Roberto Gamito
17.04.22
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Roberto Gamito
17.04.22
Roberto Gamito
15.04.22
Roberto Gamito
13.04.22
Roberto Gamito
10.04.22
Riscamos o fósforo pela enésima vez, mas a humidade humilde de uma gota de água protege-o, adiando o fim. A cabeça incólume não é destino que se queira. De que vale sobreviver ao fogo se é ele que nos efectiva?
Dentro de nós um inferno em miniatura, projectos de demónios, esboços de quedas, raivas postas em discurso e o catecismo do fracasso arrancando-nos os sonhos como quem arranca asas a insectos. De ilusão em ilusão, tentamos em vão simular as asas perdidas.
Caem meteoritos que nada sabem sobre os nossos desejos, pedimos-lhes tudo e mais alguma coisa até ficarmos afónicos, todavia o mundo não é hospitaleiro no tocante às nossas vontades.
Quando a melancolia irrompe, a mão, que não tem limites nem remédio, agiganta-se — eis a farsa. Cresce até à loucura rumo à morte de molde a pormenorizar o falhanço. Haverá alegria para quem, na folha, viu nos dedos cabeças de fósforo e tentou incendiar o seu cosmos posto por extenso? Sobrará talento para quem venceu provisoriamente a morte? Com que palavras regressou desse combate?
Vida contrabandeada por gritos
ululante comédia desmantelada
tragédia que todos acorrem para ver.
Nem o truque barato do suspiro nos salva face à cratera nos nomes outrora salvíficos. Não me parece que o poeta extraia grande minério do acto de escrever, de orbitar em terrenos resvaladiços, qual pirilampo ébrio: em nenhuma das suas órbitas encontrará redenção. Homem, o animal mais fantástico deste circo — a cabeça apinhada de problemas é um número inesgotável e em constante aperfeiçoamento. Nunca faltará público para o homem sem qualidades.
As vidas improvisadas no balcão, comentadas lado a lado com o entrechoque dos copos sempre por encher. Condenados a rabujar para todo o sempre, afugentámos o amor, a felicidade e o mais com o condão de aliviar o fardo. Ao rés do precipício, os homens encenam os antigos mitos de Actéon, Sísifo e Tântalo.
Confesso que me faltam os dias que desaproveitei a ser outro. Almejei ser clandestino bobo ao rés das goelas de Deus. Os corpos caídos numa formação que alguns dirão um enigma. Seja como for, as vozes sobrevivem num refrão animalesco. Choraram, amaram, beberam e bailaram e eu fiz de conta que não havia entendido nada. Como resgatar o passado do poço da memória sem o desmembrar no resgate?
O homem, eterno peixe fora de água, ocultando o estrebuchar em danças mais ou menos artísticas, sucumbe ao engodo das luzes dos holofotes. De uma maneira ou de outra, sucumbiremos à primeira promessa armada em messias. Minúsculos seres fantasiando estaturas ao pé de megafones. A festa termina. O coração fica a sós com o teu nome. Os que fugiram ao amor sabem do que falo.
Cada verso é uma despedida cifrada, digo adeus à miríade de homens que fui sendo. A vida é um funeral onde enterramos, à vez, as nossas metamorfoses. Salivo o fogo larapiado ao inferno. A folha, ninho partilhado por facas e aves canoras, é palco onde ensaio o recomeço. Nada nos prepara para o início.
Como reaprender a respirar se o amor semeou nós de uma ponta à outra do nosso corpo? Diz-me se ainda sou o clarão noturno que se apossa do teu corpo quando te recordas do meu nome. Ovaciono com prontidão os cães que me abocanham, mas o corpo não acompanha o gesto.
Só existo quando fico do lado de fora do pensamento. Que querem que vos diga? Escorraçar-me das ideias não é um trabalho isento de perigo. E um mundo pequenino vai-me brotando das falangetas
linhas que mais parecem caminhos arruinados, juncados de cadáveres de Ulisses. Só posso falar do que não vi.
Mas para quê insistir nesta prosa regateada no mercado do eclipse, quando a morte nos morde os calcanhares sem parança?
