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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

31.07.22

Túnel de Vento é simultaneamente um podcast de comédia e um erro.

Há improviso, humor, lamirés sobre literatura e poesia e, de longe em longe, javardice de elevado quilate.

De Roberto Gamito e suas vozes.

Uma hora e quinze de cabeça faminta.

 

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Apeadeiros da conversa:
.Os gafanhotos são vândalos.
.Reflexão sobre os golfinhos.
.O lagarto bombeiro.
.O cão, o actual melhor amigo do Homem.
.Cavalo, o antigo melhor amigo do Homem.
.Humorista Mongol.
.Os cavalos não existem.
.Golfinho, o futuro melhor amigo do Homem.
.O bacalhau inspirou-se no ser humano.
.Se Deus quiser.
.Deus te abençoe.
.Meteorologia antes da invenção do termómetro.
.Repensar a nossa relação com as formigas.
.Meditação sobre a prisão de ventre.
.Fisioterapia badalhoca.
.Sumo de maçã.
.Saco reutilizável e cão.
.A minha vida foi um grande erro.
.Reflexões sobre o artista.
.Frases e citações soltas.
.Não sei fazer nada.
.Ensacar e o olhar reprovador.
.Adultério na Idade Média.
.Temperança.
.“Foi apanhado a beber”.
.Bêbedo activista numa operação stop.
.E mais.

Podem ouvi-lo no Spotify ou em qualquer plataforma de podcasts. 

 


Roberto Gamito

21.07.22

Se me proibissem o uso de palavrões, seria incapaz de exprimir com pertinência a tempestade que me povoa o cérebro quando observo de olhos esbugalhados e de boca escancarada as matilhas contemporâneas a apedrejar infatigavelmente o comediante, esse saco de pancada universal. No entanto, urge vestir a bata da seriedade, não confundir com a do médico, que esse é um burlão, diz que trata da saúde às pessoas mas raramente distribui sopapos aos pacientes, e munirmo-nos, não de um bisturi, mas de um facalhão apropriado para a dissecação destes temas comichosos.

A relação actual das massas com o humorista é prenhe quer em algazarra, quer em sentido. É como se fosse uma bulha ininterrupta: há sempre alguém a apanhar, sempre alguém a gritar e, como não podia deixar de ser num evento de luta destas dimensões, sempre alguém a comentar. Desconfio que podemos encontrar o Homem do século XXI tal como ele é, desnudo e mínimo, se aprofundarmos a compreensão desses fenómenos.

Segue-se o inventário compacto das minhas comichões.

1) Somos endeusados pela indignação.
A partir do momento que faz a sua apreciação negativa à laracha, o ser humano típico das redes sociais é impelido por uma necessidade indomável de verbalizar a sua reacção, dado que, neste século, não há nada que deva permanecer na esfera privada. Seria estúpido da parte do indignado sentir-se furioso e não tentar lucrar com a situação, seja esse lucro de pendor monetário ou de pendor reputacional.

Quando possuído pelo espírito da indignação, o Homem salivante sente-se legitimado para tudo e mais alguma coisa. A chalaça não me caiu no goto, logo sou estúpido (segundo o meu humilde parecer de observador autodidacta), logo vou linchar o déspota da laracha. A piada e principalmente o autor da piada levam no lombo e, reparem como isto fica perverso, a vítima nem sequer tem o direito de se queixar da pancada. Caso se queixe, é novamente alvo de críticas. O chamado mamar e calar. É preciso frisar a tinta fluorescente que estes bárbaros eram, até há minutos, acólitos da empatia e segredavam entre pares que o mundo precisa é de amor, compreensão e diálogo. Lá foi a máscara de boa pessoa para o galheiro.

2) Julgar um padrão graças a um ponto.
Este século é fértil em estupidez e em contradições. As pessoas não se inibem de comunicar-nos que não gostam de ser julgadas são as primeiras a julgar, não uma, mas milhares se estas forem contra a sua opinião. Se não acho graça, ninguém pode achar graça. Aliás se acharem graça são todos doentes, nojentos e outros apodos que ficam bem no currículo de qualquer canalha.

Embora seja um espectáculo deveras entusiasmante julgar alguém à queima-roupa por um acto, neste caso mínimo, a apreciação de uma piada, não posso deixar de dizer que é um comportamento enervantemente pueril. Ninguém consegue julgar uma pessoa com base em algo tão insignificante. Para percebermos a tendência necessitamos de vários pontos e de muitas experiências. Estes meninos raivosos, os quais se dizem amigos da ciência, comportam-se como se fossem profetas. Só eles sabem a verdade.

Como diria o outro, o eclipse da razão será a nossa desgraça.

Mas vamos dar uns minutinhos de folga ao cérebro e mudarmo-nos para o seguinte cenário. Eles têm razão: é possível julgar uma pessoa com base numa reacção a uma piada. Imaginem o ganho civilizacional que seria. O suspeito seria julgado com base numa piada dita ofensiva. O juiz contava uma laracha de humor negro; caso o tipo esboçasse um sorriso, era condenado, caso contrário, seria inocentado. Só tinha um inconveniente: o juiz seria descartável, só dava para um julgamento.

