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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

20.04.24

Quando éramos homens, e havia algum prestígio em permanecer vertical, os predadores, sejam eles de nomeada, com obra feita ou aspirantes a tal, ou perdedores, como dizem os disléxicos activistas, e as presas amiúde geradas pela fome do outro, ninguém estranhava o seu lugar na cadeia alimentar, o mais antigo labirinto sem esquecer o talhante de bata ensanguentada, quando a sobrevivência era clara e não um poema de quem tranca uma vida lá dentro, antes de o advogado tomar o lugar do fabulista no lugar de intérprete de animais, numa altura em que os pais abandonavam os filhos na floresta com o fito de engordar as bruxas e os trilhos de pão eram recebidos pela fome de aves e bichos menores, o mundo, nem por isso, era muito diferente do nosso. 

Vivemos em plena era onde o conforto migrou para todos os vértices e arestas cortantes. A título de exemplo, a literatura, antigo pugilismo solitário, ringue onde o leitor se agredia com golpes remotos de malucos generosos, os quais queriam, acima de tudo, o nosso bem, metamorfoseou-se num spa no qual o leitor, espremido qual laranja algarvia, se espoja entoando o refrão do ego. Durante um ritual mais ou menos sofisticado de afagamento, depende das eras, depende dos preços, o leitor é bombardeado com elogios que, de outra forma, não os receberia. Eis o abismo, o mundo não está para nós, e a arte — não haja receio de usar aspas — fala para nós como se fosse uma mãe protetora, capaz de ir, vejam bem até onde vai a ternura do capitalismo, ao limite de entender o nosso dialecto de soluços e ranho. Posto isto, dada a ração semanal de literatura carregada de verbos engessados, de adjectivação mansa, não é de estranhar que eu seja incapaz de destrinçar a barata tonta da barata sensata. Interpreto a rapidez da barata quando se cruza com o humano tal como quando o adolescente levado em ombros pelas hormonas é apanhado pelos pais que juraram chegar tarde e, ao ouvir uma porta aberta que não estava nos planos, num instante se adapta favoravelmente, mantendo, por ora, o cadastro limpo. Nunca conheci uma barata tonta, a barata sabe sempre ser barata, seja aqui ou ao rés de um cogumelo radioactivo. Há um homem nas redondezas, é para fugir — parece-me sensato. 

Os cães começam a ladrar, incentivando outros a fazer o mesmo, e desse modo cria-se uma rede de latidos que cresce enquanto houver cães disponíveis para a chinfrineira. A vila, que dava ares de civilizada, com um pé neste século e outro no futuro, supondo que chega cá inteiro, não nos fiemos nas empresas de entregas, gradualmente foi despertada, casa a casa, para um coro de animalidade. Em fechando os olhos, diríamos que a vila retrocedeu até ao estado de selva. Partindo do princípio que houve um motivo para os primeiros cães começarem a ladrar, não é de descartar a hipótese segundo a qual os primeiros cães continuem a ladrar só porque há outros cães a ladrar. Ladramos porque outros ladram, e é tudo.
E eis que fui conduzido pelo pensamento rumo à crítica literária. Uma rede de críticos que se criticam mutuamente, sendo que o primeiro, alegremente, criticou um livro provocando uma avalanche de críticas. Não obstante a beleza da tempestade, o leitor do dito livro que originou esta pugna verbal, dá-se conta que andam a usar o mesmo punhado de citações pilhado a um crítico primevo e ninguém foi à fonte verificar se havia minério ou ouropel. Ladram porque outros ladram, e é só. 

E eis que entro numa casa de banho pública, nas paredes da qual foi sendo coligido, sem agenda, um enorme cadáver esquisito. Surrealistas de bexiga aflita. Eis algumas das pepitas. 
A castidade não valoriza o pénis, pelo que não posso considerar o homem enquanto objecto. A democracia é a arte de cortar irmãmente o bolo até ao átomo e bramir ‘já vos matei a fome’. Somos animais sociais, expressão a necessitar de uns retoques, no entanto, grande parte das cenas de pancadaria nascem num ambiente de convívio, logo não contem comigo para festas. Se as mulheres pararem de me ignorar, paro com os poemas — ganhamos todos. Não tenho penteado para ter inimigos. O Júlio tem tanto carisma que até os peidos são citáveis. Há anos que ando a matar perdizes com os mesmos cartuchos. Esta última tem-me tirado o sono, confesso. 

