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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

26.11.23

Na estante 
tornada móvel pelo sismo 
aonde vamos acomodar, lado a lado, 
as memórias carunchosas 
desta vida leiloada ao Diabo

Verso devoluto, nem canto, nem tão-pouco feras, 
somente sereias gagas e em princípio afónicas.
Prende-se o Ulisses ao mastro para nada, 
é sempre a mesma cantiga
de tão cansada não nos ilumina nem nos obscurece. 
Para estes lábios, que por estes dias alcançaram o deserto
segundo a rota do analfabetismo, efeito colateral da ausência 
que bom que houvesse tempo para soletrar 
estas e outras palavras rombas 

talvez, inspirados na morte, as limássemos
e déssemos à luz uma ninhada de gumes. 

Sobras de ave, um apelido sem a primeira sílaba, um mito a ganhar ares — nem sequer é piada — de Ícaro. Em todo o lado semeio a minha querida queda. 

Essa vasta cabeça desocupada 
viveiro de demónios por vir 
a simulação de recomeço 
irrefreável número circense 
com que entretenho os demónios.

Por que buracos e redes se escapam os vossos peixes? Este esquelético e camaleónico edifício de rancor a que muitos chamam humano é incapaz de hospedar sonhos e felicidade sem resmungar. 

Escrevo outro poema 
pela necessidade 
ou pelo vício de me libertar 
comparo-te à saída do inferno
aos nomes que a memória vai mesclando 
numa única quimera impronunciável. 

Bicho de um sem-fim de cabeças 
és um livro lançado ao fogo 
com o fito de o educar.

Esta luta entre a vontade de dormir e o café, que, com meros mililitros se opõe à minha vontade, o trabalho que se espraia durante horas e de seguida dias, qual nódoa ingovernável com tiques napoleónicos
tarefas que me devoram horas e a vida na mesma dentada — 
bizarro ritual onde me descubro quilométrico e celeiro de feras interiores.

O uivo que me animaliza e liberta do nome no mesmo fôlego. 
Uma ponte que vou soldando ao teu perfume. Um dia espero completá-la e regressar a esse dia em que nos conhecemos. 
A sentença da qual os animais fogem quando sonham, ao ar livre, com o matadouro. Bebo o meu reflexo do bebedouro como quem extingue a sede 
para que a morte se esqueça de mim. 

A mão destinada 
ao inventário de cacos 
a carne em condições 
de ir para o lixo. 

Tenho o cuidado de passar longe das tuas palavras, não vá ser contaminado com os teus atalhos. Tem paciência, neste reino mando eu. Repara bem: atrás de mim há uma pilha de regicidas. 

 

Pilha de regicidas


Roberto Gamito

17.11.23

Não entendo o festival de parangonas à volta dos escândalos políticos: corromper e ser corrompido são actividades que merecem remuneração — é trabalho. 

Ao trocar o modesto Peugeot 106 — não confundir com o opulento Peugeot 106, o qual passa pelas lombas com o vagar de uma princesa — pelos altos voos da corrupção, tudo isso patrocinado pela TAP, e só nos orgulha, dá-nos a conhecer a propensão para o deslize da malta que decidiu enterrar o dinheiro no tuning. Em faltando os recursos vindos de mãos sujas no entanto generosas, contentam-se em fabricar um avião caseiro segundo os altos padrões estéticos da Joana Vasconcelos após uma noite mal dormida. 

Eu, que me sinto mais ignorado que um parecer de um biólogo em altura de escavacar zonas protegidas, sabia, à semelhança do MEC, que o tomate ia acabar. Entrementes, raciona-se ketchup mais à esquerda numa batalha de guiões de fraca qualidade. Ao esburacar a estrada para o futuro, o nosso ex-primeiro ministro revelou o seu lado budista, obrigando os portugueses a concentrarem-se no presente.

Portugal, que nunca foi grande, mergulhou, graças à incerteza política, no mundo quântico. Cada pigarrear é uma bola de pêlo figurada — uma homenagem ao Gato de Schrödinger. Em termos mais provincianos, o político podia socorrer-se de uma verdade absoluta. As coisas pioram com o tempo. A culpa é dele, do Tempo, que é um espatifador omnipresente. 

