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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

31.12.22

Como toda a gente, também fiz a minha viagem, idolatrei miragens e falsos deuses, empenhei-me em algumas metamorfoses e desdenhei outras. Andei por aí à procura do meu nome em cumes e debaixo de saias, vagabundeei sem norte nos socalcos dessas carnes cujo nome esqueci —calma com a fusca, o poeta é um fingidor.

Deixei o amor fugir demasiadas vezes, dando a ideia que não quero nada com ele — o que não podia estar mais longe da verdade. Todos os silêncios são altares em seu nome. O cínico não passa de um romântico com uma biografia arruinada.

Olhando para trás, uma vez que é altura de balanços, parte desta odisseia escanzelada foi andar em círculos. Se não fico bem na fotografia a experiência não fica melhor.

A maturidade é isso — darmo-nos conta que, afinal, não andámos grande coisa. Seja no capítulo do conhecimento, logo eu que não recuo diante de nenhum livro — e para quê? Grande parte da vida adulta passei-a a ricochetear entre fracassos, mágoas, traições, desilusões e mal-entendidos. Desses tempos sobrou o autorretrato: um pardal às cabeçadas numa casa de espelhos. De migalha a dragão graças ao ego. Fui apadrinhado por várias quedas, a minha cabeça estava sempre noutro lado. Sempre equiparei o sofrimento a uma vida nova em botão. Não há meio de desabrochar na merda deste... Cansei-me de desertos como Borges se cansou de labirintos e tigres. Só quero saborear os frutos da minha solidão. Libertamo-nos dos grilhões de um paraíso artificial e ingressamos noutro. O Homem é o mesmo paspalho de sempre — não tenham ilusões de melhorias.

Passei os dias agarrado à folha, ora a escrever, ora a ler, a ofuscar-me com vultos cheios de lâminas, a embriagar-me com o canto e o silêncio das sereias. Foram anos desvairados, durante os quais acordava com os corvos de Odin a segredar-me aos ouvidos. Memória e Pensamento.

Para que eu fique engaiolado para sempre nestas folhas, aprisionado em linhas finais jamais mansas, urge descortinar o limite da mão. Não tenho tempo para povoar as entrelinhas com justificações, outros que cumpram esses Carnavais. Não tenho tempo nem estômago para as vossas falinhas mansas. Preciso de digerir o meu inferno, e é só. Bom ano.

 

mais um ano


Roberto Gamito

04.12.22

Quero cultivar-me. E então, quem te impede, questiona a mesma personagem com outra voz. Nada restou, todavia, da sua poesia.
O bando de estorninhos lesa-nos o intelecto com o seu circo de formas. Reparem como é belo o medo e o falcão. K. naturalmente faz parte do cânone eleito. O olhar caído na folha tem por fito iluminar um pouco mais o corpo feito lacunas de Deus, o qual sobreviveu graças às citações enviesadas das aves negras. Em não faltando coragem, será o estudo introdutório dedicado às fontes das cicatrizes e, em ganhando balanço, havemos de desmentir Ovídio. Ponham lá um sorriso nessa cara desfeita, arranjem lá espaço para mais uma leva de feridas.
Fartinho dessa prosa atrelada ao lugar e ao tempo e, aproveitando que pusemos a cabeça no cepo, da altura a reboque da fama. Desta feita, farei aquilo que acabei de condenar.
Aqui estou, vindo do bafo do Deus das Moscas. Cacemos então grilos com mimos de caça, façamos do empecilho ratoeira.
Hermes, do outro lado da porta, deus dos gonzos. Acaso deliras?
Ali onde as máscaras foram penduradas jaz um sem-número de artes. Já aqui andas? Não escapaste há pouco do cadafalso? Não me envergonho de ser esta triste figura, sem Rocinante mas com pança tenho vencido os meus ágeis moinhos.
Um dia essas palavras por-me-ão a correr. A minutos do fim todos os versos soarão a profecia. Entretanto não confundas putas com Hécate. Estou arruinado: fui visto a escrever uma frase genial.
Abreviadamente, podes dizer, quanto ao estilo da canção que te chega aos ouvidos, que é uma perífrase para 'amo-te'. Hei-de fermentar as mais magras migalhas, até lá não expulsarei as mandíbulas da escrita.
Em nome de costumes mais antigos, comunicar-vos-ei que 'escapadela' era o nome dado a uma dança cómica de natureza obscena. Daqui até ao sexo vai um mal-entendido, diria um pau friorento.
Há mais de mil anos que o Helleborus deixou de fazer efeito.
Onde antes havia um mero buraco há hoje um báratro, um poço onde eram atirados os criminosos em Atenas. Para evitar a hiperinterpretação do termo, digamos que nunca fui a Atenas e troquei os criminosos por fantasmas. Estás com azia, não é?
As mulheres interditam o reino do baixo ventre
isto ouvi eu quando fui à Antiga Grécia
altares ontem quentes hoje abandonados.
A fruta que amadureceu antes de o Homem lhe dar nome, pesada pela mão desonesta do poeta, lida por quem confunde gotas com oceanos.
Ideias prensadas num instante. Examinarei isso com os meus melhores olhos, prometo, mentimos nós descaradamente.
Foda, competente vocábulo; serve-te do meu corpo e da minha língua desfivelada. Ó tolo, sussurra a deusa, anda cá, livra-te dessa cegueira. Seja amor ou mais uma maquinação de Empusa, a partir daí tudo o que vier é ganho.
Buscando a mulher, aqui chegamos. A solidão já nos permite outros folguedos. Nota-se uma falta de vocabulário após o império do calor. Empusa, rainha da metamorfose, alimenta-se de carne de homem.
Em todo o caso, não teríamos escapado inteiros até aqui. Não tiro uma vírgula ao meu desnorte.
 

roberto gamito

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