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Roberto Gamito

20.04.24

Deitados, como se o mundo não lhes interessasse, à procura de posição, fazendo tangram com os ossos, ensaiando inconscientemente as poses uma e outra vez documentadas e que tantas alegrias dão aos homens de pau solitário, encimando a toalha axadrezada de piquenique com corpos disponíveis para o plano inclinado da mentira, como manda a lei dos piqueniques, rodeados de pitéu caseiro, preludiando sem verbos a mais a cena de sexo silvestre como vem nos livros, principiou-se a falar da singularidade da bifana enquanto a mão do homem ia cartografando a febra, rodeados por um nevoeiro de moscas que, aos poucos, se densificava, as principais fiscais da paixão campestre (1), as quais, exegetas vanguardistas, interpretam a toalha de cima como se fosse o retrato de Belzebu. Não obstante o rei estar afogado há muito no mar de intenções da rainha, o tempo passava devagar como se tivesse apostado em nós.

É, convenhamos, tempo de acabarmos, cuspiu ela sem peias da sua boquinha ontem entregue à trombose do orgasmo, a qual, no prefácio da paixão, foi hábil em burocracia ebuliente, a grande sala de espera onde alinhamos, por ordem crescente de fome, uma alcateia de desejos, não ignorando que é apenas uma questão de tempo até sermos atendidos e nos despedirmos do verniz da sofisticação, desmantelando, assim, esse oxímoro com o dinamite do tesão. Mostrou assim dominar o timing da comédia humana. Bebi um café e veio-me à cachola Balzac.
Minutos antes de ser alvo de tão inesperado rosário de palavras, simultaneamente vulgar, já o havia visto um sem-número de vezes nos filmes, via-o de fora, a rir acriançadamente, do ridículo que é darmo-nos conta de uma marreta a tombar do céu com intenções de legar ao chão uma aldeia de estilhaços; todavia, empreendia, qual Ulisses pacifista sem memória para coligir os pretendentes nos arquivos da cólera, uma odisseia de planos para os próximos 500 anos porque, segundo li em certos sonetos, ciência das boas quando o assunto é a aliança de carnes, dado que somente no exagero a carne e a palavra formam aliança, era para sempre. Em dias de menor comedimento, vinha-me à ideia que o universo continuava a expandir-se no sentido de acomodar o que sentia por ela. Que armazém de expectativas goradas tinha agora em mãos para despachar. Negócio a explorar: comércio de expectativas em segunda mão para quem, destituído de miolo, é incapaz de sintonizar o coração na frequência do infinito. No parecer de certos entendidos, gente que a memória logo esculpe até ao pó, do pó ao pó é um longo calvário do caruncho!, o artista é, afiançam esses cultores de entrelinhas, quem se dá conta da luta entre o infinitesimal e o infinito. O muito pequeno põe-se muito direito, adquire uma monumental poupa, enxerta nele metros postiços e vê-se ao espelho como gigante genuíno sobre os ombros de um ego recém-calibrado pela situação aflitiva.

Sempre que alguém se dedicou a biografar a vida dos comediantes, coisa que acontece com muito menos frequência do que deveria, quer dizer, se descartarmos as películas com ares de documentário cujo fito é enobrecer o palhaço que está em vias de se extinguir, logo ele que não passa de uma coleção de balas perdidas, somos colonizados pela ideia de um Cristo assustadiço que saiu da cruz com intenção de trocar os pregos antigos por novos, regressando na mesma noite, não vá a metáfora afrouxar.
A morte. Uma última pausa após a qual não se seguirá punchline.

