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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

17.04.22

Procura que a tua frágil cabecinha não se desequilibre, qual aprendiz de funâmbulo e permaneça acólita do eco sensaborão deste mundo doravante incendiado. A Queda ou Idade de Ouro depende do enquadramento. A pedra do dominó em vias de cair aparece ou não aparece na foto? Uma coisa é certa: ela existe.
A objectividade é um logro dizem uns, outros ou os mesmos, não contentes com o silêncio, ripostam que a subjectividade é um embuste. De longe, todas as cidades são povoadas por anões. Para quem não sai de casa, até a padaria no final da rua fica no estrangeiro. A distância extinguiu os gigantes? Por mais que tente, não consigo empatizar com estes papagaios castrados. Aqui e ali teorizam-se tomates impontuais. Segundo X, o biógrafo mais autorizado de Deus, o sangue de Cristo fermenta em pipas de massa. Próprio deste tempo de gagos e afónicos, onde o agonizantemente óbvio foi elevado a genialidade, seria de esperar que o livro que catapultou o filósofo se chamasse Catapulta. O seu irmão António Luís acabou por perder um braço num jogo de sueca mais aceso, o que afectou tragicamente o seu ofício de pianista e o seu passatempo de punheteiro. Para viver feliz, tenho de estar em concordância com o mundo, disse o filósofo saído da primeira grande guerra. Começamos mal, quero é que o mundo se foda. Quando jovem, foi levado pela ideia de que sob as máscaras se acoitava uma humanidade comum e só viu cobras e lagartos. Há sempre algo aproveitável no passado, disse o filósofo ao seu terapeuta.
Um cacho de gajos que não ficará para a história — e esta já perdeu a sumptuosidade da maiúscula por se dar demasiado com o homem — encontram-se no jardim de candeeiros intactos, uma vez que a pedrada é como o amor: atrasa-se sempre; retomando logo no sítio mais desinteressante da narração, encontram-se no tal jardim para desfrutar do debate intelectual — oxalá os cândidos nunca se extingam! — e acabam a noite —isto sim já merece o meu tempo — numa troca acesa de sopapos — coisa que desassossega a face mais franzina. Com sorte, a porrada dar-te-á a possibilidade de sair do mundo para, a partir de fora, explorares tudo. Ai temos filósofos, riposta o homem feito cão encolerizado, só por isso levas mais. As alturas estão carcomidas pelo vício e pela vaidade. Perdoem-me, o tempo dos sacerdotes da virtude já lá vai. Fodam tudo e à vossa maneira.
E como dizia David Hume, e isto sou eu numa carta de amor ou num e-mail, que os carteiros e os cães nunca se entenderam, (epifania entre parênteses: enquanto Actéon abocanhado pelo que amei, encontrei forma de passar a perna à maldição divina: entrar num armazém dos CTT pejado de carteiros e é vê-los, aos cães, a soltarem-se de mim quais pétalas a feder a sangue) se o amor e a amizade desaparecem, o que sobra no mundo que valha a pena? Pão e circo, senhor David.
Em anexo envio a minha dick pic para consideração da sua excelsa cona. Estás cá dentro, meu amor, no meu coração. Aguardo a minha vez para estar dentro de ti.
E encontrar um recomeço neste arraial de pontas soltas? A vida é dor e tédio, escreveu o alegre Schopenhauer, e séries de merda na Netflix com as quais torramos o nosso tempo, acrescentaria eu se quisesse professar as primeiras linhas do Evangelho Abreviado da Escaramuça. O conhecimento há-de triunfar?! Bebe mais uma e esquece isso, camarada de esquecimento.
Se somos o que pensamos, como disse Buda, eu sou as contas a bater certinhas ao final do mês. O humorista, embora gostasse de cultivar erudição em redor dos nabos e pensamento ao lado da salsa, era um banana da nova escola. Banana gigante qual picha insuflável nas mãos tremelicantes das inglesas que nunca ninguém viu sóbrias nas ruas de Albufeira. Não obstante o tamanho, é só ar. Aproveitemos o momento solene e abordemos o tema grande deste texto: a picha insuflável tem uma pichinha chamada pipo, pela qual incha até exibir um tamanho inverosímil.
Atormentamo-nos com bagatelas, vemos nelas gigantes insuperáveis quando na verdade não passam de dióspiros maduros que podem ser aniquilados com um murrinho de fedelho cuja pança ronca de fraqueza.
E aqui vem outra frase tremenda: desapareceram-me os ícones do ambiente de trabalho, pronto, acabou-se a angústia da influência. Em linguagem leiga, estamos fodidos. Doravante é fazer como os mosquitos e ver em qualquer candeeiro um farol. Seja como for, não passamos de náufragos a boiar em cima de náufragos antigos.
 

