Roberto Gamito
20.04.24
Quando éramos homens, e havia algum prestígio em permanecer vertical, os predadores, sejam eles de nomeada, com obra feita ou aspirantes a tal, ou perdedores, como dizem os disléxicos activistas, e as presas amiúde geradas pela fome do outro, ninguém estranhava o seu lugar na cadeia alimentar, o mais antigo labirinto sem esquecer o talhante de bata ensanguentada, quando a sobrevivência era clara e não um poema de quem tranca uma vida lá dentro, antes de o advogado tomar o lugar do fabulista no lugar de intérprete de animais, numa altura em que os pais abandonavam os filhos na floresta com o fito de engordar as bruxas e os trilhos de pão eram recebidos pela fome de aves e bichos menores, o mundo, nem por isso, era muito diferente do nosso.
Vivemos em plena era onde o conforto migrou para todos os vértices e arestas cortantes. A título de exemplo, a literatura, antigo pugilismo solitário, ringue onde o leitor se agredia com golpes remotos de malucos generosos, os quais queriam, acima de tudo, o nosso bem, metamorfoseou-se num spa no qual o leitor, espremido qual laranja algarvia, se espoja entoando o refrão do ego. Durante um ritual mais ou menos sofisticado de afagamento, depende das eras, depende dos preços, o leitor é bombardeado com elogios que, de outra forma, não os receberia. Eis o abismo, o mundo não está para nós, e a arte — não haja receio de usar aspas — fala para nós como se fosse uma mãe protetora, capaz de ir, vejam bem até onde vai a ternura do capitalismo, ao limite de entender o nosso dialecto de soluços e ranho. Posto isto, dada a ração semanal de literatura carregada de verbos engessados, de adjectivação mansa, não é de estranhar que eu seja incapaz de destrinçar a barata tonta da barata sensata. Interpreto a rapidez da barata quando se cruza com o humano tal como quando o adolescente levado em ombros pelas hormonas é apanhado pelos pais que juraram chegar tarde e, ao ouvir uma porta aberta que não estava nos planos, num instante se adapta favoravelmente, mantendo, por ora, o cadastro limpo. Nunca conheci uma barata tonta, a barata sabe sempre ser barata, seja aqui ou ao rés de um cogumelo radioactivo. Há um homem nas redondezas, é para fugir — parece-me sensato.
Os cães começam a ladrar, incentivando outros a fazer o mesmo, e desse modo cria-se uma rede de latidos que cresce enquanto houver cães disponíveis para a chinfrineira. A vila, que dava ares de civilizada, com um pé neste século e outro no futuro, supondo que chega cá inteiro, não nos fiemos nas empresas de entregas, gradualmente foi despertada, casa a casa, para um coro de animalidade. Em fechando os olhos, diríamos que a vila retrocedeu até ao estado de selva. Partindo do princípio que houve um motivo para os primeiros cães começarem a ladrar, não é de descartar a hipótese segundo a qual os primeiros cães continuem a ladrar só porque há outros cães a ladrar. Ladramos porque outros ladram, e é tudo.
E eis que fui conduzido pelo pensamento rumo à crítica literária. Uma rede de críticos que se criticam mutuamente, sendo que o primeiro, alegremente, criticou um livro provocando uma avalanche de críticas. Não obstante a beleza da tempestade, o leitor do dito livro que originou esta pugna verbal, dá-se conta que andam a usar o mesmo punhado de citações pilhado a um crítico primevo e ninguém foi à fonte verificar se havia minério ou ouropel. Ladram porque outros ladram, e é só.
E eis que entro numa casa de banho pública, nas paredes da qual foi sendo coligido, sem agenda, um enorme cadáver esquisito. Surrealistas de bexiga aflita. Eis algumas das pepitas.
A castidade não valoriza o pénis, pelo que não posso considerar o homem enquanto objecto. A democracia é a arte de cortar irmãmente o bolo até ao átomo e bramir ‘já vos matei a fome’. Somos animais sociais, expressão a necessitar de uns retoques, no entanto, grande parte das cenas de pancadaria nascem num ambiente de convívio, logo não contem comigo para festas. Se as mulheres pararem de me ignorar, paro com os poemas — ganhamos todos. Não tenho penteado para ter inimigos. O Júlio tem tanto carisma que até os peidos são citáveis. Há anos que ando a matar perdizes com os mesmos cartuchos. Esta última tem-me tirado o sono, confesso.