3) Eu é que sei o que é humor.
Em tempos idos, o Homem chegou a um consenso de que o humor, tal como as restantes artes, tende para a subjectividade. Não neste século. O mal dos viciados pelo literal é que são cegos para a profundidade. Só existe o que eles vêem; infelizmente não vão além da superfície. Resultado: os outros, aqueles que mergulham em apneia nas coisas, são apelidados de criminosos ou coisas que tais. Em suma, cegos tentam-nos, por todos os meios, impingir a sua visão.

4) O humor actual transformou-se numa troca de galhardetes.
Como estamos a viver numa época em que o narcisismo dita os nossos comportamentos, tudo o que não vai no sentido do elogio, de nos afagar o ego, é visto como nocivo. Daí que a designação do que é considerado ofensivo cresça de dia para dia. Se a tendência da indignação continuar a arrebanhar temas, chegaremos a um ponto em que a comédia estará restringida ao elogio claro ao outro. Os risos hão-de surgir, mas surgirão como simulacros. Será um riso tipicamente de rico quando, numa festa em que pode lucrar de algum modo, o Homem soltar uma gargalhada falsa a fim de criar uma noção fictícia de proximidade.

5) Lá estão vocês com a liberdade de expressão.
Uma frase muitas vezes atirada aquando o rescaldo de uma piada.
Aos olhos actuais, a liberdade de expressão tornou-se um luxo. Por um lado não há censura, como tanto gostam de propalar os amigos do politicamente correcto, por outro, não se pode sequer mencionar a liberdade expressão. Ela existe. Quem é que existe? Não se pode dizer. Uma espécie de Voldemort.

6) Quem se ri é doente.
Usando um raciocínio análogo ao do tribunal e do juiz, seria a morte dos diagnósticos médicos. Não sabemos se estamos doentes, então pedimos a alguém que nos conte uma piada. Se nos rirmos, estamos doentes, se não rirmos, podemos dormir descansados. E um acrescento de graça: o homem sem posses foi possuído pelo milenar comportamento do rico, o qual sentencia: se não te ris és dos nossos, se te ris és tantã. 

7) A desproporção entre a piada e a reacção.
A piada, por muito má que seja, é uma piada. E é aqui que o faroleiro incumbido de ajudar os barcos da virtude dá um tiro no pé. Ao reagir à piada que detesta estupidamente, deseja a morte ao comediante. É como adquirir uma bomba atómica para matar uma mosca.

Uma última palavra aos agrimensores da piada: amor. Desejo-vos tudo de bom. Não estou a ser irónico. Não desejo mal a nenhum de vocês, nem à vossa família, nem tão-pouco que os vossos cães morram da forma mais cruel possível. Não desejo isso a ninguém, mesmo que sejam indignados profissionais.

 

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Roberto Gamito

19.07.22

Após levar meia dúzia de socos desinspirados, Samuel ficou especado como uma cruz no meio da taberna, feito parvo, como se estivesse à espera de uma segunda vaga de sopapos. E não tardou até mamar das boas. Doravante ficou conhecido como o Azougue de Refregas.

Outro episódio. Atirou-me o cavalo do xadrez aos cornos. Esse 'L' é um bocado para o grandote, seu batoteiro, retrucou a vítima da jogada que transbordou das regras. Falas assim na frente dos teus pais?, meu patife, disparou asperamente a catapulta de cavalinhos. Já que és burro, vou explicar-te. Ao contrário do cavalo típico, este é um cavalo bem tratado, pelo que está apto a pregar saltos maiores. Nada ganhas em armar-te em entendido em xadrez se só estás apto a jogar com as regras que te dão. Não é para me gabar, mas venci a morte, continuou o autor do arremesso. Fiz jogo duplo, fiz-me amigo e inimigo, essa é a única maneira de fintar a morte. Acabamos goleados, mas isso fica para outra vez.

Tranquilizem-se, não me apanham nesse tabuleiro, olhe, meu filho, leitor torto de olhos míopes, a mim não me fazem ninho atrás das orelhas. Escondi dinamite em todas as frases. Não queria dizer diamante? Dinamite, filho. Avança com a exegese, força, caralho!, para ver se eu não expludo com o teu castelo de cartas. Não tens vergonha na cara? Não te fartas de arpoar catedrais com alfinetes? Farejo os da tua laia a léguas. Essa multidão de gigantes postiços que não aguenta uma brisa.

Também era um monte de merda, coitadito, um segundo lugar no concurso de poesia. Se ao menos tivesse legado uma arca cheia de papéis. Fernando Pessoa? Era mais Fernando Ninguém. Eu também sou ninguém. Eu também, retruca Ulisses. Como vêem, somos todos irmãos, vocifero eu no alto da mesa.