António Costa fala em abstracto, eu respondo triângulo, círculo, Rothko, Playstation. O que leva ao delírio virgens, gamers e espelhos. 

Pessoas saltam da piada para a ética e de seguida para o plano legal. Aplaudo: eis um belo exemplo de parkour intelectual. 

Empatia, vocábulo que é pau para toda a obra, esteja ela parada ou a correr pelos corredores da burocracia, tornou-se ubíqua. Segundo o entendimento de pessoas precipitadamente entendidas no assunto, pedir desculpa humaniza o homem e o político. Pela lógica, Nuno Markl seria o mais humano de nós todos. Raciocínio ousado. Invejo os politólogos: a sua ingenuidade sobreviveu aos estudos e à vida adulta. Se no caso do Wally o desafio é encontrá-lo, na empatia o desafio é precisamente o contrário. Ofereço um jantar se não a encontrarem no discurso político. 

Noutras coordenadas, que é como quem diz, nos arredores do nosso fado, o grupelho chegano foi brindado com pontapés, empurrões, água, sumos. Em Portugal, chama-se a isto protesto aceso, em África ajuda humanitária. Se houvesse serpentinas, estaríamos no Carnaval de Loulé. 

 

operação influencer


Roberto Gamito

08.11.23

António Costa, ex-primeiro-ministro deste rectângulo desenhado a custo, ao ser derrubado por um comunicado com meia dúzia de linhas, se por um lado deixa a suspeita de simulação de falta, ao prestar homenagem sentida a Neymar, por outro, comprova a fragilidade que os médicos lhe apontavam há muito. O governo apresentava carências vitamínicas no seu discurso, a saber: carência de vitamina A, presente no olhar cada vez mais mortiço de Costa, e de vitamina D, visível no esqueleto que ia perdendo, aos poucos, a sua verticalidade face às crises que aparecem no país como cogumelos. E tudo isto é desculpável: reparem bem nos preços dos alimentos. 

Hoje temos de pensar duas vezes antes de atirar um tomate ao comediante: este tomate vai-me fazer falta na salada. De volta para o bolso, meu útil tomatinho.
Não faltam motivos para o arremesso do tomate. Assim que soou a demissão de Costa, os humoristas foram ao rubro, e, magicamente, apareceu mais um pão na mesa — directamente do inferno que nos espera. Os médicos, professores, jornalistas que se aguentem — melhorias, para já, só para os comediantes.

Ao sair deste reality show que alguns comentadores da queda chamam democracia, António Costa terá dito: “Esta é uma etapa da vida que se encerra e que eu encerro de cabeça erguida”. Daqui para a frente ganharei a vida a fazer presenças em discotecas. Um beijinho a todos os portugueses que votaram em mim. Infelizmente, não foi suficiente para me manter na casa.

Obviamente, a minha função de bobo não é compatível com qualquer suspeição que eu me contento com os factos. Seguem-se, por conseguinte, mais piadas.

Montenegro bebeu de um trago o chá de perpétua roxa e exclamou, num tom eleitoral, aquilo que eu costumo dizer quando uma mulher se despe à minha frente: Estou à altura da exigência deste momento. Vamos ver, diz a mulher…e o país. PCP rejeita as eleições, porém está pronto; Chega, que estará em festa até às próximas, juntamente com a Iniciativa Liberal e o Bloco de Esquerda tencionam plantar urnas em escolas, querem que o país vá a votos e, na mesma tarde, enterrar o ensino português, ao passo que o Livre pisca o olho à oportunidade, um tique que já lhe valeu uma cadeira. O PAN não se pronuncia, está a reflectir sobre a relação entre contagem de carneiros e economia adormecida. 