“É, convenhamos, tempo de acabarmos.” Recebi a notícia como um estalo no coração. Mesmo aí, no ponto final posto por extenso, partilhámos as contas. Ela disparou as palavras eu fiquei com o coice — e recuei destrambelhadamente até à infância, ultrapassando, primeiro, o labirinto das relações falhadas. Às arrecuas até ao início, sem precisar de terapeuta.
Eu que me afeiçoei à farpela de ser Ninguém, ela, entomologista, amante do insignificante, viu-me, percebo agora, como insecto exótico. Houve um erro de paralaxe que me passou ao lado. Para mim, o sonho, para ela, mais um trabalho. Acabar comigo era o equivalente a alfinetar-me num quadro de cortiça e dispor-me friamente ao lado do escaravelho mais parecido comigo. Com efeito, desembaracei-me da pele humana, em tempos um dragão chinês debaixo do qual se acoitava uma legião de possibilidades, e fui despromovido a escaravelho-bosteiro, com sorte uma espécie única, hábil em brilhar no escuro. Um bolinha de merda perfeitamente esférica transportada até à amada, caminho prenhe de perigos, predadores e até brisas. Uma e outra vez, um exemplo de combatividade. Infelizmente, carecemos de um Homero capaz de pôr isto em Epopeia. E isto tudo a fazer o pino, como se não houvesse outra forma de transportar excrementos esféricos — o único globo que faz jus ao mundo dos homens. Analisando friamente, agora que as palavras a cavalo nos sentimentos iniciam o arrefecimento, aos poucos, a pertencer ao território dos fantasmas, e a distância que nos unia uma assimptota. Feita as continhas no guardanapo de taberna, ignoro se fiquei a perder. Ser humano, segundo se conta, embora haja teses contrárias, contém aspectos positivos capazes de erigir seitas à volta de duas ou três patranhas. Um escaravelho-bosteiro, arrisco, é um parente de Sísifo com a ligeira diferença que, embora o deserto se afigure como um inferno em obras, alcança a amada. Desafortunadamente, desconhecem-se testemunhos de escaravelhos fêmea após receber tão delicado presente. Há ali muito trabalho envolvido. A esfera, como disse Platão, é a perfeição, e por consequência, a imagem de Deus. O escaravelho, que só se deixou ludibriar pelos egípcios, não estabelece, que se saiba, ligações com Deus. E no entanto ela move-se. Para ti, a perfeição, o retrato de Deus, a mais bela das merdas. A perfeição esculpida na merda. A comédia é própria do homem. E, faça-se justiça, do escaravelho-bosteiro.

(1)
A mosca é uma empata-beijos e, no limite, caso o lume gerado pela fricção das carnes seja brando e insuficiente para as incendiar ou electrocutar, uma empata-fodas. A mosca é tipo irmã conservadora que fiscaliza as pernas da irmã mais nova a fim de controlar as entradas e saídas de estranhos. A mosca é puritana.
Não me espantaria se houvesse estatísticas nas quais se percebesse a importância da mosca e o impacto negativo sobre a natalidade em Portugal. Se não há condições para a prática da fornicação, o chamado sexo, caso analisem estes temas de óculos de massa e bata branca, haverá menos oportunidades para expedir bebés para o mundo. A minha tese é que existe uma mosca batedora que, assim que avista um casal, vai comunicar às outras que andam pelo campo a debicar excrementos. Hoje temos gastronomia portuguesa. Não é preciso ser grande crítico gastronómico para entender o entusiasmo da mosca. Mesmo um palato analfabeto reconhece a superioridade do presunto face ao excremento.
Apesar de ser proverbial o seu apetite por cocó, aí parente do humorista em noites de aflição, e por matéria morta, a saber: cadáveres e pessoas tomadas pela depressão, as moscas não recusam comida caseira. Tal como as hienas, reconhecidas no meio animal e académico por serem necrófragas, não dizem que não se lhes calhar na rifa uma carcaça fresca. E aqui somos todos irmãos.