Fugia do amor como Jonas de Deus. Enfiava-me em qualquer buraco, viajava em qualquer cetáceo, mas o cabrão perseguia-me sempre. Nem à sombra da aboboreira o gajo me deu descanso. Entretanto mandaram-me para o mato à procura de Virgílio, e desde aí que nunca mais fui visto agarrado à esperança.

Vamos a outra cena. A confiança insuflada pelos dois uísques que havia mamado dera-lhe paleio afiado para se atirar nos mares mil e uma vez vindimados da sedução. Vou ensinar-vos a engatar uma escritora numa frase, dizia o nosso homem para uma plateia de bêbedos: Há coisas que não se dizem, mostram-se. A escritora rir-se-á, pois reconhece a referência e encancarar-se-á para que o homem lhe apresente a sua desilusão a cavalo na mentira.

Completado o prelúdio, reivindico a pleno pulmão os meus direitos de incomodar.

Resistiu pouco e mal àquele decote avantajado. A tentativa de esconder o historial de guloso fracassou logo aos primeiros ameaços de anca. Não fosse a mulher ter-lhe achado graça e a cena ter-lhe-ia descambado para o insulto. Levantou a saia cerca de dois dedinhos, depois explorou-lhe as fraquezas e as fomes. Noutras alturas diríamos que aquele decote era o Homem dos Robertos daquele pobre homem.

Cúmplices e firmes, homem e pénis traçavam um plano com vista à trigonometria do calor, aos altos e baixos da carne. Mal sabiam eles, pénis e homem, que já haviam sido engaiolados no tesão da mulher.

Agora, se me dão licença, vou narrar outra talhada biográfica, deixemos os pardais com cio no seu ninho.

Um gajo num armazém vazio, se não for parvo, tem todas as condições para ensaiar a sua loucura. O escritor tinha-me saído cá um artista, até a pegar na caneta se via aflito, o padre revelara-se um bêbado sem deuses a quem se confessar, a freira uma puta com cio, a puta uma puritana e o público um cacho de vultos. E isto tudo na minha cabeça.

A mulher tinha-lhe oferecido um par de cornos pelos anos, e todo o amigo e oportunista da desgraça lhe dava pancadinhas nas costas. Foi a melhor coisa que lhe aconteceu. Ao consolá-lo, pagavam-lhe sempre um copito. Tal como o aedo marginal, era comum vê-lo a labutar no duro ao balcão para que um dia não restasse nada do seu nome.

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Roberto Gamito

17.07.22

 
Há toda uma escala de assobios, um tom para cada tipo de gado. Do labor ao assédio vai uma nota fora de tom, ensinava o pastor a Beethoven, que se fazia de surdo, pois na morte recuperara a audição, ambos numa tasca entre o Céu e o Inferno lá para os lados onde a arte perdeu as botas. O compositor soltou uma procissão de caralhadas, rendera-se, finalmente, ao valor terapêutico de certos vocábulos portugueses. A flora, nem me digam nada, a fauna, que horror, bichos pequenos não me entram em casa, tal declaração ofende os insectos, embora estes careçam de estudos para adentrar na frase do rico. Afinal o que sabe esta malta quitinosa que anda à cata de grãos de açúcar como os homens de salvação? Mais um besouro de patas para o ar.

O que importa é animar a malta. Eis a frase apócrifa que Deus terá dito após ter bombardeado Sodoma e Gomorra com a sua cólera. Não há necessidade de encher o ar de histórias carunchosas, o pescoço não deixará de se embeiçar pela lâmina, os tempos de Xerazade já lá vão, nem tão-pouco podemos esperar encontrar, debaixo de uma pedrita musgosa, um interlocutor em condições de quem se esperasse interpretações particularmente inteligentes.

Ponderou como pôde se havia ou não de meter o bedelho na sarrafusca; acabada a festa, era tempo de posficiá-la com gritos e pontapés, talvez assim a memória fizesse o seu trabalho. Havias de querer entrar na História com as mãos nos bolsos, comentou o Diabo.

Noutros tempos, ensacaríamos o século numa definição breve e catita, um epíteto que pudéssemos exibir nas noites mais longas, mais despovoada de decotes, uma espécie de medalha larapiada ao inferno. Em faltando temas no mundo, o poeta observa o poeta com o fito de lhe arrancar o coração e pô-lo na folha. Noutros tempos, tal acção reputá-lo-ia de avariado dos cornos, todavia, vivemos numa época em que a loucura é um campeonato lotadíssimo de talento. Não é fácil um louco destacar-se num hospício em expansão.

O que vai para aqui de verborreia e de pinotes, pensará o leitor; cabrão, ripostará o escritor, não me interpretes assim, não te conheço de lado nenhum, não sou como as tuas putinhas mansas que lês na net, todas afagos e músicas de embalar egos mais irritadiços.