Num país tornado pátria dos epilépticos, onde já só sabemos estar em convulsão ou a espumar raivosamente, é maravilhoso que as próximas eleições se vejam elevadas a performance onde hienas e abutres populistas dançarão à volta da urna motivada por António Costa. Num país onde medram cleptomaníacos engravatados, é apressado afirmar que Costa deixou herança política. Não obstante a incerteza política, que é como a genérica, mas com mais gráficos, fomos atirados para o cenário de sempre, como se regressámos a mais uma temporada da nossa sitcom favorita, a qual dura desde o tempo da Operação Marquês…de Sade.

Distribuam-se pulseiras electrónicas por todos os portugueses. Presos a mais uma crise, já havia poucas, comenta o Zé Povinho sem força para levantar o braço.
Faça-se o devido elogio. A crise nunca nos abandonou, mesmo em momentos de crise, e é aí que se vêem os amigos.

O Mercado, qual TJI, já fez uma react à situação. Cá vai um trecho no qual o Mercado dialoga com o português típico.

Mercado: A notícia da demissão de António Costa obrigou-me a cair 3%.
Português: Como é cair 3%? Só sei cair 100%.
Mercado: É ficar um nadinha inclinado para a direita. 

Cientificamente falando, comparam-se quedas. A de Sócrates, que se arrasta na justiça por, alegadamente, se recusar a beber cicuta e a de António Costa. Todos os corpos caem à mesma aceleração; está bem, Galileu, mas não custa nada repetir a experiência atirando, desta vez, políticos do alto da Torre de Pisa. Feita a experiência, podemos chegar à inesperada conclusão que quanto mais à esquerda estiver o político, mais depressa cai.

Nada entra em vigor, nem futuro nem nada que faça sorrir o português médio, o qual tem um sentido de humor raro, porra, não se ri com crise nenhuma, seja ela política, económica ou da habitação, tudo isto nos entristece, tudo isto é fado, à excepção do IUC, que se mantém. Óptimas notícias: ainda não é desta que transformo o meu chaço num hostel para ratos. 

Nada pesa na consciência do nosso ex-primeiro, faz sentido, o hidrogénio e o lítio são dois dos três elementos mais leves da tabela periódica, dirá com voz fininha um químico versado em política nacional após inspirar Hélio.

Para já, mantém-se tudo igual, como das outras vezes. O fado mantém inalterado; só os fadistas se revezam.

 

Demissão de António Costa


Roberto Gamito

07.11.23

À sombra dessas décadas desperdiçadas, passo mal à fresca, sou abalroado pelas escolas fechadas por burocratas do passou-bem, escolas do pensamento entregues ao leilão do turismo, pela falta de professores e de paciência, pelas urgências capitaneadas pela burocracia musculada, que satiriza, qual Dioniso, deus da tragédia e da comédia e da insânia, a própria palavra urgência; mais: impressiono-me com a agilidade de pantera com que o refrão dos aflitos salta de greve em greve num tom de raiva enjaulada, não vá sair do tom e o mundo vá por aí abaixo rumo aos direitos humanos e conduza ao horror os tenores de bancada, sem que uma pincelada de cor alegre modifique este quadro em princípio económico mas na verdade de carne e osso, tudo isto ao rés da sucata do progresso, no topo do qual o elevador social brilha como uma memória de infância.
Os futuros pobres, ou, mais eufemisticamente, os desfavorecidos, (eufemismo sempre!, evitemos acordar os políticos e o povo do seu delírio colectivo) graças aos múltiplos cenários hipotéticos onde os vencedores não se revezam, terão mais opções para o acesso à sua tão desejada vida precária. Felizmente, só nos retiraram o futuro, o passado e o presente permanecem iguais. 

A expressão ‘não comas doces que te faz mal aos dentes’ foi substituída pela ‘não compres proteína que te faz mal à carteira’. Magnífico: a economia distribui dicas à la nutricionista de graça. Não há almoços grátis, no entanto, temos pratos vazios para todos. 