susan-wilkinson-OZp-PXXFyPA-unsplash.jpg


Roberto Gamito

15.04.22

Apraz-me saber que existo como um ponto que nunca conhecerá o Big Bang, sem cara nem humanidade, no olho aéreo da objectiva. O ponto atravessa a rua. Comportamento ambíguo: pode tratar-se de um cão, de um gato ou de um animal vertical. O bicho entra no carro com vista a conduzi-lo. Pode ser um urso treinado para o efeito, há vídeos e memes que atestam a possibilidade deste cenário. Pelo sim, pelo não, disparar, capturar a imagem. Eis-nos engaiolados num cárcere de píxeis.
À margem do inferno quotidiano dos vivos, há quem entre galões e bolachas decida, plantado num deserto mais ou menos metafórico, o destino dos fantoches. O Homem dos Robertos, dotado com a sua mão de mil dedos, paira sobre o nevoeiro.
Protagonista ou espectador do diálogo? Perante um muito tentador apetite de engrossar o caldo do ruído com as patacoadas mais em voga, o homem contemporâneo, filho de um sem-número de ecos, pergunta a si próprio: para quê isto tudo? Não são os canalhas que vivem melhor? Moral grega, elogio ao senhor; moral cristã, elogio ao desgraçado. Depenado pela economia, com uma mão à frente e outra atrás, qual coreografia de TikTok, o homem sorri: é feliz quem não precisa de nada.
Do outro lado da barricada em chamas, o padre aconselha: não deves desperdiçar os teus talentos em cobiçar essa constelação de putéfias. E o amor?, pergunta o homem. O padre, corrompendo o dito de Santo Agostinho, retruca: só sei o que é o amor quando não mo perguntam.
Virei costas a Deus, giro numa dança de lâminas para que Ele nunca Se aproxime aproveitando um ângulo morto, incendiei a vida eterna e agarrei-me com unhas e dentes à vida terrena. Como escreveu o filósofo bigodudo, há que querer que esta vida, e não outra, se eternize.
Deus está morto, eis o que vemos quando olhamos para o momumental cadáver. Sem o oxigénio da crença, o grande cachalote encalhado e desinchado de importância numa margem lá para os lados do passado. Uma boca de proporções bíblicas da qual saem pequenos projectos de demónios, quais parasitas que abandonam os restos mortais das baleias à procura de outro hospedeiro. Inspirados em Wittgenstein, perseguindo a ideia segundo a qual, para se poder falar do mundo é necessário sair dele e contemplá-lo como um todo, serão mais tarde aclamados biógrafos do Númen. Jonas bem tentou explicar a situação à sombra da aboboreira, mas o Altíssimo não passou cartão.
Tornando o Eterno Retorno mais mastigável, essa ideia que passa de mão em mão desde os tempos de Zenão, Arash Arjomandi aconselha-nos: só deve realizar os actos que gostassem de ser autor repetidas (talvez infinitas) vezes. Por conseguinte, mato-me a cada verso, sou cuspe de carne vomitado do grande cetáceo encalhado. Sou faúlha possessa abrindo crateras modestas na folha.
Do alto sou um ponto a abater. O acto de observação obnubila a observação. Abatido o humorista, sobram-nos as palavras de Bergson: não há forma, já que a forma é imóvel e a realidade é movimento. O que é real é a alteração contínua da forma.
Ao matar a comédia, abate-se equivocamente o inocente e é-nos contada a última piada: "esta tecnologia é um testemunho neutro, livre das imperfeições e distorções da memória humana."
Haverá sempre um homem atrás da câmara: resta saber se está vivo ou morto.
 