Na folga do cão, o moço, aprendiz de pastor, dispersava o gado com gritos para poupar no chumbo. Eu sou o cornaca da minha vida, bradava o vate ao hindu que ria porque não percebia português. Para mim, o sexo deve ser como um bom livro, dizia alguém cujo nome não importa frisar, deve apressar-se para chegar ao inferno, entrar logo sem prosa manca, do estilo: Chamem-me Ismael ou filho da puta, não vim ao mundo para ser educador de infância de umbigos, mas sim para pegar no legado inconcluído (belo mamarracho linguístico) de Tifeu e coleccionar cabeças de deuses. Ignoro se a terra é plana nas costas curvas de um paquiderme, o qual repousa em cima de uma tartaruga que por sua vez repousa no centro da rosa. Daqui para a infância só há caminhos de cabras, é impossível regressar a essas províncias bem montado. O que é o Homem afinal? Isso é fácil: uma espécie de Himalaias povoados por animais espantadiços, sentimentos que raramente se deixam ver, feras que jamais se deixarão fotografar, templos esvaziados pelas neves, estradas intransitáveis reabertas pelo calor. Belo naco de prosa, porém importa reter o seguinte: não dêem dinheiro aos monges budistas ou hinduístas, eles fodem tudo em comida para percas, atafulham o Rio Ganges de farnel, porra, assim é fácil ser peixe, diz um pombo invejoso da fartura de migalhas.

Neste mundo pós-pimba, não há uma alminha capaz de nos ensinar seja o que for. Cercam bibelôs de andaimes e chamam a isso arte contemporânea. Meu querido Duchamp, se fosses para o caralho ganhavas mais. Recordo-me dos tempos em que houve uma cruzada antimasturbatória, composta por médicos e padres, em que a punheta e a guitarrada de clitóris eram a raiz de todos os males. Não sabemos dar valor ao nosso século, espancar o maroto despreocupadamente é das grandes conquistas civilizacionais; o activista da sarapitola, engolido pelo tempo, merece todo o meu respeito. Tempos houve em que bastava a criança levar a mão ao sexo para ser motivo de a banirmos de casa. As implicações de ser apanhado a afagar a cobra zarolha pelos pais eram tremendas no século XVIII. Ser médico nesses tempos era a coisa mais fácil do mundo: era recuar com o auxílio do doente até o episódio onde a mão lhe fugira marotamente para as províncias acesas. No princípio, era a masturbação. Ei-la, a marotice-mor, a masturbação, o epicentro do inferno, causava cegueira, meningite, doenças nos ossos, o rol é quase infinito. A punheta, naqueles tempos, era um jogo de tudo ou nada. Os habitantes deste século são os privilegiados da masturbação. O caminho foi longo mas valeu a pena, no fim gozamos todos, cada um no seu dialecto de gemidos e roncos.

Porra, eu não mereço isto, pensa o bardo entre dois versos, não ganho para a côdea, vendi a farpela de pardal de molde a poder editar o livrito numa edição de autor entre aspas, foram-se os banquetes e os Neros, os Bacos e os Petrónios, ficaram os incêndios, eu que sempre fui sério de contas, noves fora nada, pronto, estou gasto, doravante só lá vou com citações, pronto, lá vou eu aborrecer os paleontólogos quando descobrirem que fossilizei numa cadeira à espera do futuro. Mais um besouro de patas para o ar.

Estou aqui, filho, entre metáforas, a fazer festinhas a uma greguería, sou desenrascado ou enfrascado entre assonâncias, façam-me um favor, vão à janela fazer adeus às pontes para lado nenhum, vejam-me a rir satanicamente entre os maus, com dinamite entre os dentes, que se foda a rosa, não há tempo para tangos.

Ai que valente que o político é, a fazer peitinho à tragédia com um rosário de frases feitas. Não me queiram junto dos vossos ídolos, meus queridos, num repente detonaria o discurso positivo preso por arames, aqui está o vosso inimigo, em carne e osso e gordura. Não me tentem capturar nas vossas palavras, eu transbordarei sempre dos vossos epítetos. Hei-de cuspir ácido nas vossas gaiolas até ter força no esqueleto.

A razão por que me intrometo em todos os episódios, qual velha treinada nos boatos, ai, ainda estás entre nós, pensei que havias morrido ou desaparecido, não, caro colega de marasmo, estive a agigantar-me em pipas de cólera, a fermentar a cabeça e a mão esquerda. Não quero passar o resto da vida como aquelas poetas que confundem poesia com inventários de ninharias. Ai, vejam bem o demónio que lhe tomou conta das mãos, diz o exegeta cruzando Freud e restante pandilha que espreme a relação entre pai e filho em busca de um sentido para a vida, olha-me o cabrão, comenta o especialista de rodapés despindo a língua de etiquetas, nunca desafiou o pai nem a autoridade e agora deu-lhe para marrar com os deuses na escrita.

Cada vez me convenço mais de que vivo naquele mundo povoado por mãos, elas que destronaram o homem, descrito por Herberto Helder no Photomaton & Vox.