 

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Roberto Gamito

19.04.24

Se nos descuidamos, impingem-nos livralhada que calha nem terem lido. No limite, celebridades, encandeadas pela sua pretensa estatura, apresentam, de olhos volta e meia fechados, típico de afectação importada, enquanto puxam ao sentimento quando deviam era impelir à bofetada, um livro que calha nem terem escrito. Toda a gente aplaude e ninguém se enfurece sob pena de macular a grande ilusão. Suspeito que nem às gordas — sejam elas garrafais ou cósmicas — passam cartão. Não vejo isso — nem o mundo — com bons olhos: ignoro se é espírito crítico, se miopia; em todo o caso, não nos entendemos na mesma língua. Numa sessão de apresentação de um livreco em que, partilhando da visão — e amiúde da cegueira — do autor, o compincha de linhas convidado para fins de afagamento (o corrector automático, esperto, substituiu ‘afagamento’ por ‘afogamento’ e só prova que as máquinas já alcançaram consciência há muito) debita umas vacuidades pomposas para gáudio de um público faminto de obviedades, trocam-se intenções de punhetas num tom barroco, e só descansa quando elevar o escritor a génio do século, fá-lo com elogios gerais, ortopédicos, os quais servem para qualquer um e não magoa o andar. No fim aplaudimos com a cara cheia de sorrisos e nem do título do livro nos lembramos. Tal como o velho, o público do certame literário contenta-se com pouco: uma cadeira e um tipo a falar e, acrescente-se sem receio, a secreta esperança de poder lançar o bitaite trazido de casa à mínima oportunidade, qual farnel vocabular, isto e até menos que isto faz com que não arredemos pé deste festival de gagos em que não sobrevive, sequer, uma citação para contar aos netos.

Findo o prefácio laudatório durante o qual o amigalhaço destas lides o matriculou na turma dos imortais, o escritor enceta o guião pachorrento no qual singulariza as suas dores de parto num tom que deveria ser engodo para um sem-número de zaragatas. Põe à borda do prato a dificuldade, deixa-se tentar pela facilidade condescendente, durante a qual despovoa as entrelinhas com um pau, não vá alguma ideia ficar lá a minar o verdadeiro sentido das suas palavras e os leitores abalarem da sessão com mais dúvidas do que certezas, comete erros, uns a propósito, outros a despropósito, a forma mais saloia de se humanizar, de gerar empatia, tal como aprendeu em noites de insónia nesses tutoriais da internet, ele que sem eles não passa de um autómato cuja função é agradar, que é como quem diz, uma puta, e logo das mais precárias, pese embora de solicitude infinita. Não arrisca por medo, não vive por medo, não chega sequer a mergulhar na piscina dos crescidos, não saberia lidar com as críticas, cada ajuntamento é ocasião para pôr em prática o oportunismo, matricula-se em todas as esquinas, fez escola em todas as intrigas e mesmo assim, ao chegar a casa de cócoras com o cu calejado de tanta promessa e com a língua extenuada de tanto nada posto por extenso, pensa: não serviu de nada.

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Roberto Gamito

18.04.24

Temos por cá um espanta-bundas de víscera desafinada, que crê ver na esquina habitada o antídoto contra o azedume. Continuando a partir daí, com a calma de quem não tem nada a perder, sem que um nome sonante nos enguice o coração e nos ensarilhe as pernas, principiando a caricatura do destino a cuspo, proveniente de uma fúria fresca, emergindo desses restos de comida requentada na cabeça de outros e de sangue coagulado nas fotografias em sépia, posfácios de lutas interiores que nem os historiadores sem critério passam cartão. Os sinais, se juntos proféticos, se dispersos entretém para intérpretes de domingo, são os bastidores de uma verticalidade em ruínas, de um homem inacabado a estourar os últimos cartuchos na fila dos rodapés, onde, asseguram os matreiros empacotadores de falsos gigantes, celebrará em letra miúda a sua glória. 

Isto, seja lido com tempo ou na diagonal, sejas tu um rei ou um bispo, é um perigo a ganhar patas subterrâneas na corrente sanguínea do leitor, a quem, calculem, já temos de pedir em tom de súplica que molhe, ao menos, os pezinhos nestas linhas. E só isso constitui um ver-se-te-avias-ó-manel, labirinto apinhado de minotauros burocratas hábeis em rebobinar o processo de canonização até à demonização do mais santo de entre os homens. 

Quanto aos outros, mergulhem em apneia neste paleio, carreguem no fôlego a cruz esculpida de véspera, posta a quente na província agreste e inabitável que é, presumo, o coração humano. Para evitar equívocos, o tipo desce sem intenções de regressar à superfície. Em voltando ao mundo dos vivos, confundi-lo-iam com algum herói e tal estraga a reputação de qualquer um. 