O Destino dos fantoches, Roberto Gamito


Roberto Gamito

13.04.22

Haverá salvação para quem cortejou Mnemósine, a mãe das musas? A mão fica a sós com a ruína do corpo. Hieroglíficas, as vozes sobrevivem à tona do cadáver putrefacto.
Aplaudo deitado a verticalidade de antigos mestres, ovaciono o vagar dos vermes aprisionados no casulo da sua própria palavra. Os dias parasitam-me a alegria de uma ponta à outro do sonho.
Comovo-me com a escassez de recomeços. Só posso falar do que esqueci. E um mundo pequeno sem placas vai-me brotando dos dedos, linhas que mais parecem caminhos pejados de gumes.
Também ouço falar que os túmulos profanados pela luz num dia de alta folia serão mais tarde ou mais cedo conquistados pelo inferno. Os homens não passam de metástases da cólera divina.
O medo batia a todas as portas à espera de uma história onde pernoitar, não lhe deram guarida e agigantou-se. Num labirinto de suspiros, o homem no centro de uma legião de vozes. A palavra metamorfoseia-se em ruído e vice-versa. Que forma tomará, agora, a nossa queda? Futuro, arquitectura comida antes de tempo, pela qual sobem os gritos do poço do passado. Ninguém está a salvo de entrar num poema. Ulisses devia ter aniquilado também o aedo. Impacientam-se as pequeninas fomes, o pêlo do animal ontem civilizado eriça-se como o de uma hiena. O olhar é uma cratera onde sepulto os meus dias. Em vão procurarão domar as ondas de choque, sacudir o som e a fúria da queda, enganando com lérias os espíritos mais inocentes. E, por cansaço nosso e das instituições, tudo parecerá perdoável.
Aparatoso concurso de facadas, melhor seria deixar-te a sós com os teus demónios, talvez do Seu sangue se abrisse um portal para o Tártaro. Sou na tua boca um asteróide em queda. Não me tentes capturar com uma gaiola de dedos, sou pirilampo contorcionista fugindo por entre as frestas das convenções. Lampyris noctiluca, está dito, não me faças gastar o meu latim.
Quando acordares, já terei abandonado o poema. Ao tombar vindo do mito, a cabeça da Medusa petrifica o oceano porque viu no seu vaivém um animal vivo. O amor não pegou de estaca. Respiras de alívio: sairás ilesa dos meus dedos.
Ignoro o que o nevoeiro trará: se um deus ou um carniceiro de númenes. Chegará o dia em que terei esgotado as órbitas dos disparos fotográficos, assistirei, não sei de que lado da barricada, se vivo, se morto, ao ressurgimento de Tifeu. A culpa foi de quem imaginou as facas ébrias de sangue, dirá alguém com o fôlego a dar as últimas. Mesmo que nenhum gesto sobreviva, sobrar-nos-ão os gritos, os quais nos singularizam enquanto espécie.

Império de Tifeu


Roberto Gamito

10.04.22

Riscamos o fósforo pela enésima vez, mas a humidade humilde de uma gota de água protege-o, adiando o fim. A cabeça incólume não é destino que se queira. De que vale sobreviver ao fogo se é ele que nos efectiva?

Dentro de nós um inferno em miniatura, projectos de demónios, esboços de quedas, raivas postas em discurso e o catecismo do fracasso arrancando-nos os sonhos como quem arranca asas a insectos. De ilusão em ilusão, tentamos em vão simular as asas perdidas.

Caem meteoritos que nada sabem sobre os nossos desejos, pedimos-lhes tudo e mais alguma coisa até ficarmos afónicos, todavia o mundo não é hospitaleiro no tocante às nossas vontades.