Roberto Gamito
08.04.22
Fazendo fé nas conclusões de travo alimentício da consultora Nielsen, a qual monitoriza as compras de três mil lares portugueses, e futuramente as compras de três mil hostels, o consumo de frutas e legumes diminuiu nas famílias com filhos, privilegiando a aquisição dos produtos de conveniência, a saber: refrigerantes, conservas e take-away, que são, para usar a expressão de Clara Viana, do Público, facilitadores do dia-a-dia. Aqui principiamos a divergir ligeiramente. Embora reconheça que alguns dos produtos nos tornem a vida mais fácil, cito como exemplo uma lata de atum, a qual é uma espécie de MacGyver que desempecilha a refeição em situações que de outra forma seriam impossíveis de resolver para uma pessoa cujo lema da vida é “mexer-me o menos possível”. Se a vida melhorou drasticamente após termos conhecido a lata de atum? Não nos precipitemos na resposta. É uma relação longa, começa na universidade ou até antes e acompanhar-nos-á, suspeito, o resto da vida. Logo terá todas as características de uma relação duradoira, tanto as boas como as más. Creio ser despiciendo sublinhar que a aura romântica que paira sobre as conservas rapidamente desaparece. Falo por mim, sempre que desfruto desse singelo pitéu que consta no menu do desenrascanço, sou arrastado aos solavancos por uma imaginação contrariada rumo a um cenário de guerra em que estou a fruir da minha última refeição. E eis que choro profusamente. Não adivinharia, nem nos meus mais célebres pesadelos, que a minha vida seria essa. Acabar os meus dias a comer atum num casebre abandonado enquanto espero pela morte e ouço Maria Leal.
Há, continuando a pastorear os olhos no artigo, motivo pelo qual encetei esta prosa suculenta, um aumento dos produtos exímios em insuflar a pança, tais como: chocolates, batatas fritas, bolachas que existem para, momentaneamente, tapar o buraquinho existencial. O número de suicídios seria mais elevado se não houvesse estes paliativos. Nunca tive, que me lembre, ideias suicidas enquanto estou a estraçalhar uma tablete de chocolate. Depois de a comer é outra conversa, mas é uma questão de comprar a maior tablete possível. Teorizando um nadinha, posso assegurar que, se comprarem uma tablete de chocolate infinita, nunca mais pensarão em coisas tristes.
Que vida a criança teria se, além do típico conselho paternal “não fumes, não bebas, não te drogues” fosse aconselhado a enveredar pela via marginal logo desaconselhável da fruta. A criança não teria alegria nenhuma para continuar a viver neste mundo empestado de regras. E sabem como são as crianças. Pode acontecer, não digo que em cem mil catraios não haja um que goste de fruta, que se delicie em abocanhar citrinos e assim, mas, debaixo da mira do olhar desdenhoso e inquisitório dos seus ranhosos colegas, opta por recalcar o seu amor pelos legumes e pela fruta. Moro no Algarve, onde há citrinos aos pontapés, e do que me lembro dos tempos de escola, descartando as memórias das pessoas boas e das professoras boas, supondo que são coisas diferentes, não me lembro de muitos episódios em que o Dário ou o Alexandre pudessem descascar clementinas sem serem importunados. Supondo que a geração actual de putos é superior à minha nesse aspecto, sim, estou disponível para realizar esse salto de fé, que não importunam os outros, pois têm assuntos mais sérios a tratar, como estar concentradamente alienados ao smartphone, ou a realizar directos para o Instagram, levanta-se outra questão. A questão da socialização. A fruta não promove a socialização. Ninguém se aproxima de um puto e diz: Orienta-me aí um gomo de tangerina. Ninguém. Nós queremos relacionar-nos com os outros e a fruta e os legumes não constituem grandes catalisadores. Pelo contrário: são inibidores. Daí não constituir espanto para mim que os putos enveredem pelos Kit Kats e pelo tabaco. É o que levamos da vida. Histórias. Histórias com outras pessoas. De que me serve morrer com um corpo a abarrotar de vitaminas se ninguém quer meter conversa comigo? Isolei-me do mundo por via de ter criado uma barreira de clementinas, bananas e maçãs, pensará o miúdo que seguiu uma vida saudável. Viverá dentro de um casulo de fruta e um dia brotará, de dentro do casulo, uma borboleta bisonha da espécie Carmen Miranda.
