Partilho da crença de que a maneira de falar nos fornece um belo retrato do miolo. Não obstante a qualidade da tradução, há que evidenciá-lo, passar as carambolas a limpo, verter o metal fundente da cachola para a língua é um processo no mínimo imperfeito. Seja como for, fornece-nos uma imagem segura do que se passa cá dentro. Do outro lado da barricada, perdoem-me a minúcia, mas não é descabido analisar este pormenor, a grandiloquência com tiques teatrais pode igualmente facultar-nos a mesma imagem. A preguiça intelectual, a qual se pavoneia papagueando as bacoradas mais em voga, dispensando o pensamento (jogada inesperadamente inteligente, dado que o cérebro é um electrodoméstico que consome demasiada energia) não é mais nem menos danosa que o barroquismo armado ao pingarelho associado às migalhas. Cumpre-se sempre uma de duas profecias: 1) o Homem aproxima-se da figura do poeta, encontra as palavras certas, embora a verdade lhe faça caralhadas do alto da torre de marfim, profecia de Agostinho da Silva, melhor dizendo, vai às cordas do humanamente possível de maneira a dizer o máximo com o mínimo de palavras; 2) o pensamento transforma-se em coisa de museu, profecia de Byung-Chul Han, e todo o discurso se torna parente de um refrão de música brasileira, daqueles apinhados de palavras desconexas e onomatopeias.
No entanto, como nada pode ser esclarecido com dois ou três palpites de taberneiro, necessitamos de afinar o modelo do mundo de tempos a tempos. Há factores que contribuem para o barroquismo ou para o vácuo, sendo o mais proeminente o cansaço. Quantas e quantas vezes já me aconteceu estar de tal maneira esporrado de miolo — no Baixo Alentejo esporrado significa também cansado até dizer chega, não conheço outro termo que lhe chegue aos calcanhares — e pôr os pés pelas mãos, armar-me em contorcionista quando de mim esperavam um tenor calejado. O cansaço só me faz passar vergonhas. Quanto a vocês não sei, mas a mim o cansaço retira-me habilitações literárias. Houve dias em que, graças ao cansaço, não tinha mais que a quarta classe. É preferível largar os livros e os estudos e dormir mais uma hora. De que me vale palmilhar a Biblioteca de Alexandria se depois estou demasiado afadigado para falar e pensar sobre as minhas descobertas? Proponho mais descanso e menos livros.
Como já foi dito por pessoas interessantes e humoristas, se um político ou aspirante a tal usa o refrão nauseante “portugueses e portuguesas”, sei, de fonte segura, que é um embusteiro amiúde fanfarrão e um caguinchas ignorante da gramática. Se escreve “amig@s”, além de estúpido, é também merecedor de um carnaval de chapadas no focinho. Apreciações da minha lavra, evidentemente, há quem se erice se não semearmos um ‘x’ ou um ‘@‘ em palavras que já nos deram tantas alegrias. No fundo, somos iguais: gatos assanhados a disfarçar o cio, uns e outros a ensaiar danças contemporâneas às tantas da noite.
O discurso dos hóspedes deste século leva-me a acalentar, quando muito, um resíduo de esperança. Tal como todas as grandes parvoíces, é um processo imparável. Uma batalha perdida.
O que tenho vindo a observar, à distância, postura não muito sapiente da minha parte, dado que sou míope, porém não me quero envolver com a malta deste século, ou seja, observo estes anos do último miradouro do século XX, são várias tendências deprimentes: o pedantismo postiço, a inclinação para o cadáver esquisito por parte de surrealistas desprovidos de imaginação, a afectação espontânea, os trejeitos de genialidade, esta última tão bem descrita por Javier Marías.
De cada vez que ouço ou leio um influencer armado em escritor, que os há aos magotes, e parece não haver crítico capaz de desparasitar as prateleiras dessa praga, a falar sobre poesia, tenho vontade de me alistar no Daesh. A fanfarronice misturada com o não faço puto de ideia do que é a poesia levam-me aos arames. É com cada fanfarronada que os génios até dançam samba no caixão. Resultado: uma subjectividade típica de ignorante barbudo. Detenhamo-nos neste aparte: até a barba foi desprestigiada por estes dias. Quem diria que um dia teríamos esta espécie improvável: o barbudo analfabeto, que é como quem diz, o hipster. Resumidamente, o hipster tenta compensar a sua falta de cultura com bigodes e patilhas disparatadas.