Espantalhos aristocratas espantam passarinhos e passarões e, de chofre, açambarcam as migalhas que prometeram proteger. 

Pairamos sobre o esterco sonhando com a queda munidos de asas sem obra feita. E foda-se.

 

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Roberto Gamito

14.04.24

Furriel, escuta-me: há dias, após comer gulosamente cabidela de diamantes de sangue numa correria de colheradas, prato típico de déspota milionário, perdoem-me a redundância, a referência e a enumeração fora da época de inventários, vagabundeava com vontade todavia sem genica pela rua dos meus últimos dias com a pança a saltitar de pitéu devorado e dei-me conta de um detalhe deveras revelador. As poucas sombras de árvore que ainda restam haviam sido ocupadas por veículos, carros, carripanas, motas e quadrúpedes de chapa não identificados, estes repousavam quais felinos exaustos, como que posfaciando uma caçada com bocejos, bosquejos de proezas e flatulências, enquanto os homens, o zénite da criação, suavam quais figos a secar ao sol, como se a água fosse um estorvo.  

Principiei a asnear, que é como quem diz, de mim brotou uma catarata de obscenidades, hábil em polinizar os ouvidos mais sensíveis com uma irritação fresca, não lhe faltando nutrientes — só quero o vosso bem. 

Massa cinzenta, queimadinhos, o arroz e o miolo, jantar de zombie feito em fanicos. Ando de um lado para o outro com as cinzas de Deus nos cornos, ele por fim minúsculo que está dentro de nós e por momentos morto. Perante isto, a notícia de mais uma morte inesperada, só logrei pensar em foder e em Dostoiévski. Amanhã pode não ser permitido, há que voltar aos clássicos. 

Na vinheta seguinte, o nosso personagem anónimo prosseguia a sua ruminação, no entanto fora-lhe adicionada uma mulher de joelhos ao rés da braguilha. Enxotou-a sem pinga de delicadeza. Coitada, a pobre só tencionava acoitar-se à sombra dos tomates do velho e, quem sabe, dar largas ao apetite sem que o sol convocasse a madurez para a sua pele. 

Há vinte anos, na rua agora semeada de lojas tão diferentes no nome e no conceito mas tão iguais no conteúdo, havia tão-somente dois tipos de negócio: tabernas e mercearias. Embora o sortido de bebedeiras tenha migrado do passado rumo ao presente, não é, convenhamos, o mesmo cenário. Não tem o mesmo sabor apresentar uma cadeira ressequida do sol às costas de um cavalheiro que ficou à mercê da nossa fúria ou repetir o mesmo gesto mas com uma cadeira da moda. Dá a ideia que até a porrada nas esplanadas é espectáculo virado para os turistas. 

Queira facultar-me prazer e o bom do broche, e se possível em simultâneo, e para ontem, puta! Só se deres uma aparadela no mato. Não estamos em época de incêndios, quando for a altura, falo ei! Até lá regalar-me-ei com este chumaço natural que volta e meia engoda peixe mais necessitado à procura de farnel. Escusavam de teimar com ele, falava assim com todos. Mesclava ordenamento do território e brejeirice com mestria digna de mestre, fora, sem sombra de dúvidas, bafejado pelas musas. Era o cronista do seu apetite e isso fê-lo ganhar muitos inimigos e amantes e biografias não autorizadas.

Há anos, era eu puto a prestigiar a cara com ranho e borbulhas, atirava pedras às lagartixas só para ouvir o farfalhar das folhas secas à minha volta. Apontava à cabeça de uma, e merda!: fugia aquela e fugiam outras sete. Por incrível que pudesse afigurar-se, a tarefa de encontrar vida debaixo da pedra que encrencou Abel, revelava-se esquiva. Qualquer outra pedra oferecia na sua cave um hotel destinado a bichos e bichinhos. Só este pedregulho bíblico permanecia como excepção. 

