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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

24.05.25

O disparo das lagartixas até há pouco imóveis. Caso tivessem permanecido quietas, desinteressar-me-ia, qual personagem convicta de as ter compreendido. É nesse instante humilde, engrandecido pelo chinfrim das folhas caídas, que a ilusão da compreensão se estilhaça. Afinal era outro bicho. O papel de observador e animal observado saltitou, percebo-o agora volvidas umas décadas, entre mim e ela. Crescemos ou minguamos se formos submetidos ao olhar treinado. O olhar desdobra-nos sem nos pedir licença, incita-nos à metamorfose. Se amedrontado, o olhar transforma a migalha num zigurate, se paciente, detona a estatura engalanada pelo marketing da lábia do gigante postiço. E assim faz as pazes com a realidade, pelo menos por agora, eis a diplomacia sem alarde nem apertos de mão.

Quando se é puto, as frases saem mancas e são amputadas por gritos e risos; não procuram bocas póstumas que as trasladem de geração em geração; nascem fósforos acesos e despedem-se de nós com o fogo humilde sem pretensões de serem eternas. Sem querer, quando catraios de miolo por estrear, somos semelhantes a radialistas e a podcasters de nova geração. A sociedade actual elevou-nos à categoria de eficientes máquinas de encher chouriços. O silêncio é onde construímos a nossa Transilvânia, eis a residência ambulante dos nossos medos. A grande maioria de nós é inábil em unir pontos, ainda que alguns dos jogos da infância consista -- deliciosa ironia! -- em uni-los em cadernos de actividades, amiúde patrocinadas pela inércia. O tempo passa sem que nos segredem a razão do plano inclinado. Quando damos por ela, metamorfoseámo-nos em estátuas nervosas, a ensaiar a quietude e a queda, porém com o alarde raramente observado no mármore.

As gargalhadas preenchem os cotovelos do dédalo da esplanada, são os enchumaços das conversas sérias. As crianças percorrem os interstícios das mesas encimadas por minis e galões, andam de um lado para o outro, testando todas as direcções, qual aspirante a pêndulo, imprevisíveis e sem agenda são Ulisses a andar em círculos.

Ninguém sabe, nem os pais, quantos decilitros de lágrimas escorrem dos olhos de uma criança durante a infância. Por tudo e por nada. Oprimidos por quinas de mesa e por pais de sorriso bissexto.

Do perfume da infância chegámos ao fedor da vida adulta. Não desembarcamos paulatinamente, quais turistas endinheirados; somos cuspidos como náufragos. O cheiro pouco convidativo impede-nos de regressar ao passado, impossibilita a idealização; o pivete é o rival da miragem. Sem o perfume da esperança e dos sonhos, a realidade é um cadáver de um cacholote. 

Quando aperto a mão de um homem envelhecido, conheço a dimensão do reino. Modesto ponto primevo, áspera e diminuta promessa, sonhos lançados pelo abismo à beira do qual a esperança desespera, big bang em botão e adiado. E eis que a morte chega com o ponto final derradeiro. Os vindouros que semeiem este universo noutras paragens. 

Pouco resta de mim nestas palavras. Falo do Roberto de outros tempos -- o putinho de parco vocabulário, de olhos atestados de alegria e com as ideias a saírem-lhe pelas orelhas. Um garoto todo quedas e questões -- rumino-o noutra língua e é como se fosse um estranho.
Regresso à minha infância como quem vê um tigre no zoológico -- não a alcanço. A representação do tigre, confundível com o animal selvagem, foi encerrada; o tigre, esse, talvez ande nas redondezas a mirar-nos o pescoço.

Às vezes misturo-me no silêncio dos cadáveres que conheci e tento perceber se a morte me servirá.

Do outro lado da vida, no parapeito da minha descrença, leio este texto, qual plot twist da fábula Polegarzinho, onde a andorinha nos revela, na última linha, que ouviu a estória de um tipo na Dinamarca. E nós que empatizámos com ela, quase morta, ave extinta, empecilho de míopes, aquecida pela solidariedade da minúscula,  a menina quase-noiva da cega toupeira. Uma linha é suficiente para pôr em causa a biografia.

 

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Roberto Gamito

18.05.25

Novo episódio de Tertúlia de Mentirosos.

Nuno Costa Santos. Escritor.

Esta conversa foi muito especial para mim; conversei com alguém que foi -- e ainda é -- muito importante na minha formação enquanto leitor. 


Podem escutar o episódio aqui:
https://open.spotify.com/episode/4MO2m29UStG18bfiqRniFs?si=mJItZY9WTzGlvnuEYnwd0Q

 

 

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