Roberto Gamito
11.05.22
O âmbar deu-nos a palavra electricidade; Deus, se quisermos perder a cabeça, o sangue. Retrocedo até à frase "a fama é a única verdadeira vida após a morte, onde vikings e monges se arruinavam por tesouros sobrestimados. Sacrificavam-se porcos, cavalos e homens. Templos onde o sangue salpicava paredes e caras, graúdos e miúdos. Os escaldos, os poetas da corte, escreviam com o sangue resultante da cidade dinamitada pela cólera. Os escaldos escaldados pelo caldo dos dias curtos passeavam o seu pescoço por entre as lâminas. Hei-de sepultar o meu nome numa canção imemorial, cogitava o guerreiro a um centímetro da lâmina que o havia de degolar. Homens e gado dormiam sob o mesmo tecto: de molde a manter a casa habitável no inverno.
Regressemos ao âmbar. Tempos houve em que era cobiçado por reis e senhores. Amiúde era trocado por bronze. Em certas praias, o âmbar, o qual flutua em água salgada, povoava as águas de pepitas curiosas. Além disso é inflamável. Ao passar o inverno nos territórios do sangue, o homem deixava que o monstro se alimentasse do seu silêncio e a cabeça amiúde cedia. Ao abeirar-se da praia pelo caminho da cerveja e do hidromel, uma não-pessoa (o nome dado ao homem que rejeitava a glória, o raide e a carnificina) via no interior do âmbar a cabeça das suas vítimas e eis que a memória via numa delas um rastilho. Uma constelação de cabeças em chamas sobre as águas.
Do outro lado deste delírio, o meu nome será terra arável para sustentar a música da minha glória. E eis outro corpo sem cabeça cravejado de setas.
Como certos bosques, o silêncio é impenetrável para forasteiros.
Esqueçamos os bosques, adentremos sem esperança nos pântanos, tão caros os homens do norte. Humoristicamente falando, os vikings, antepassados dos praticantes de BDSM, tinham um certo apego a ambientes pobres em oxigénio, quiçá uma homenagem cifrada ao episódio em que Odin se enforcou durante nove dias na Árvore do Mundo, Yggdrasil, com o fito de obter os segredos das runas. Seja o que as Nornas quiserem.
Houve cabeças cortadas de orelha a orelha, cabeças atiradas para o mato, como a de Edmundo, e encontrada mais tarde protegida por um lobo. Antes de regressarmos ao início, houve um homem que foi enterrado com a sua espada, com um martelinho em homenagem ao deus Thor e um pénis simbólico, o qual substitua o que perdera em batalha. Batalhas onde homens perdiam a visão, a cabeça e o caralho.
Tudo começou quando o calor se encontrou com o gelo. O calor fez com que a vida despertasse do gelo e que tomasse a forma de um gigante, Ymir. Enquanto Ymir dormia, um casal de gigantes formaram-se a partir do suor do sovaco esquerdo (olá, Rabelais!), ao passo que a perna gerou vida ao tocar na outra perna. Ymir, o antepassado dos gigantes de gelo.
À medida que o gelo cedia ao calor, surgiu uma vaca. Audhumla, a vaca primordial, lambia o gelo e o leite dela alimentava Ymir.
Bor e Bestla tiveram três filhos: Odin, Vili e Vé, os primeiros deuses. Odin e seus manos mataram Ymir. Do seu corpo nasceu a terra, do sangue, o oceano. Curioso perceber que houve tempos em que rio de sangue era uma tautologia.
Não satisfeitos, pegaram no crânio de Ymir e puseram-no sobre a terra para fazer o céu; povoaram o céu com o cérebro de Ymir e surgiram as nuvens. Reciclagem à antiga.
Desde esse dia que os gigantes planeiam a vingança sobre os deuses. Desde então que Jotunheim é um barril de pólvora à espera de Ragnarök.
Após reciclarem o gigante Ymir, os três deuses converteram dois troncos nos primeiros humanos, a saber: o homem Ask (freixo) e a mulher Embla (ulmeiro). Faz sentido o estado actual do mundo: toda a humanidade descende deste casal de cepos.