Quando a melancolia irrompe, a mão, que não tem limites nem remédio, agiganta-se — eis a farsa. Cresce até à loucura rumo à morte de molde a pormenorizar o falhanço. Haverá alegria para quem, na folha, viu nos dedos cabeças de fósforo e tentou incendiar o seu cosmos posto por extenso? Sobrará talento para quem venceu provisoriamente a morte? Com que palavras regressou desse combate?

Vida contrabandeada por gritos
ululante comédia desmantelada
tragédia que todos acorrem para ver.

Nem o truque barato do suspiro nos salva face à cratera nos nomes outrora salvíficos. Não me parece que o poeta extraia grande minério do acto de escrever, de orbitar em terrenos resvaladiços, qual pirilampo ébrio: em nenhuma das suas órbitas encontrará redenção. Homem, o animal mais fantástico deste circo — a cabeça apinhada de problemas é um número inesgotável e em constante aperfeiçoamento. Nunca faltará público para o homem sem qualidades.

As vidas improvisadas no balcão, comentadas lado a lado com o entrechoque dos copos sempre por encher. Condenados a rabujar para todo o sempre, afugentámos o amor, a felicidade e o mais com o condão de aliviar o fardo. Ao rés do precipício, os homens encenam os antigos mitos de Actéon, Sísifo e Tântalo.

Confesso que me faltam os dias que desaproveitei a ser outro. Almejei ser clandestino bobo ao rés das goelas de Deus. Os corpos caídos numa formação que alguns dirão um enigma. Seja como for, as vozes sobrevivem num refrão animalesco. Choraram, amaram, beberam e bailaram e eu fiz de conta que não havia entendido nada. Como resgatar o passado do poço da memória sem o desmembrar no resgate?

O homem, eterno peixe fora de água, ocultando o estrebuchar em danças mais ou menos artísticas, sucumbe ao engodo das luzes dos holofotes. De uma maneira ou de outra, sucumbiremos à primeira promessa armada em messias. Minúsculos seres fantasiando estaturas ao pé de megafones. A festa termina. O coração fica a sós com o teu nome. Os que fugiram ao amor sabem do que falo.

Cada verso é uma despedida cifrada, digo adeus à miríade de homens que fui sendo. A vida é um funeral onde enterramos, à vez, as nossas metamorfoses. Salivo o fogo larapiado ao inferno. A folha, ninho partilhado por facas e aves canoras, é palco onde ensaio o recomeço. Nada nos prepara para o início.

Como reaprender a respirar se o amor semeou nós de uma ponta à outra do nosso corpo? Diz-me se ainda sou o clarão noturno que se apossa do teu corpo quando te recordas do meu nome. Ovaciono com prontidão os cães que me abocanham, mas o corpo não acompanha o gesto.

Só existo quando fico do lado de fora do pensamento. Que querem que vos diga? Escorraçar-me das ideias não é um trabalho isento de perigo. E um mundo pequenino vai-me brotando das falangetas
linhas que mais parecem caminhos arruinados, juncados de cadáveres de Ulisses. Só posso falar do que não vi.

Mas para quê insistir nesta prosa regateada no mercado do eclipse, quando a morte nos morde os calcanhares sem parança?


