses locais.
Não é comum tropeçar numa ideia digna de nota aquando de uma visita a uma taberna, assim como não procuro um Homem sábio no século XXI, tal demanda levar-me-ia aos cumes da depressão. O século XXI tornou-se, perdoem-me a franqueza, um pomar de palermas. De resto, tais palavras têm um sentido sensivelmente impreciso, e se estou a pôr toda a humanidade no mesmo saco é porque desejo atirá-la ao rio amarrado a uma rocha. Mas esta hipótese — que tantas alegrias me traria — parece-me bastante frágil. Parecendo que não, faço parte — friso-o a contragosto — da humanidade. Tanta história de homens adoptados por animais nos livros de todas as eras e eu continuo rodeado de Homens. Será que não há por aí uma família de javalis que me queira como filho? Sou corpulento, feio e sei espatifar hortas: eis o meu currículo.
Saltando para outra divisão da memória, recordo-me da infância e dos marmelos. Pela altura do verão, era comum ver-me a correr nas estradas de gravilha do interior do Baixo Alentejo. Volta e meia ia ao chão chorar um bocado. Caía puto e levantava-me mártir dos joelhos esfolados. O marmelo estava omnipresente nas mesas das pessoas da aldeia. Na minha cabeça de petiz, engendrava tratados sobre o marmelo. Devia existir uma espécie de lei que obrigava as pessoas a ter marmelos nas fruteiras, caso contrário iam presas. Além disso havia o pau de marmeleiro, o qual parecia ter um grande apreço pelas nádegas dos putinhos. Ou portas-te bem ou levas com a vara de marmeleiro nas nalgas, berrava a minha avó.
Careço de estudos para pôr por extenso as mutações necessariamente lentas e complexas do marmelo. Como é que passou de um lugar de prestígio para o anonimato em poucas décadas é algo que me escapa. Talvez o zénite do marmelo tenha morrido com os velhos, os vassalos carinhosos do marmeleiro. Em seu lugar foram plantadas outras árvores, a saber: laranjeiras e limoeiros.
E temos ainda a marmelada. De facto, o marmelo está connosco nos bons e nos maus momentos. É difícil ser mais laudatório sobre este fruto. Vale a pena determo-nos neste ponto: as crianças actuais não passam cartão ao marmelo. Olham, gulosos e de olhos esbugalhados, para bananas, maçãs, pêras, clementinas e poucas são as que pedem à mãe: “Progenitora, descasca-me aí um marmelo”. Mas não é exclusivo dos putinhos, os adultos afastaram-se igualmente do marmelo sem dizer adeus. Onde andam as mães que faziam marmelada caseira? Já para não falar da contribuição para o vocabulário da paixão. Que outro fruto pode ombrear com o marmelo no campeonato da marmelada? Nenhum, digo eu amargamente. Creio que sou o último paladino do marmelo.