À sombra dessas décadas desperdiçadas, passo mal à fresca, sou abalroado pelas escolas fechadas por burocratas do passou-bem, escolas do pensamento entregues ao leilão do turismo, pela falta de professores e de paciência, pelas urgências capitaneadas pela burocracia musculada, que satiriza, qual Dioniso, deus da tragédia e da comédia e da insânia, a própria palavra urgência; mais: impressiono-me com a agilidade de pantera com que o refrão dos aflitos salta de greve em greve num tom de raiva enjaulada, não vá sair do tom e o mundo vá por aí abaixo rumo aos direitos humanos e conduza ao horror os tenores de bancada, sem que uma pincelada de cor alegre modifique este quadro em princípio económico mas na verdade de carne e osso, tudo isto ao rés da sucata do progresso, no topo do qual o elevador social brilha como uma memória de infância.
Os futuros pobres, ou, mais eufemisticamente, os desfavorecidos, (eufemismo sempre!, evitemos acordar os políticos e o povo do seu delírio colectivo) graças aos múltiplos cenários hipotéticos onde os vencedores não se revezam, terão mais opções para o acesso à sua tão desejada vida precária. Felizmente, só nos retiraram o futuro, o passado e o presente permanecem iguais.
A expressão ‘não comas doces que te faz mal aos dentes’ foi substituída pela ‘não compres proteína que te faz mal à carteira’. Magnífico: a economia distribui dicas à la nutricionista de graça. Não há almoços grátis, no entanto, temos pratos vazios para todos.
Os transportes hospitalares para fora do conselho ‘não te preocupes, vai ficar tudo bem’ demoram hoje 3 a 4 horas. Os antigos 45 minutos não davam para nada; depressa e bem não há quem. Esse tempo permite ao paciente uma decisão sem equívocos, um auto-exame minucioso após o qual sairá a conclusão: não quero continuar vivo. Poupa-se muita malta hospitalar com esta demora, comenta o coveiro especialista em vidas desperdiçadas; durante muito tempo andámos a desperdiçar recursos com gente que, bem vistas as coisas, volvidas umas horas com dor, só já pensa no fim. É desumano impingir a vida a quem deseja morrer. Como afiançam os antigos, o sofrimento ensina-nos muito, nomeadamente, que uma vida assim não é vida não é nada.
As vantagens não ficam por aqui: ao demorarem mais a chegar do que um amor entre dois jovens de 20 anos, as ambulâncias podem servir, haja olho para o negócio, de carros funerários. Eis a minha modesta proposta para desentupir os hospitais: conduzir os pacientes directamente para o cemitério. E que belo funeral seria: pessoas de bata e luzes conferindo ao cenário um ar festivo de discoteca; espectáculo tremendo, de certeza que ia atrair vampiros de todas as épocas. No meu tempo não havia nada disto, comentaria o Drácula. Proponho a alteração de serviço de urgência para serviço de extrema-unção, uma vez que os doentes têm de esperar 45 minutos dentro da ambulância, o que constitui uma mais-valia, a espera fortalece o carácter. Ocupemos os lugares vazios deixados pelos médicos, os quais subiram aos degraus da audácia com o fito de bramir não às horas extra, por padres, mais baratuchos, movidos pelo combustível do Senhor, quais guias turísticos, hábeis em transformar a viagem até ao inferno uma experiência inesquecível.
Este país só está bom para imortais.
Num país que saiu torto do 25 do Abril, dava a ideia que ia sair grande e saiu marreco, em que os grevistas e os turistas entopem à vez as artérias das grandes cidades portuguesas, atropelando as musas e os poetas, para gáudio dos jornalistas que alardeiam tão desarmónico enfarte, pouco ou nada há de esperançoso por estes dias.
O português politraumatizado pela falta de médicos, pela situação económica e pela perspectiva de que doravante é a pique, regressa ao armário do mito e enfarpela-se de Ícaro. Eu quero estar bonito, pensa o português, quando a queda vier.
Greve de médicos, greve de professores, greve de helicópteros, greve de cérebros, greve de ambulâncias, greve de bombeiros (1), o país em greve, o país tornado uma gigante sala de espera onde cada português se entretém a folhear o seu caderninho de privilégios, pejado de rabiscos em letra de médico. De olhos bem abertos, comenta: há qualquer coisa aqui que em tempos foi minha, mas porra, não percebo nada disto!
Só a burocracia não emperra na merda deste país entregue aos necrófragos, gargalha uma hiena de laçarote.
A culpa, além de ser dos médicos que se negam a ir além dos limites do trabalho suplementar e receber de braços abertos medidas que devoram as sobras da dignidade humana, (e dizê-lo sem rebuço como está plasmado nos jornais é já elevá-lo a piada, como que dizer que a culpa de a economia abrandar é em virtude da recusa de o Homem aceitar a escravidão), é a carência de intérpretes hábeis em passar as reivindicações dos médicos para uma língua que o governo perceba, e se possível apinhado de advérbios de modo, e quem diz médicos diz professores e por aí vai. Em suma, o governo cospe: temos uma proposta boa para esta malta de bata, mas só pode ser entregue em tranches infinitesimais durante os próximos trezentos anos. É a nossa melhor oferta: é pegar ou largar.
O político actual, qual empresário milionário que se pavoneia de Ferrari de vidro aberto e em câmara lenta, de forma a que se perceba que está a falar de como a crise, seja ela verdadeira ou ficcionada, é motivo para cortar nos salários e no pessoal, que as riquezas pessoais não se alimentam sozinhas, quando é a altura de falar de aumento salarial agarra-se às vírgulas e às décimas qual bebé assustado à mama da mãe. Isto há-de ter alguma beleza em alguns círculos artísticos.
Entendam isto de uma vez por todas: a greve não é uma performance, é a luta posta em grito no início manso, é um prefácio antes da violência. O mais triste disto tudo é que não haverá hospitais públicos para receber as vítimas desta guerra pelos direitos humanos.
- Pela demora dos bombeiros, há gatos portugueses que, inspirados em vídeos lá de fora, subiram às árvores com vista a serem salvos logo de seguida e ainda lá estão a ganhar bigodes. Segundo o biógrafo desses gatos, há tarecos que perderam as vidas quase todas à espera e quando deram por ela estava a ver
D. Sebastião fardado de bombeiro a sair do nevoeiro. Outros, mais impacientes, aproveitaram a boleia das andorinhas e foram conhecer Marrocos. Para trás ficou um bilhete no topo da árvore: “volto na Primavera, espero que no próximo ano alguém me tire daqui. Os meus mais sinceros ronrons”.