Riscamos o fósforo pela enésima vez, Roberto Gamito


Roberto Gamito

08.04.22

Fazendo fé nas conclusões de travo alimentício da consultora Nielsen, a qual monitoriza as compras de três mil lares portugueses, e futuramente as compras de três mil hostels, o consumo de frutas e legumes diminuiu nas famílias com filhos, privilegiando a aquisição dos produtos de conveniência, a saber: refrigerantes, conservas e take-away, que são, para usar a expressão de Clara Viana, do Público, facilitadores do dia-a-dia. Aqui principiamos a divergir ligeiramente. Embora reconheça que alguns dos produtos nos tornem a vida mais fácil, cito como exemplo uma lata de atum, a qual é uma espécie de MacGyver que desempecilha a refeição em situações que de outra forma seriam impossíveis de resolver para uma pessoa cujo lema da vida é “mexer-me o menos possível”. Se a vida melhorou drasticamente após termos conhecido a lata de atum? Não nos precipitemos na resposta. É uma relação longa, começa na universidade ou até antes e acompanhar-nos-á, suspeito, o resto da vida. Logo terá todas as características de uma relação duradoira, tanto as boas como as más. Creio ser despiciendo sublinhar que a aura romântica que paira sobre as conservas rapidamente desaparece. Falo por mim, sempre que desfruto desse singelo pitéu que consta no menu do desenrascanço, sou arrastado aos solavancos por uma imaginação contrariada rumo a um cenário de guerra em que estou a fruir da minha última refeição. E eis que choro profusamente. Não adivinharia, nem nos meus mais célebres pesadelos, que a minha vida seria essa. Acabar os meus dias a comer atum num casebre abandonado enquanto espero pela morte e ouço Maria Leal.

Há, continuando a pastorear os olhos no artigo, motivo pelo qual encetei esta prosa suculenta, um aumento dos produtos exímios em insuflar a pança, tais como: chocolates, batatas fritas, bolachas que existem para, momentaneamente, tapar o buraquinho existencial. O número de suicídios seria mais elevado se não houvesse estes paliativos. Nunca tive, que me lembre, ideias suicidas enquanto estou a estraçalhar uma tablete de chocolate. Depois de a comer é outra conversa, mas é uma questão de comprar a maior tablete possível. Teorizando um nadinha, posso assegurar que, se comprarem uma tablete de chocolate infinita, nunca mais pensarão em coisas tristes.

Que vida a criança teria se, além do típico conselho paternal “não fumes, não bebas, não te drogues” fosse aconselhado a enveredar pela via marginal logo desaconselhável da fruta. A criança não teria alegria nenhuma para continuar a viver neste mundo empestado de regras. E sabem como são as crianças. Pode acontecer, não digo que em cem mil catraios não haja um que goste de fruta, que se delicie em abocanhar citrinos e assim, mas, debaixo da mira do olhar desdenhoso e inquisitório dos seus ranhosos colegas, opta por recalcar o seu amor pelos legumes e pela fruta. Moro no Algarve, onde há citrinos aos pontapés, e do que me lembro dos tempos de escola, descartando as memórias das pessoas boas e das professoras boas, supondo que são coisas diferentes, não me lembro de muitos episódios em que o Dário ou o Alexandre pudessem descascar clementinas sem serem importunados. Supondo que a geração actual de putos é superior à minha nesse aspecto, sim, estou disponível para realizar esse salto de fé, que não importunam os outros, pois têm assuntos mais sérios a tratar, como estar concentradamente alienados ao smartphone, ou a realizar directos para o Instagram, levanta-se outra questão. A questão da socialização. A fruta não promove a socialização. Ninguém se aproxima de um puto e diz: Orienta-me aí um gomo de tangerina. Ninguém. Nós queremos relacionar-nos com os outros e a fruta e os legumes não constituem grandes catalisadores. Pelo contrário: são inibidores. Daí não constituir espanto para mim que os putos enveredem pelos Kit Kats e pelo tabaco. É o que levamos da vida. Histórias. Histórias com outras pessoas. De que me serve morrer com um corpo a abarrotar de vitaminas se ninguém quer meter conversa comigo? Isolei-me do mundo por via de ter criado uma barreira de clementinas, bananas e maçãs, pensará o miúdo que seguiu uma vida saudável. Viverá dentro de um casulo de fruta e um dia brotará, de dentro do casulo, uma borboleta bisonha da espécie Carmen Miranda.

E a mãe que diz “comprei estes abacates a pensar no meu filho” é uma mãe que não ama a sua cria. Ai eu faço-te lembrar um abacate?, pensará o filho quando confrontado com esse pensamento. Mãe, não me conheces. Eu sou um ser doce, dirá o garoto. Daqui em diante quero que te lembres de mim quando passares pela secção das gomas, concluirá o puto.