 

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Roberto Gamito

13.04.24

Esse festival pirotécnico de parangonas com que nos entopem os sentidos e nos atravancam a alma com grilhões é um chorrilho de arrotos afinados pela novidade mais fresca, que ao ouvido mais destreinado passa por sinfonia. A manipulação a que estão sujeitas as multidões põe a marioneta em perspectiva, confere-lhe tridimensionalidade, adiciona-lhe chapéu e futuro, ao passo que nós, tão desgraçados quanto alienados, embarcámos numa viagem inspirada em Flatland. Quanto menos dimensões tiver, menos problemas arranjo, há-de congeminar um matemático virado para a ardósia a mando de uma faca de dimensões e gume respeitáveis. A marionete regozija-se pelo seu destino — o primeiro pensamento assim que a fada lhe confere vida e número de contribuinte.

E eu? Na altura, inferior a todos eles, fui ganhando corpulência e testículos à Rabelais, os quais saltaram marotamente de geração em geração, qual tesouro de família, tipo Santo Graal do baixo ventre, rapinando centímetros e coragem a esses poeirentos cadáveres encalhados nas estantes, inspirei-me, não minto, em patilhas célebres e barbas com obra feita. À conta de leituras metamorfoseei-me num cachalote pitosga e camaleónico, nem negro nem branco, confundo-me com águas e marés com o intuito de me aproximar desse enxame de Ahabs gagos de arpão reformado. Daí para a frente é sem mestre, cornos nos cornos com a morte. Posso finalmente desarrolhar o demónio que há dentro do homem. Hoje ninguém dorme, é dia de festa, o Diabo olhou, novamente, para o céu.

A minha luta, sei-o, é contra o tempo. Doravante é um contra-relógio, licra da cabeça aos pés e cores berrantes que não me favorecem seja qual for o ângulo ou o fotógrafo, e vá de dar ao pedal. Pedalo logo suo. Existir fica para depois. Em face do vasto catálogo farfalhante de bichos, no qual as espécies se encavalitam umas nas outras no mesmo ruído, quer dizer, acotovelam-se com a ideia de entrarem no círculo franzino onde o holofote separa, de longe, o trigo do joio, ou, se preferirem, como se o jogo da reputação fosse uma partida de sumo, estamos todos gordos e em trajes menores;  em todo o caso, quem permanece no círculo está em jogo; fora isso, ainda há, ouvi de fonte precariamente segura no entanto subornável, gente a merecer um elogio ou outro. Avancemos com calminha, a senda até ao próximo raciocínio está pejada de buracos e buraquinhos. Ali vai uma gaja que merecia estar comigo, comenta o macho em idade de acasalar — e isto não é de somenos. Confiscando os voos do ego para divãs que valorizam à medida que coleccionam rabos desejosos de desabafar, anos a fio no funambulismo da adolescência, anos à pendura no carrossel da morte, mas sim, os voos, ao relegá-los para a frieza das fórmulas físicas, como quem chama a genialidade ao gabinete da eficácia com o fito de a abençoar com um sermão antes de a despedir. Encasulados no cacho de âmbar da previsibilidade, a enceleirar raiva dentro de pipas de carvalho, a fazer tempo para a mudança — e reparem que os séculos passam num foguete, Camões que era Camões falava de um Portugal com os vícios de hoje, meus queridos Velhos do Restelo em regime pós-laboral.

A fórmula arruma tudo: quando descortinarem a minha posição inicial — o inferno, o inferno! — e a minha aceleração — luciferina, não há outra — hão-de ir ao tapete e se for preciso até ajudam o árbitro na contagem. Hão-de aproveitar o último fôlego para a epifania de vão de escada. O humanismo é uma coisa maravilhosa, mas como mercadoria.