Além das sobras dos trabalhos de Hércules, há a empreitada de fazer e desfazer o tédio sem morrer no processo, sobra-nos atacar o muro das convenções à cabeçada e ao pontapé e rezar para que o sangue faça brotar do muro um poema eterno capaz de rachar este casulo.
 

Dinamite nos Dentes, Roberto Gamito


Roberto Gamito

13.07.22

Na escrita, atiro carne podre aos vindouros. Formulei, para uso caseiro, tempestades e incêndios, vandalizei máscaras e escoei venenos. 
Numa das minhas mãos habitam um sem-número de roteiros de desorientação. Vasculhei dentro de mim — reconheço hoje o equívoco — uma família de mapas novinhos em folha. 

Os caminhos alimentam-se de passos, a jornada cresce com o nosso desnorte. 

A mulher suspira, como é usual em muitas histórias. Sabe-se pouco a respeito das entrelinhas da respiração aflita. O talento da respiração é fintar repetidas vezes a morte. 

A senhora de noventa anos descobre que a filha tem Alzheimer. Em minutos perdem-se todas as certezas da última década. 

Cabisbaixo, o meu rosto despenha-se do céu, qual Lúcifer, nas poças de água. 

Rasto cifrado para ludibriar hienas e perdigueiros, passos tapados por folhas, apeadeiros em chamas. Ulisses anónimos com a água das lágrimas a dar-lhes pelo pescoço. A vida a centímetros da morte. 

Toda a gente acorda de manhã como que vinda de um milagre, hesitante, um pouco espantada com mais um dia. Não era esta a imagem que tínhamos do inferno. 

Um ponto. Não há lugar para os pés nem para as mãos, nem tão-pouco para deuses. Encolhemo-nos até ao esquecimento. Novamente nesse ponto primevo, o antes-de-tudo-o-que-conhecemos-e-ignoramos. 

As coisas libertam-se do seu nome emperrado graças ao grito. 

Vencidos os homens, sobram umas migalhas. As sementes preparam uma rebelião há séculos no rés-do-chão do sangue. Até lá sobram-nos as histórias. As línguas despem-se de palavras ao rés do rosto amado. A mão percorre ao de leve o rosto como a brisa a cevada. O seu cheiro invade os campos da minha imaginação.  

A sua verticalidade é postiça, porque teme soltar o animal na escrita. Este alarde a que não falta fanatismo actua como um holofote, elevando o espantalho a celebridade. 

Amor, Deus, morte. A respiração de civilizações inteiras ecoa dentro de certas palavras. 

O falcão olha de cima o labirinto do Homem e confunde-nos com formigas. Agora vamos por aqui: engaiolar na mão a recém-cortada cauda da osga e ver na sua movimentação vã a humanidade. 

A morte, assim como Deus e o amor, é uma semente, está no meio de nós. Envelhecemos por aí, à procura do perdão. 

 

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Roberto Gamito

08.07.22

Se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão
- Herberto Helder
 
Já não ganho para a côdea, vivo à base de laranjas.
- Anónimo numa pastelaria algarvia
 
Preenches os buracos da árvore do conhecimento com a respiração aflita. Ofereces, ao mundo então escancarado, sem que a magia interfira, uma longa dinastia de gritos categorizados por épocas, credos e cor. Sem que o saibas, edificas o mapa da dor humana.
Na arte, és uma deidade tardia aprisionando uma estrela armada em coração entre as mãos. A estrela, que amanhã será palavra mansa poisada na folha, recusa-se a entrar na frase. Que trabalho te calhou em sorte, ó miserável!
É sempre a mesma coisa: antes de ingressar nas linhas, as mortes evitadas por sorte ou engenho aproximam-se em bandos de muitas e iniciam a dança de Shiva — a da destruição — em torno da minha cabeça, descrevendo órbitas excêntricas, abalroando satélites e planetas e estrelas que garantiam a estabilidade desta criatura assustadiça todavia vertical.
Noutra divisão da casa da biografia, o coração é arrancado de supetão pela coreografia adiabática da amada. Um passo atrás pode apunhalar um homem apaixonado no coração. A ideia de reverter a situação percorre os interstícios dos episódios vizinhos qual cobra sem cadastro.
É um crime ficar a meio na estrada do amor. Para onde ir se o meu norte se evaporou?
Doravante o caminho é um ziguezaguear sonâmbulo entre precipícios e fojos. O ouro das antigas palavras revela-se pechisbeque — o eterno amor oxida-se, revelando a farsa.
Carne arrefecida pela dor, metal exótico ao qual as chamas jamais ensinarão novas formas.
Infância, fera de mil caras, paisagem que nos assombra e abocanha por dentro com uma miríade de engodos, réplicas baratas de quadros fabricados pela hilariante memória, a qual é incapaz de conservar na íntegra seja o que for.
Se recuássemos uns aninhos, não teria pejo de pronunciar esta frase: "As tuas mãos cercam-me em sonhos, eu ardo qual cidade prestes a ceder às investidas dos bárbaros. "
Uma constelação de buracos negros estrangulada pela memória — o ataúde de Deus. Dentro de mim há um sem-número de génios engarrafados, ansiosos por trazer a morte ao seu salvador. Qual destas ideias me trará a morte?
Julguei, reconheço hoje a ingenuidade deste pensamento, que a vida acabaria por me conduzir a uma clareira no interior desta floresta negra inescapável, que é como quem diz, um princípio de entendimento. Tenho feito os possíveis para exorcizar os becos da vida. O quotidiano, outrora amigo, converteu-se num demónio de alto coturno. Vejo guilhotinas em todas as esquinas. Não sou senão uma marioneta nas mãos do meu demónio, eis a primeira revelação. Seguir-se-á, nem que seja num sonho ou num pesadelo, a emancipação da marioneta. Não será tarefa fácil. Ao cortar aos fios com o hábito, vou ter de reaprender a andar, de sair bípede pelo meu próprio pé desse entulho de ossos, pele e farpela que é a vida nova. Erguermo-nos das nossas sobras sem a mão vinda do alto não é isento de perigos.
Volta e meia regrido na metamorfose e regresso ao casulo. A sós com a minha respiração, reconheço que a escrita é som e fúria, o passado ebuliente posto por extenso. Não há como amansar a mão inspirada em Tifeu sem derramar sangue divino.
Repara bem no Homem que está à tua frente. A respiração resgata o labirinto do mundo interior, denuncia-o em todos os seus pormenores. Repara bem como estamos perdidos.
 
