Se me proibissem o uso de palavrões, seria incapaz de exprimir com pertinência a tempestade que me povoa o cérebro quando observo de olhos esbugalhados e de boca escancarada as matilhas contemporâneas a apedrejar infatigavelmente o comediante, esse saco de pancada universal. No entanto, urge vestir a bata da seriedade, não confundir com a do médico, que esse é um burlão, diz que trata da saúde às pessoas mas raramente distribui sopapos aos pacientes, e munirmo-nos, não de um bisturi, mas de um facalhão apropriado para a dissecação destes temas comichosos.
A relação actual das massas com o humorista é prenhe quer em algazarra, quer em sentido. É como se fosse uma bulha ininterrupta: há sempre alguém a apanhar, sempre alguém a gritar e, como não podia deixar de ser num evento de luta destas dimensões, sempre alguém a comentar. Desconfio que podemos encontrar o Homem do século XXI tal como ele é, desnudo e mínimo, se aprofundarmos a compreensão desses fenómenos.
Segue-se o inventário compacto das minhas comichões.
1) Somos endeusados pela indignação.
A partir do momento que faz a sua apreciação negativa à laracha, o ser humano típico das redes sociais é impelido por uma necessidade indomável de verbalizar a sua reacção, dado que, neste século, não há nada que deva permanecer na esfera privada. Seria estúpido da parte do indignado sentir-se furioso e não tentar lucrar com a situação, seja esse lucro de pendor monetário ou de pendor reputacional.
Quando possuído pelo espírito da indignação, o Homem salivante sente-se legitimado para tudo e mais alguma coisa. A chalaça não me caiu no goto, logo sou estúpido (segundo o meu humilde parecer de observador autodidacta), logo vou linchar o déspota da laracha. A piada e principalmente o autor da piada levam no lombo e, reparem como isto fica perverso, a vítima nem sequer tem o direito de se queixar da pancada. Caso se queixe, é novamente alvo de críticas. O chamado mamar e calar. É preciso frisar a tinta fluorescente que estes bárbaros eram, até há minutos, acólitos da empatia e segredavam entre pares que o mundo precisa é de amor, compreensão e diálogo. Lá foi a máscara de boa pessoa para o galheiro.
2) Julgar um padrão graças a um ponto.
Este século é fértil em estupidez e em contradições. As pessoas não se inibem de comunicar-nos que não gostam de ser julgadas são as primeiras a julgar, não uma, mas milhares se estas forem contra a sua opinião. Se não acho graça, ninguém pode achar graça. Aliás se acharem graça são todos doentes, nojentos e outros apodos que ficam bem no currículo de qualquer canalha.
Embora seja um espectáculo deveras entusiasmante julgar alguém à queima-roupa por um acto, neste caso mínimo, a apreciação de uma piada, não posso deixar de dizer que é um comportamento enervantemente pueril. Ninguém consegue julgar uma pessoa com base em algo tão insignificante. Para percebermos a tendência necessitamos de vários pontos e de muitas experiências. Estes meninos raivosos, os quais se dizem amigos da ciência, comportam-se como se fossem profetas. Só eles sabem a verdade.
Como diria o outro, o eclipse da razão será a nossa desgraça.
Mas vamos dar uns minutinhos de folga ao cérebro e mudarmo-nos para o seguinte cenário. Eles têm razão: é possível julgar uma pessoa com base numa reacção a uma piada. Imaginem o ganho civilizacional que seria. O suspeito seria julgado com base numa piada dita ofensiva. O juiz contava uma laracha de humor negro; caso o tipo esboçasse um sorriso, era condenado, caso contrário, seria inocentado. Só tinha um inconveniente: o juiz seria descartável, só dava para um julgamento.
3) Eu é que sei o que é humor.
Em tempos idos, o Homem chegou a um consenso de que o humor, tal como as restantes artes, tende para a subjectividade. Não neste século. O mal dos viciados pelo literal é que são cegos para a profundidade. Só existe o que eles vêem; infelizmente não vão além da superfície. Resultado: os outros, aqueles que mergulham em apneia nas coisas, são apelidados de criminosos ou coisas que tais. Em suma, cegos tentam-nos, por todos os meios, impingir a sua visão.
4) O humor actual transformou-se numa troca de galhardetes.
Como estamos a viver numa época em que o narcisismo dita os nossos comportamentos, tudo o que não vai no sentido do elogio, de nos afagar o ego, é visto como nocivo. Daí que a designação do que é considerado ofensivo cresça de dia para dia. Se a tendência da indignação continuar a arrebanhar temas, chegaremos a um ponto em que a comédia estará restringida ao elogio claro ao outro. Os risos hão-de surgir, mas surgirão como simulacros. Será um riso tipicamente de rico quando, numa festa em que pode lucrar de algum modo, o Homem soltar uma gargalhada falsa a fim de criar uma noção fictícia de proximidade.
5) Lá estão vocês com a liberdade de expressão.
Uma frase muitas vezes atirada aquando o rescaldo de uma piada.
Aos olhos actuais, a liberdade de expressão tornou-se um luxo. Por um lado não há censura, como tanto gostam de propalar os amigos do politicamente correcto, por outro, não se pode sequer mencionar a liberdade expressão. Ela existe. Quem é que existe? Não se pode dizer. Uma espécie de Voldemort.
6) Quem se ri é doente.
Usando um raciocínio análogo ao do tribunal e do juiz, seria a morte dos diagnósticos médicos. Não sabemos se estamos doentes, então pedimos a alguém que nos conte uma piada. Se nos rirmos, estamos doentes, se não rirmos, podemos dormir descansados. E um acrescento de graça: o homem sem posses foi possuído pelo milenar comportamento do rico, o qual sentencia: se não te ris és dos nossos, se te ris és tantã.
7) A desproporção entre a piada e a reacção.
A piada, por muito má que seja, é uma piada. E é aqui que o faroleiro incumbido de ajudar os barcos da virtude dá um tiro no pé. Ao reagir à piada que detesta estupidamente, deseja a morte ao comediante. É como adquirir uma bomba atómica para matar uma mosca.
Uma última palavra aos agrimensores da piada: amor. Desejo-vos tudo de bom. Não estou a ser irónico. Não desejo mal a nenhum de vocês, nem à vossa família, nem tão-pouco que os vossos cães morram da forma mais cruel possível. Não desejo isso a ninguém, mesmo que sejam indignados profissionais.
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