Observemos, qual biólogo, a ninhada deste século: o activista ecléctico, o esquerdista teatral, os filhos do Trump, isto é, os poetas da baboseira, o humorista assustadiço, o artista marreco, o pensador sem cabeça, o espalha-brasas polivalente (antes de importarmos a palavra bully era este o termo utilizado), o apóstolo enfurecido da empatia, o paladino do óbvio, o cientista do palpável, o negacionista, o pseudo-intelectual, o pseudo-gigante, estúpidos de todos os sabores e o liliputiano em bicos de pés. Peguemos com jeitinho no pseudo-intelectual e atiremos o resto pelo penhasco. São os que açambarcam com afectação típica de actriz de novela qualquer termo inglês como se fosse a pedra filosofal, como se antes de eles descobrirem o vocábulo na língua do novo deus, o denominado por ele jamais tivesse existido onde quer que fosse. Teríamos de citar Eça de Queirós de manhã à noite a fim de perceber os novos voos do provincianismo que sempre nos caracterizou. O apego doentio pelo francês passou para o inglês. No português é que ninguém lhe pega. Há a crença de que, se enxertarmos a nossa frase anémica com vocábulos ingleses, a nossa deixa será entendida como brilhante. De uma assentada, mascara o óbvio e a ausência de ideias. Uma das consequências, raramente abordadas pelos vigilantes da língua, é que há muita gente que sabe pronunciar correctamente os termos ingleses e, todavia, quando se encontra com o termo português, esse embate provoca-lhe estranhamento.
Não será descabido abrandarmos a marcha e comermos uma bucha no apeadeiro da marotice. Palpita-me que as gerações mais novas já não fornicam em português. Por milhares de vezes fui espectador do seguinte espectáculo posto em discurso: o português carece de vocábulos capazes na esfera da fodanga. A segunda coisa que pensei, sendo que a primeira foi o suicídio: estamos irremediavelmente perdidos. Que país é este que vota o caralho e a cona ao ostracismo? Não quero ser obrigado a foder em estrangeiro.
Não quero viver num país que viu nascer Bocage, O Pauzinho do Matrimónio e agora sente pudor em vir-se na língua lusa. Sinto que falta uma espécie de activista da cona e do caralho para combater eficazmente o preconceito.
Eis-nos chegados ao tema da crónica. O novo pedante. Em tempos idos, o pedante era um gajo chato, porém sabia muito de muita coisa, hoje é apenas chato e vazio. Hoje não se lê, decora-se nomes de escritores; hoje não se tenta adentrar no filme, surripiamos uma frame, tipo homenagem ao tumblr, porém sem a parte boa que é a pornografia; não se interpreta um poema, sublinha-se um verso, utiliza-se a subjectividade como muleta de molde a não ter de responder a nada, carece-se de opinião sobre tudo ou então citamos o rabugento estrangeiro mais à mão, não vá alguém chatear-se e perdermos seguidores — a maldição do século.
Vamos lá ver uma coisa, como diz o bardo eleito pelo povo, o conhecimento, o pensamento — e a arte por arrasto — dão trabalho. No entanto, não abdicamos da aura — queremos continuar a ser apodados de instruídos, pensadores, poetas, artistas e o mais que se lembrarem sem suar nem queimar pestanas. Em todo o caso, ninguém liga, estamos todos embrenhados neste zapping de doidivanas, a saltar de coisa em coisa qual sapo em ácidos, quando vemos um filme não vemos o filme, estamos nas redes e o mais, abrimos um livro de poesia não com a vontade de nos perdermos mas com a preocupação de sacar a melhor fotografia para o Instagram, vemos citações de pendor existencialista a servir de legenda a rabudas — não critico, bela aliança —, mas se tentássemos fazer sumo com o homem contemporâneo seria um trabalho votado ao fracasso. Seriam necessários dias para obter meia dúzia de pingas. Eu, que nunca saí deste mundo para ir a Marte, digo-vos: falta rigor aos filhos do século XXI, isso vi eu num filme iraniano ou num poema ou numa citação que acompanhava um culto mamaçal.
![Comunidade Cultura e Arte, Roberto Gamito]()