 

Emancipação da Marioneta


Roberto Gamito

05.07.22

Se não houver laivo de generosidade nos teus actos, principiarás a emular a coreografia de um pequeno tirano. O narcisismo é um viveiro de déspotas em princípio liliputianos, o smartphone um espelho. O espelho, afinado minuto a minuto pelo algoritmo, está sempre lá. Espelho meu, espelho meu, há alguém mais interessante do que eu? Ao contrário do célebre espelho, este não cairá no erro de dizer a verdade.
Estamos todos tão apaixonados pela ideia de que fomos entronizados pelos likes e comentários que não nos apercebemos que, dia após dia, cultivamos uma sociedade de regicidas. A empatia dos novos tempos é a ficção suprema.
A internet é uma corrente ingovernável de versões de uma única biografia oca, na qual todos os episódios não senão simulações, uma tempestade ora subtil, ora escancarada na primeira pessoa. As confissões parecem saídas da cabeça de um opiómano. O padre ou o terapeuta só tem o direito de aquiescer.
Deixas bem-intencionadas resvalam, naturalmente, para o inescapável empoderamento do eu.
Tudo é acerca de ti, um conflito bélico no oriente, uma sonda espacial lançada para o cu de Judas, a morte de alguém mais ou menos célebre, o lançamento de uma engenhoca inédita que na próxima semana ficará obsoleta, uma ideia papagueada sem vigor por este ou aquela marioneta. Sem querer, maquilhas cadáveres e ideias coxas para aumentar o engajamento.
Enterras a morte em maquilhagem até que a morte não se assemelhe a ninguém.
És um incendiário oportunista. Esqueces-te do essencial: o fogo não tem senhor. As faúlhas dessas conversas frutíferas para o teu ego saltam sem que te dês conta para temas inofensivos. O Eu semeia faúlhas em todos os pontos de vista. O Narciso é o agricultor do Apocalipse cheio de boas intenções. Não espanta, o desejo do Eu é a aniquilação. Será isto aquilo que Freud chamou de suicídio inconsciente?
"Lembra-te, pois, de onde caíste e arrepende-te", eis a voz tonitruante vinda do Livro do Apocalipse. Numa sociedade excruciantemente positiva, a queda foi abolida ou mascarada.
Mergulhando no seu reflexo com a botija de oxigénio da gratificação instantânea, o Narciso escreve às escuras propostas para mudar o mundo, recauchutando-as dia sim, dia não consoante o vento mais em voga para que tudo arda sem entraves.
 