Ou então os pais detestam os filhos e estão a tentar matá-los seguindo os trâmites legais, a única forma socialmente aceite de matar um petiz: não lhe providenciar comida saudável. Não me oponho, só quero saber se é preciso aquecer o biberão de coca-cola.

A fruta não é amiga das crianças, Roberto Gamito


Roberto Gamito

03.04.22

Cautela, não tropeces no Diabo — erguer-te-ias com outro nome.
Viagem à volta da estranheza que somos, ilha habitada de animais mutantes e queira deus carnívoros. A procura frustada do semelhante fez da luz um buraco negro. De inocente a bárbaro num estalar de dedos: não chamem a isto magia, mas História. Desmantelamos o circo até ao átomo, vendemo-lo por peças a preços absurdos. Nada se ganha, nada se perde, tudo se torna risível. Nada é verdadeiramente, não te equivoques, passa de uma mão para outra: tu és aquilo que não consegues capturar.

Nem demasiado frio, nem demasiado quente; não serás o último nem o primeiro; serás os muitos gritos de uma história qualquer abafada num quarto esconso em vias de ruir. Baptizamos os vultos resgatados pela memória como quem descobre novas espécies de animais. Enchemos o coração-arca de bichos, onde ontem havia silêncio há hoje deserto, florestas e oceanos pejados de feras famintas. O nome da amada afinal é um nome entre muitos nomes — que triste princípio de poema.

Talvez se me aproximar de mãos nuas consigas — ou desejes! — habitar-me o olhar. Também ouço falar que a luz muda de nome a cada cem anos em sítios onde só conheci a noite.

Talvez tudo não passe de uma esparrela, engodo para um ego inchado e por conseguinte frágil face a um mundo a abarrotar de espinhos. Escapar aqui não é fugir, frisa o poeta, é o primeiro tijolo da metáfora. O público desconfia com as mãos nos bolsos.

Fala, cala-te, fala novamente e cala-te, para que não te caiam em cima e te desequilibres do fio alto da vida e te despenhes sem aplausos cá em baixo, terra onde os alheados ensaiam o inferno.

Olhas para um muro, olha um muro, murmura alguém ao teu lado, e de supetão o muro perde o carácter de metáfora, apenas um muro que, se intransponível, nos faz recordar o seu antigo sentido figurado. Descobres que não há muros nem pontes. Os séculos pretéritos sobem pelas tripas, jogas a mão à boca, inocente, julgas impedir o caudal do passado. O passado estorvará sempre o presente.

A ausência de amor é uma comédia ou uma tragédia? O homem só vence a melancolia de três formas: pela arte, pela imaginação e pelo amor. Se a imaginação ficou lá para trás, na infância, se o amor é impossível e a arte dá mostras de não dar conta do recado, o que nos sobra?

A mão-flecha-luz-quase sobrevoa, alheada das linhagens, o cadáver de Deus. Imagino-me a dançar no interior putrefacto de Moby Dick. Este é um tempo em que as sombras são disputadas por um sem-número de cães, sem luz capaz de impor limites. Chamam a isto vida, embora me pareça que fomos vomitados pelo nada neste século. É sempre a mesma merda: os homens entediam-se sem arte, as moscas deliram e os camaleões oportunistas fazem planos para o futuro.

Após auscultar o coração do paciente, o médico questiona o desgraçado: “Há quanto tempo não lê um poema?” Poema, riposta o homem sem qualidades, há tanto tempo que não ouvia essa palavra.

A paixão é a cana de pesca que resgata o nome do rio do ruído. Gota a gota o dilúvio ou o dragão. Fechado numa câmara anecoica com um relógio, o tiquetaque funde-se no sangue que o silêncio tornou mar. O interior vem à tona revoltado. Se o interior contar a história da carne de uma ponta à outra, enlouquecemos.

Ontem remexia, junto da lareira, ao rés dos velhos corcundas, hoje pasto de vermes, os toros com uma tenaz. Os andaimes que rodeavam o futuro foram retirados e demo-nos conta do ludíbrio: não construímos nada durante este tempo todo.

Não tropeces no Diabo, Roberto Gamito

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