Os transportes hospitalares para fora do conselho ‘não te preocupes, vai ficar tudo bem’ demoram hoje 3 a 4 horas. Os antigos 45 minutos não davam para nada; depressa e bem não há quem. Esse tempo permite ao paciente uma decisão sem equívocos, um auto-exame minucioso após o qual sairá a conclusão: não quero continuar vivo. Poupa-se muita malta hospitalar com esta demora, comenta o coveiro especialista em vidas desperdiçadas; durante muito tempo andámos a desperdiçar recursos com gente que, bem vistas as coisas, volvidas umas horas com dor, só já pensa no fim. É desumano impingir a vida a quem deseja morrer. Como afiançam os antigos, o sofrimento ensina-nos muito, nomeadamente, que uma vida assim não é vida não é nada. 

As vantagens não ficam por aqui: ao demorarem mais a chegar do que um amor entre dois jovens de 20 anos, as ambulâncias podem servir, haja olho para o negócio, de carros funerários. Eis a minha modesta proposta para desentupir os hospitais: conduzir os pacientes directamente para o cemitério. E que belo funeral seria: pessoas de bata e luzes conferindo ao cenário um ar festivo de discoteca; espectáculo tremendo, de certeza que ia atrair vampiros de todas as épocas. No meu tempo não havia nada disto, comentaria o Drácula. Proponho a alteração de serviço de urgência para serviço de extrema-unção, uma vez que os doentes têm de esperar 45 minutos dentro da ambulância, o que constitui uma mais-valia, a espera fortalece o carácter. Ocupemos os lugares vazios deixados pelos médicos, os quais subiram aos degraus da audácia com o fito de bramir não às horas extra, por padres, mais baratuchos, movidos pelo combustível do Senhor, quais guias turísticos, hábeis em transformar a viagem até ao inferno uma experiência inesquecível. 

Este país só está bom para imortais. 

Num país que saiu torto do 25 do Abril, dava a ideia que ia sair grande e saiu marreco, em que os grevistas e os turistas entopem à vez as artérias das grandes cidades portuguesas, atropelando as musas e os poetas, para gáudio dos jornalistas que alardeiam tão desarmónico enfarte, pouco ou nada há de esperançoso por estes dias. 

O português politraumatizado pela falta de médicos, pela situação económica e pela perspectiva de que doravante é a pique, regressa ao armário do mito e enfarpela-se de Ícaro. Eu quero estar bonito, pensa o português, quando a queda vier.

Greve de médicos, greve de professores, greve de helicópteros, greve de cérebros, greve de ambulâncias, greve de bombeiros (1), o país em greve, o país tornado uma gigante sala de espera onde cada português se entretém a folhear o seu caderninho de privilégios, pejado de rabiscos em letra de médico. De olhos bem abertos, comenta: há qualquer coisa aqui que em tempos foi minha, mas porra, não percebo nada disto! 

Só a burocracia não emperra na merda deste país entregue aos necrófragos, gargalha uma hiena de laçarote. 

A culpa, além de ser dos médicos que se negam a ir além dos limites do trabalho suplementar e receber de braços abertos medidas que devoram as sobras da dignidade humana, (e dizê-lo sem rebuço como está plasmado nos jornais é já elevá-lo a piada, como que dizer que a culpa de a economia abrandar é em virtude da recusa de o Homem aceitar a escravidão), é a carência de intérpretes hábeis em passar as reivindicações dos médicos para uma língua que o governo perceba, e se possível apinhado de advérbios de modo, e quem diz médicos diz professores e por aí vai. Em suma, o governo cospe: temos uma proposta boa para esta malta de bata, mas só pode ser entregue em tranches infinitesimais durante os próximos trezentos anos. É a nossa melhor oferta: é pegar ou largar.

O político actual, qual empresário milionário que se pavoneia de Ferrari de vidro aberto e em câmara lenta, de forma a que se perceba que está a falar de como a crise, seja ela verdadeira ou ficcionada, é motivo para cortar nos salários e no pessoal, que as riquezas pessoais não se alimentam sozinhas, quando é a altura de falar de aumento salarial agarra-se às vírgulas e às décimas qual bebé assustado à mama da mãe. Isto há-de ter alguma beleza em alguns círculos artísticos.