Não há por aí ninguém para me despentear as convicções políticas, pergunta a mulher no bar num tom que, se os tempos fossem outros, diríamos carregadamente sexual. Já ninguém me arrepia com parágrafos, os quais tombam sem agenda do céu tipo caca de pombo e ali ficam à espera que a burocracia das freguesias desatravanque o caminho da ideia de limpeza para a limpeza propriamente dita; esses filhos da puta — calma, não é daí que nascem as dificuldades e as diferenças entre nós — desembarcam à minha beira com o seu refrão de época alta com a gangrena de quem romantizou a inércia e a elevou a musa só para ter uma desculpa de atar as mãos. É o costume. Entretém de pila murcha. Na versão fílmica, haverá uns tipos a quem o declive vai beliscando a frágil verticalidade até que, esgotadas as forças, as quais foram desbaratadas em punhetas líricas ou alheias com o fito de subirem na hierarquia onde só os sopés são palpáveis, encetam a queda com a lágrima no canto do olho. Pensamento novo. Não é a descoberta da pólvora, mas anda lá perto. Mas filho, cogitará o leitor ajeitando os óculos e os colhões de forma síncrona, para quê estes coices metidos a despropósito? Meu puto, estás tão a leste das quezílias, o verniz da tua pretensa sofisticação ingressou em ti como ácido, a princípio educadamente, e está a minutos de chegar aos ossos. A tua propensão para imitares os quadrúpedes quando a política te bate à porta tinha de ter uma razão que não psicanalítica. Está bem que nos fodem, à grande e à estrangeira, mas foste tu, não foi a tua mãe nem Laio, que permitiu que o verniz assentasse arraiais no esqueleto e ganhasse confiança até se tranfigurar num vampiro.

Outro personagem. Tratam-no alternadamente como génio e erro conforme tocam os reclames. Linhas — isso vi eu com olhos incorruptíveis — de pura genuinidade da candonga, elevada a hino. Os aplausos ante tamanha farsa tiraram-me o sono durante décadas. As insónias ensinaram-me tudo o que havia a aprender: meti o bedelho como um felino ferra os dentes nas goelas da presa, eu que antes havia inventado acidentes para abrandar a locomotiva da fome.

Que campeões deste atletismo de aprumadinhos! Deleitados e tontos, medalhas e cérebros nas prateleiras dos troféus. Tantos gráficos e nenhum é capaz de mascarar o nosso desnorte. Tantos pódios atulhados de malta com vertigens.

Cada influencer está convencida — ou convencido, que os há também em formato macho — que dá guarida a uma dinastia na barriga. O puto é endeusado assim que é escorraçado da mãe — agora aguentem este festival de mimados.

Não me quero armar em juiz, estou nisto, na vida e no resto, com ganas de aprender e desaprender. Se possível, munido das palavras mais ígneas. Nada de descambar em projectos ambiciosos, pelo que não esperem destas unhas nenhuma catedral, o vosso Deus que durma na rua — daqui em diante é o evangelho da pólvora. Desapareçam-me da frente mais a vossa gangrena do positivismo.

Andas a catar de cadáveres alheios piolhos para assim teres pretexto para te coçar, dir-me-ão convencidos que o vosso cérebro quer alguma coisa convosco. São empreendimentos deste calibre que nos catapultam para uma antologia do disparate, destacadíssimos. Não retruco. Está certo, até deixar de estar.

Com ou sem bola, isolei-me com fintas de autor, visto que o esférico é artifício para evitarmos andarmos por aí aos tiros, não foi golo, mas. Um mas atestado de cólera. O meu propósito: um susto na grande área. Falho, todos falhamos, o que muda é o equipamento e o teor dos comentários dirigidos ao árbitro; e nada garante que para a próxima falhemos melhor. O susto não passou: cá estou eu na área, uma e outra vez, qual possesso suado e de calções cheios de terra.

Roubei-lhe tempo. Que estupidez, perdi o meu tempo e o dela. Somos larápios de tempo inexperientes. Envergonhe-se já o leitor, as banalidades, estas e outras, serão regadas a gasolina. Das mil, uma: uma horta de chamas e faúlhas — um milagre da sustentabilidade, só precisa ser regada uma vez.

Festival de parangonas


Roberto Gamito

07.04.24

Pedi com voz coxa, amparada pelas muletas tipo e imagina, fruto de lábia extenuada de andar a impingir isto e aquilo aos néscios, um café à homem contemporâneo, sem princípio. De uma penada confeccionei crítica social e parodiei Borges, o escritor argentino. Ainda não está suficientemente profundo, comentei ao fitar o café com as mãos de quem vai dar início ao mergulho. Das duas, uma: ou ganho uma medalha ou conduzem-me para o hospício, fosse como fosse, a parvoíce é olímpica.