E a mãe que diz “comprei estes abacates a pensar no meu filho” é uma mãe que não ama a sua cria. Ai eu faço-te lembrar um abacate?, pensará o filho quando confrontado com esse pensamento. Mãe, não me conheces. Eu sou um ser doce, dirá o garoto. Daqui em diante quero que te lembres de mim quando passares pela secção das gomas, concluirá o puto.
Ou então os pais detestam os filhos e estão a tentar matá-los seguindo os trâmites legais, a única forma socialmente aceite de matar um petiz: não lhe providenciar comida saudável. Não me oponho, só quero saber se é preciso aquecer o biberão de coca-cola.
Roberto Gamito
03.04.22
Cautela, não tropeces no Diabo — erguer-te-ias com outro nome.
Viagem à volta da estranheza que somos, ilha habitada de animais mutantes e queira deus carnívoros. A procura frustada do semelhante fez da luz um buraco negro. De inocente a bárbaro num estalar de dedos: não chamem a isto magia, mas História. Desmantelamos o circo até ao átomo, vendemo-lo por peças a preços absurdos. Nada se ganha, nada se perde, tudo se torna risível. Nada é verdadeiramente, não te equivoques, passa de uma mão para outra: tu és aquilo que não consegues capturar.
Nem demasiado frio, nem demasiado quente; não serás o último nem o primeiro; serás os muitos gritos de uma história qualquer abafada num quarto esconso em vias de ruir. Baptizamos os vultos resgatados pela memória como quem descobre novas espécies de animais. Enchemos o coração-arca de bichos, onde ontem havia silêncio há hoje deserto, florestas e oceanos pejados de feras famintas. O nome da amada afinal é um nome entre muitos nomes — que triste princípio de poema.
Talvez se me aproximar de mãos nuas consigas — ou desejes! — habitar-me o olhar. Também ouço falar que a luz muda de nome a cada cem anos em sítios onde só conheci a noite.
Talvez tudo não passe de uma esparrela, engodo para um ego inchado e por conseguinte frágil face a um mundo a abarrotar de espinhos. Escapar aqui não é fugir, frisa o poeta, é o primeiro tijolo da metáfora. O público desconfia com as mãos nos bolsos.
Fala, cala-te, fala novamente e cala-te, para que não te caiam em cima e te desequilibres do fio alto da vida e te despenhes sem aplausos cá em baixo, terra onde os alheados ensaiam o inferno.
Olhas para um muro, olha um muro, murmura alguém ao teu lado, e de supetão o muro perde o carácter de metáfora, apenas um muro que, se intransponível, nos faz recordar o seu antigo sentido figurado. Descobres que não há muros nem pontes. Os séculos pretéritos sobem pelas tripas, jogas a mão à boca, inocente, julgas impedir o caudal do passado. O passado estorvará sempre o presente.
A ausência de amor é uma comédia ou uma tragédia? O homem só vence a melancolia de três formas: pela arte, pela imaginação e pelo amor. Se a imaginação ficou lá para trás, na infância, se o amor é impossível e a arte dá mostras de não dar conta do recado, o que nos sobra?
A mão-flecha-luz-quase sobrevoa, alheada das linhagens, o cadáver de Deus. Imagino-me a dançar no interior putrefacto de Moby Dick. Este é um tempo em que as sombras são disputadas por um sem-número de cães, sem luz capaz de impor limites. Chamam a isto vida, embora me pareça que fomos vomitados pelo nada neste século. É sempre a mesma merda: os homens entediam-se sem arte, as moscas deliram e os camaleões oportunistas fazem planos para o futuro.
Após auscultar o coração do paciente, o médico questiona o desgraçado: “Há quanto tempo não lê um poema?” Poema, riposta o homem sem qualidades, há tanto tempo que não ouvia essa palavra.
A paixão é a cana de pesca que resgata o nome do rio do ruído. Gota a gota o dilúvio ou o dragão. Fechado numa câmara anecoica com um relógio, o tiquetaque funde-se no sangue que o silêncio tornou mar. O interior vem à tona revoltado. Se o interior contar a história da carne de uma ponta à outra, enlouquecemos.
Ontem remexia, junto da lareira, ao rés dos velhos corcundas, hoje pasto de vermes, os toros com uma tenaz. Os andaimes que rodeavam o futuro foram retirados e demo-nos conta do ludíbrio: não construímos nada durante este tempo todo.
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