Entendam isto de uma vez por todas: a greve não é uma performance, é a luta posta em grito no início manso, é um prefácio antes da violência. O mais triste disto tudo é que não haverá hospitais públicos para receber as vítimas desta guerra pelos direitos humanos. 

 

  1. Pela demora dos bombeiros, há gatos portugueses que, inspirados em vídeos lá de fora, subiram às árvores com vista a serem salvos logo de seguida e ainda lá estão a ganhar bigodes. Segundo o biógrafo desses gatos, há tarecos que perderam as vidas quase todas à espera e quando deram por ela estava a ver
    D. Sebastião fardado de bombeiro a sair do nevoeiro. Outros, mais impacientes, aproveitaram a boleia das andorinhas e foram conhecer Marrocos. Para trás ficou um bilhete no topo da árvore: “volto na Primavera, espero que no próximo ano alguém me tire daqui. Os meus mais sinceros ronrons”.

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Roberto Gamito

06.11.23

Não tenho credibilidade para falar de migração de cérebros, nem de gnus, nem tão-pouco de andorinhas, olhem para mim, durante esta pausa humanitária patrocinada pela barbárie, o último grito da hipocrisia antes de o Homem se finar, reparem bem em mim, pobre português de fato de treino puído pelo sedentarismo, sem vocação para o eufemismo, eu que dou um euro pela bica sem uma pinga de retaliação hábil em dar voz aos meus direitos. É pagar e calar e não falar nos direitos humanos. E ainda ter orgulho de ter sido roubado — não nos devemos agarrar a velhas ideias, actualizemo-nos, o roubo faz a economia andar.

O apetite do governo português por cérebro estrangeiro, iguaria de fazer crescer água na boca no canibal mais apolítico, faz as delícias do velho que treinou os maxilares noutra gastronomia, a da escassez. Qual é o engodo certo se o intuito é ludibriar o cérebro? Em tempos idos, adiantaríamos: pipi. Desgraçadamente, o pipi já não é pau para toda a obra —confidenciou-me um ex-bissexual, o que ofende e desprestigia os antigos cultores do pipi e a actual comunidade LGBTQI+.

Ambicionamos fixar miolo estrangeiro, pensa o ventríloquo do governo, uma vez que o do governo está em período sabático até tempo indeterminado, comunicou-me um médico. O miolo nacional, em havendo, uma vez que surgem ensaios por todo o lado que confirmam a sua extinção, reflecte em português e só isso constitui uma desvantagem irreparável. Não obstante as enxertias de termos lá de fora, os tais cuja função é adicionar um ar de contemporaneidade ao mesmo tempo que espatifam a gramática da frase, tornando-a balofa com muletas linguísticas importadas, crazy! Portugal, um país que não produz nada, nem muletas linguísticas. Só o fado pega de estaca nestas tristes terras estéreis. Se querem escavacar a fluidez do discurso, façam-no, mas com prata da casa. Não dou dez anos para o ‘basicamente’, ‘tipo’, ‘mas ya’ e a rainha actual das muletas, ‘imagina’, serem votadas ao esquecimento, abandonadas no sossegado estaleiro da quinquilharia vocabular. 

No futuro, seremos ingleses que adicionam um mero vocábulo português nas frases como quem preenche as quotas da inclusão.
Não nos percamos na amarga realidade. A apetecível cachola nómada, se quer continuar nómada, recusará sempre a fixação. Em suma, será sempre um animal inquieto, desassossegado, ou, se preferirem, o predilecto dos bichos carpinteiros. Numa economia de movimento, em que nada pode parar, caso contrário daríamos conta que o progresso não é senão a maior ilusão de todas, em que nada começa nem nada está, de facto, terminado, não favorece a criação de cérebro sedentário. 

Há cérebro a entrar e há cérebro a sair de Portugal. Como o cérebro mantém o obsoleto costume de se fazer acompanhar pelo resto do corpo, nada podemos comentar quanto ao acréscimo ou decréscimo de qualidade. 