Língua insubmissa, pese embora o corpo agrilhoado, vícios de quem ambiciona subir pela hierarquia acima, para desprestígio do cu ontem bem reputado, e o corpo é que paga!, manietado no colete-de-forças da eficiência — caiu-nos um problema (desafio, caso vos tenha calhado a fava de ‘empreendedor’) no colo. O problema órfão encontrou em mim um pai adoptivo, e assim se vê como anda o mundo das ideias. A empresa faliu por ser incapaz de oferecer morada a tanto desafio. Das cinzas desse negócio nasceu uma casa de criadores de conteúdo.

Com os joelhos a tremerem que nem varas ao serem coreografadas pelo vento, como que a prefaciar a grande conversa ou uma foda há muito desejada, o clima, ameno, não pedia preservativos nem gorros. Décadas a aturar manetas, a cuspir aos ouvidos dos apardalados o mesmo refrão capitalista para que me levem as bagatelas das prateleiras, anos a deixar-me ficar para trás nesta maratona a que uns, não sem vergonha, apodam progresso, um sem-número de restos de música que transbordavam dos bares, sítios onde vamos à noitinha prosseguir com as buscas, a felicidade que não há meio de aparecer, tudo isso fazia esquecer-me que a velhice — essa cabra multiforme que nos esculpe desfavoravelmente qual escultor sem talento, um escultor só Parkinson, recorda-me do que sei, que é como quem diz, o meu mundo cabe à larga num bolso. A vida é uma tragédia em plano inclinado, o potencial ficou lá atrás.

É agora, questionou a mulher de peito farto. Deixa-me só encostar o mundo às cordas, bramou o poeta armado em pugilista com os calções na mão, consente, filha, que despache o mundo numas linhas, que eu já te atendo.

Numa esquina dessa história cuja luz daria à cena, caso fosse fotografada, o estatuto de memorável, a velhota corcunda, tipo caracol com a mania da verticalidade, vistoriava a montra atulhada de bolos com paciência de relojoeiro. Não tenho tempo para nada, excepto para bolos, aí aprecio a ponderação, eis uma legenda para a cena a piscar o olho a Fernando Pessoa.
Um bolo de arroz e, sem transição, aquela “ainda agora se divorciou e já anda com outro.” Como se as mulheres fossem obrigadas a um período de pousio. Durante uma temporada não se plantarão nabos nessa cona, eis o que deveria vir no Borda d'Água. Deixa a mulher em paz, interrompi eu, agricultura é vida.

Era um homem a desnovelar os segredos do cosmos ao balcão entre berros, pancadas e perguntas. Pediu marisco ao taberneiro só para ter o gostinho de escutar um delicioso ‘vai para o caralho mais o teu gosto requintado’. Antes disso havia estado em casa a homenagear o compasso, a descrever círculos em todas as divisões, pi, pi, caralho, clamava quando cumpria a volta.

E a bifana vem ou não vem, perguntava alguém furibundo, há horas que ando a mobilar as tripas a cerveja e tu, tasqueiro só patilhas, não me desenrascas nada para entreter os dentes.

Outra velha que não a outra, esta segunda velha não parecia de porcelana, porém não estava viva. O cão empalhado exibia o seu melhor ar de desconfiado. A perdiz está amalhada. O restolho devolve-nos um som de cinema a cada passo. Não há lebres a acordar para o espanto de quem foi passear ao mato com o fito de espairecer e foi abalroado com o facto de o mundo, que não se importa com nada do que é humano, ter mais vida que um colhão no auge.

A fauna do sítio era vasta e merecedora de descrição mais avultada. Com o porquinho no colo, o pastor novo-rico dotado com tiques de celebridade de redes sociais trouxe o porco directamente da pocilga para a pastelaria e não admite crítica, vi lá fora, logo faço também, o bêbedo, o qual empestou a visão com vídeos de Instagram viu há dias uma dondoca a passear o seu piruças aprumado numa mala e, para fazer um brilharete, transporta o seu mini bobi desleixado cujo pêlo nunca conheceu escova num saco plástico grande e transparente como quem transporta um peixinho dourado para casa mas antes atesta a pança de bagaço. Patinhas a dar a dar, lindo, turistas, zero, o que era um descanso para a alma. Cafés e bolos a preço de local. De seguida, acordei e dei uma volta.

 

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