Internet, a caudalosa biografia do Eu


Roberto Gamito

04.07.22

Sou muitos. Ignoro se é por escrever uns versos nuns manjericos invejosos da proeza da sarça ardente, se é pela obesidade. Sou muitos elevado a muitos. A hipérbole é uma coisa maravilhosa, lá estou eu a exagerar novamente. Tu não estás no teu juízo para me chamares humorista, ó parceiro de balbúrdias nocturnas. Estavas a falar com quem, questiona o demónio? Entrementes, dançamos em cima das musas, somos rãs furibundas improvisando nenúfares em cadáveres.
Isto não é talento nem génio, é um bárbaro sem seita à cata na folha do sangue mais ebuliente. Não paras quieto, diz a mulher ao homem, os quais estão numa relação aberta, parece que a tua picha anda em tournée. Saíste-me cá um artista disse a mulher ou o Alberto Pimenta em A Arte de Ser Português.
Aproveitemos a embalagem, o chamado movimento, para mencionar um rol de episódios que, pela sua baixa estatura no tocante à tragédia, não seduz as gordas dos jornais.
O conta-gotas mudou de nome para alguém-que-conte-as-gotas. Expectável, vivenciamos a Dinastia do Literal.
Diante do bacalhau encalhado nas margens da sedução, isto vi eu num guardanapo desprezado e resolvi repescar para a nossa prosa, o pénis entesa-se, prestando uma sincera homenagem à expressão "teso como um bacalhau".
Eis uma nota de rodapé que foi censurada pelo censor ou editor (o epíteto depende da escola): Mamas santas, gabadas até ao delírio pelos incréus, até em dias de pôr tudo em causa.
Círculos imaginários ou mesmo reais onde dispomos estúpidos, sujeitos maleáveis, contorcionistas da retórica mais em voga e inteligentes nas suas órbitas, vozeia o porta-vez da Guilda dos Vinte e Seis. 3 mil milhões amocham em uníssono com a palavra justiça entalada na garganta.
O drama encrencou quando Deus desceu à terra num dia de folia na aldeia e disse: "Eu, se vim ao mundo, não foi para fazer amigos, foi para encher o bandulho. O céu é tão sem sal que, se não fosse imortal, já me teria suicidado. Marimbei-me para a omnipresença, como isto está, já não estou bem em lado nenhum."
Ó burros insuperáveis, ó pais e filhos do pó, ó homens entretidos a dispor os pequeninos e os gigantes em hierarquias delirantes, vamos lá ter calminha. X., retratado à época como caduco e, postumamente, elevado a pai de mil autores, sofreu horrores às vossas mãos. O vosso cérebro ausentou-se? Ter chegado ao meu destino atempadamente, continua Deus, logo no primeiro segundo, faz-me sentir perdido. E o burburinho ininterrupto das vossas preces não ajuda. Há quanto tempo o silêncio não faz parte do vosso léxico?
Voltemos costas ao espectáculo e à guilhotina, voltemos costas ao Eu, voltemos costas à morte. Digo-vos uma coisa, os contadores de histórias estavam certos este tempo todo. O poder priva quem o detém da capacidade de ver. A criação cegou-me.
E se o sangue dos sacrifícios em nome dos deuses arcaicos não fosse para matar a sede, mas tão-somente para entretenimento das Parcas?
Seja como for, a inflação enlouquece poetas e artistas sem voz. Desmanteladas as paisagens luxuriantes, há vates à cata de sobras de beleza num frigorífico. A informação soterra milhões de miolos todos os dias. Se dói é porque é para ti. A tortura foi concebida especialmente para ti. A paz não interessa a não ser em reclames. "Quem come agitadamente come mais depressa." O tempo entre garfadas mede a saúde da democracia de um país.
 

Tempo entre Garfadas


Roberto Gamito

04.07.22

Desloquei-me da sala até ao frigorífico. Estava bom tempo; lá fora chovia. Levei apenas uma muda de roupa, a que tinha no corpo. Umas calças de pijama com uns flocos de neve, oferecido pela minha avó, e um casaco velho da nike vermelho a dar as últimas, nada de muito vistoso, se excluirmos o plano do ridículo. Viajei como um indigente. Queria evitar os olhares curiosos dos autóctones, leia-se família: só o que me faltava era ser assaltado com perguntas a caminho do frigorífico. A viagem foi rápida mas sentida, não deu para tirar fotografias, nem para actualizar redes sociais, nem para ouvir a nossa música preferida que escutamos somente quando vamos de viagem. Tentei viajar o mais incognitamente possível. Detive-me numa estação de serviço apenas — a minha casa de banho. Fiz aquilo que as pessoas normais fazem nas casas de banho. Aliviado, rumei em direcção ao frigorífico. Era tal qual a imagem que eu guardara na memória. Talvez um pouco menos brilhante, com uma mancha de ferrugem aqui e ali, que os fotógrafos de merdas a cair aos pedaços achariam engraçado fotografar a preto e branco. No centro da cozinha, uma mesa encimada por uma fruteira, a escassos metros o frigorífico. Fitei a fruteira, só fruta. Afaguei um pêssego. Não, não era fruta que me apetecia. Respirei fundo e abri o frigorífico. É sempre uma surpresa. Em verdade, regresso sempre ao frigorífico, é a minha Paris. Já fui feliz, já fui triste. Pilhei-o segundo os ditames da minha fome. Dois rissóis, um de camarão e outro de leitão, este último com uma ferida por cicatrizar, com sangue de rissol a escorrer-lhe da dita, um iogurte líquido com dois sabores, caramba, não há a porra de um iogurte líquido com apenas um sabor, uma linguiça, um naco de presunto, um trecho de queijo... Um bocado de repolho — não, isso ficou. Eu sei que pode parecer exagerado, mas é melhor prevenir, evitamos viagens desnecessárias. Era tempo de voltar. Fui com o saque até à sala. O meu irmão olhou-me fixamente e disse: “Trouxeste alguma coisa para mim?” Ao que eu respondi "Não trouxe lembranças para ninguém.” E enchi o bandulho.