Todavia não seria descabido criar um mercado de transferências durante o qual se comentaria as saídas e as entradas dos miolos com base no seu potencial. Este cérebro, vindo de Inglaterra, dar-nos-á a cura para o cancro; volvidos uns meses, está num banco de uma pastelaria da moda, a escrever um post motivacional para o seu blog; este, grande promessa do cringe mundial, proporcionar-nos-á toneladas de vídeos constrangedores; passadas três semanas já está a cumprir. Nem todos podem ser o Cristiano Ronaldo do pensamento. 

Não obstante os radicais pensadores, os quais afiançam “o cérebro é uma construção social”, basta reparar no sucesso dos YouTubers, é inegável que os números são impressionantes. Numa época em que o comentário ao corpo alheio é desaconselhado, e é assim que a língua murcha, reservamos o espanto e o comentário velhaco para números inesperadamente avantajados. Em 2022, dez mil e oitocentos nómadas digitais de carne e osso resolveram escolher o Porto como secretária em cima da qual vão dedilhar lucrativamente os seus portáteis — o que há-de enfurecer o português de classe médica, o qual, nem sentado nem de pé consegue enriquecer.

Outras seitas de pensamento menos radical garantem-nos:  “a dinastia do pensamento está prestes a acabar, logo o cérebro terá o fado do apêndice”. No máximo, será um bibelot que o homem transportará de um lado para o outro como homenagem a outros tempos. 

Se isto me tira o sono? Não, o motivo das olheiras é outro. Preocupo-me mais com a fixação de boa mama estrangeira e falta de incentivo a que a mama nacional se mantenha onde está, ou, respeitosamente, na minha vila. E mais: se os jovens, dotados de bons corpos esculpidos a ginásio e a proteínas da Prozis, com alegria para dar e vender no Onlyfans, ao irem em busca de melhores condições de vida no estrangeiro, deliciam autóctones de outros países enquanto o português fica refém de uma paisagem pobre em bom e inspirador decote — é isto que me tira o sono, cavalheiros. Espero que o governo português dê condições às mamas nacionais, e, em havendo folga orçamental, ao cérebro português — que nem são dos piores do mercado. 

 

Migração de cérebros nómadas


Roberto Gamito

05.11.23

Numa estrada desse país chamado vida, olho pelo retrovisor, de molde a passar o tempo e fintar os demónios, imagino algum engarrafamento, isto numa memória cultora de buracos; nomes, episódios onde o calor discursou numa afiada língua afinada, quedas ímpares, justas homenagens a Ícaro ou Satã, fracassos que, na altura, proporcionavam a novidade do abrandamento ou atrito. Os sonhos ainda não se haviam mudado para as terras da assimptota.
Não tivéssemos cortado as unhas, dava a ideia que os podíamos alcançar. Entrementes, o tempo cultivou o infinito entre nós e esses dias.

Na maioria das vezes, confundíamos amor com uma ida à loja de bugigangas. Só os apaixonados logram ficar com o papel de Duchamp. Numa embriaguez novinha em folha e de língua expedita, patetas de uma escola oblíqua cujos fôlegos se auxiliam a fim de legendar humoristicamente cada bagatela, ambos com um fervor dionisíaco. Concedo, eis o prelúdio do fogo. Nessas alturas em que o fumo era uma mensagem de mudança, estávamos no estaleiro do vulcão.

Graças à legenda, perdoem-me o frio engano de estar a ver a cena à distância, graças à paixão, o bibelot é elevado a arte onde sorrisos e olhares conspiram, revirando-o numa ala de museu, acessível tão-são a corpos conduzidos pelo singularíssimo lume em crescendo. Por esses dias, a aventura não necessitava de um grande romancista para ser escrita. Do sorriso à cama sem parar no stop; e sem recorrer a mapas.

Em cenários contíguos, ou noutras vidas, caso os universos paralelos ressuscitem os eus abortados que fomos semeando pelas cenas ebulientes que não deram em nada, sedentos que aconteça alguma coisa, de alguém hábil em pronunciar o nosso nome ontem pouco sonoro, uma médica autodidacta que, de bata e alma aberta, reabilite o coração fechado em copas, que um beijo nos desagrilhoe desta pose que herdámos de Prometeu e conceda ao fígado um horizonte mais esperançoso. Damos, por algum tempo, folga aos abutres, águias, ou corvos, dependendo dos mitos, o amor que já foi tudo, uma vez que, qual boato, é-lhe contado as Metamorfoses de Ovídio num sem-fim de boca-a-boca.

Essa gestão de encontros apontada em cima da braguilha enfunada operava na agenda a magia da multiplicação das horas. Tão fartos de palavras e tão desesperados por acção que já só desejamos ser desfigurados pela velocidade do tesão, que a fome do outro nos cale e não permita, nem por um segundo, diluir a cena, mas sim tornar a carne feita animal numa emboscada há muito orquestrada pelo inconsciente. Entramos inteiros na vida do outro, de tal forma que nos esquecemos de pôr um gravador na memória a documentar a cena. Daqui sairão uma série de quadros abstratos, que ora nos agigantam, ora nos apequenam.

Punha sempre o meu pénis à disposição. Ficava-se com a sensação que vivíamos dentro de um refrão alegre, que os passeios duravam uma dança, que o amor era uma grande canção que nos impelia à dança, mesmo nos piores momentos. Nessa idade, não damos pelo tempo a passar.

As horas ocupadas pela conversa nunca pareciam excessivas. Nessa altura, iria de gatas até ao fim do mundo se me garantisses que estarias à minha espera. Eras responsável pelo meu mundo, eu, pelo teu. Não fosse a imaginação e não me lembraria de nada desses dias, salvo o teu olhar e o meu coração a ganhar voz à medida que me aproximava do sítio que havíamos combinado.

Mudando abruptamente de faixa, elaborando uma manobra capaz de nos pôr a rezar, finalmente, pela vida, pondo-vos frente a frente com o passado, trazendo à tona os ângulos mortos, confidencio-vos que há um ponto a partir do qual cada gesto principia, de supetão, a pesar desmesuradamente — enferrujamos a meio de uma coreografia. Nem sequer nos ocorreu fotografar nada — éramos como dois leopardos das neves. Quiçá pairasse um receio que a fotografia, ao funcionar como intromissão nesse bailado improvisado pela paixão, quebrasse o encantamento. Sem provas, íamo-nos afundando numa lenda só nossa.

Às tantas foi isso que pôs termo a tudo — um disparo. Um disparo fotográfico de um biólogo de cidade quebrou a pose animalesca de dois bichos esfaimados, entretidos até então no cadáver minguante da paixão. Hoje, com pose desajeitada, e pouco digna para figurar nas fotos, sou marioneta atirada para um canto de um palco em ruínas. Uma marioneta a lamentar a sua verticalidade perdida.

Olhando novamente para trás, começo a duvidar de tudo. Sem nada a que me agarrar, sem provas, e conhecendo o lado charlatão da memória, principio a duvidar de tudo o que escrevi nestas linhas. Nada disto aconteceu senão noutro universo.

Presentemente, recorro a esse armazém quando necessito de peças para pôr a andar um poema, uma crónica, que é como quem diz, um Frankenstein feito de letras.

 

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Roberto Gamito

03.11.23

Que bela tarde para arranjar uma nova leva de inimigos.
Bem combinado, despachava já isso, em menos de nada vou-te ao focinho, comunicar-me-á o apóstolo da rixa. Estás disposto a penar por isso, questiono eu sem gaguejar em nenhuma sílaba com uma rosa nos dentes, sem descurar nenhum espinho. O que pode sair daí? Um cadáver ou uma amizade. Arrisque-se, a hesitação demorada é um assento para cus de passagem. Ó amigo, a minha intuição segreda-me que é possuidor de uma cabeça que nunca conheceu uma ideia. Confirma-se o boato que é um imutável burro?