 

Fui ao frigorífico


Roberto Gamito

02.07.22

A laureada morte prescreve o ritual, do qual quase tudo se ignora, segundo o qual o druida imprevisto, cuspindo na mercadoria, fará a adoração do fetiche da extinção, saltando de animal em animal, retrocedendo até ao organismo primevo, ou à faísca que pegou fogo à pólvora até então húmida, coisa que maravilha o Diabo, narcotiza-o, deixando-o, não à beira da loucura, mas no seu coração. O amor, se usado em plano inclinado, é um camarote com vista privilegiada sobre o abismo. As coordenadas nas quais as mãos se libertam da servidão de serem produtivas e se agarram à vida ou porventura à morte. Um espaço envidraçado, género estufa, onde os corações crescem desabaladamente abraçados à sua música de eleição. Sociedade da transparência, afiançam eles. O sangue, nos seus começos, revelava-se uma oferenda do recém-decapitado ao deus sequioso. São lugares verdadeiramente infernais, as ruas. A entronização da rosa e os venenos caleidoscópicos que a envolvem, embora por muito tempo tenha permanecido um segredo, fora o motivo principal para o eremita baptizar cada passo. Enquanto quieto, os olhares postulavam-no sábio, enquanto o próprio acreditava ver um beco, daí ter interrompido a marcha. Os ubíquos problemas de interpretação. Etiquetar com um nome confere-nos segurança. Um dos mais antigos e duradouros estratagemas do homem. Aproveitando a distância galopante entre o cinismo e romantismo da coisa, a cidade cresce. Cada interstício é local de negócio ou de futura miséria. Os locais de passagem, observou-o o capitalismo, constituíam um peso morto. Necessitavam de ser abolidos.

Vendo-se a chegar ao fim do rosário das tácticas, o sedutor começa por sublinhar os elementos que havia já aludido, dando uma ênfase bizarra, lenta e estudada a cada centímetro do corpo da presa, como se esperasse ressuscitar a magia arcaica das palavras. Não houve época de ouro. Se oxidou, se hoje vemos os tempos áureos de outra forma, não é ouro. Quando muito, idades de pechisbeque que se revezam e que, envergonhadas, hábito eterno, se apropriam do estatuto do ouro. Isto não acontece somente por razões económicas. O Homem adora ser enganado; vai até ao fim do mundo se for preciso de molde a escutar uma nova mentira. O betão oferece ao homem novas possibilidades de esborrachar a cabeça. Uma das grandes conquistas da humanidade. Imaginem o que era, no princípio dos princípios, o homem chegar a casa, após uma caçada que não deu em nada, e querer dá vazão à sua fúria tendo ao seu dispor uma parede de palha para disparar murros, pontapés e cabeçadas. Legamos, querendo ou não querendo, rastos. Seremos procurados. Não há milagres, apenas crimes pelos quais somos procurados. O que acontece é que a morte, o amor, Deus e toda a pandilha de palavras com as quais se costuma abalroar a fluência de uma frase, qual ponto final que caísse do céu impondo um silêncio inesperado, fareja-nos e acabará por nos encontrar. Preparemo-nos sem esperanças no desfecho favorável. É uma corrida de perdigueiros. Somos uma peça de caça miúda. O que difere de homem para homem é a ordem dos perdigueiros que nos abocanham. Lembrem-se de Actéon, se precisarem da muleta do mito. Evitem inchar o peito, não há caça grossa entre nós. A filosofia, a religião, a ciência e a arte são artifícios para nos iludirmos do facto de sermos caça miúda.
A estupidez, que julgámos morta, pois fomos alvo da seta do Cupido, ressuscita todas as manhãs pelo próprio pé, sem auxílio de deuses, estudada que está a morte.

Se estacamos ao sermos seduzidos por uma ideia, logo somos emboscados por uma matilha que ajusta o tom, inicia alto e vai minguando, como se o afinasse, qual grupo de conspiradores amadores. Outros, que talvez ainda caibam neste texto, cedendo ao perfume acre da libertinagem, de goelas e braguilhas abertas para o que der e vier, interpelados por freiras postiças, as quais recrutadas na espuma dos dias. Pessoas há, e nem são das mais raras, que não têm a mínima hesitação em caracterizar um Homem dos pés à cabeça, do rés-do-chão à mansarda, com um olhar, vício de consumista, de quem está habituado a ter a vista desimpedida no armazém, capaz de abarcar tudo num trago de pupila. A nós, estrangeiros, que nos desentendemos em todas as línguas, devemos regatear com o coração o valor de todos os cheiros. Exumam para imortalizar quem nunca esteve vivo. Não vou atrás de tudo, o mundo é uma bola, mas eu nunca fui um cão. Sou tão-somente um vagabundo a sorrir na rua dos apetites, sem que me consigam raptar os olhos.

 

As ruas e o estrangeiro

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