A hipocrisia morde-me as tripas, e diabos me levem se não hei-de erigir do negro da ardósia a relação entre hipocrisia e número de peidos; porra, que a vida adulta nunca me impeça de dizer as verdades. A hipocrisia cai-me mal e começo aos saltinhos — e ninguém se abalance a chamar isto dança contemporânea. Os leitores, que é como quem diz, os que não espatifam os olhos em qualquer linha, preferem-nas de boas colheitas, caíram que nem patinhos alfabetizados, engodados pelas gordas da publicidade cujo ofício é trazer os canhenhos aos ombros, ora pelos holofotes que separam o trigo do joio, e atiram ao lixo o trigo e celebram o joio, ora pela avalanche de números debaixo da qual os anónimos e os aspirantes a qualquer coisa mais em voga são enterrados às pazadas, andam a encher o bucho episodicamente requintado com aquilo que lhes atiram para o prato — espertos, para casa levamos tudo, até pedras. Abdiquemos de torturar os patifes que caíram na armadilha de nos ouvir por mais de trinta segundos, usemos essas sobras bolorentas de humanidade para pedir afinadamente mais um copázio ao taberneiro. Os mundos possíveis? Assassinei-os todos na imaginação, cada qual com um precipício de autor. Não tarda estou mais velho e hão-de principiar-me a falhar as palavras e terminará o carnaval vocabular onde mortos encimam abutres numa cavalgada de raiva e delírio. Eu, que não tenho tempo para mim nem para fodas más — alguém que foda por mim —, que fiz da minha memória uma vala comum dedicada àqueles que podia ter sido, reergo-me desse magma de universos abortados com a pele de Ícaro, entoando com as notas todas na língua um hino luciferino.

Noutro dia, naquelas horas durante as quais o olhar não é suficiente para encetar um poema, é possível observar no espelho o desgaste violento, aflitivo, qual parque de diversões comprado pelo abandono, o presente e o que há-de vir, todos os tempos empilhados na mesma imagem assustadoramente superficial. Não fosse o ego, e o homem não seria tridimensional. Não sendo uma personagem redonda nos piores dias, mantenho-me gordo — e isso há-de ter algum valor, nem que seja para o palato de alguma — permitam-me o sonho — nutricionista literata.

Não sei onde começa e acaba o teatro de marionetas. Finjo-me livre; no entanto, quando me iço, sem recurso a refrão alheio, seja ele oriundo da esfera poética, ou mesmo das províncias mais oportunistas, sou eu que me levanto. Que fado triste, cantem este, ó neofadistas da construção social, a marioneta descobre que a mão que a manobrou durante tanto tempo, à qual dedicou templos e livros não é senão uma extensão mais obscura de si própria, a qual se habituou a viver no breu dos bastidores ou atrás de uma cortina onde a luz do reconhecimento não alcança, isto contou-me um morcego dedicado ao espectáculo.

Pobre autómato de carne e osso, tenham lá calma direi eu, caso ouça essas palavras.

Numa escrita fragmentada, a união é a capital do cuspe, não foi feita para durar, tão-só para adorar, apinhada de palavrões, sexo e banquetes, na volta ressuscitamos Rabelais e Sterne numa nota de rodapé e saímos de um pensamento marginal aos tiros, vasculhando na podridão dos outros as pepitas nossas, oscilando entre a frase curta e a barroca, que aqui ninguém pára enquanto houver fôlego — o uso diabólico da linguagem e tumultuá-la sem concessões para que, amanhã, possamos colher mais uma tonelada de diabos e cumprir a profecia de Baudelaire.

As vossas vitórias alardeadas por tenores contratados para o efeito são bonsais sãos porém despovoados, a passarada não quer nada com a vossa pequenez, a acidez deste tempo reduzirá o vosso gigantismo de andas a uma lenda de vão de escada; um pouco mais de grito e um pouco menos de legenda, pintem o quadro com os restos do sangue e terão entre os vossos críticos os maiores vampiros.

À força de escrever sobre o humor acabei por acreditar que ele existia. Espero que não haja margem para negociações.

 

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