Roberto Gamito
12.03.16
Estar com fome é o meu prato favorito, logo a seguir à sopa de peixe. Ah bandido, uma ironia! Confesso, causa-me uma certa impressão fitar fiapos de peixe, desfigurado pela cruel prática gastronómica, a boiar no meio da massa. Como se os trechos de massa fossem os destroços de um navio de massa recentemente naufragado e os fiapos de peixe o sobrante dos náufragos. Ou como aqueles riachos onde sucedeu uma catástrofe ambiental e os peixes griparam, adornando o riacho de nenúfares escamosos. Julgo que não seria boa pessoa se tirasse partido de uma tragédia deste caudal. Tirar a barriga da miséria fagocitando um revés faria de mim um monstro. Mas mesmo assim, o que pode um homem adulto de corpulência considerável contra uma mãe de estatura mediana mas campeã regional de esgrima de colher de pau. O sabor, meu Deus, o sabor! Dá a sensação que uma cobra me está a inocular o mais potente veneno no céu da boca e eu a reprimir o guincho, derivado à etiqueta inculcada pela família, tenho de seguir o procedimento milenar, fazer tudo o que está ao meu alcance a fim de não estrebuchar, aquilo que os eruditos baptizaram comer e calar. Entre colheradas numa mistela infinitamente intragável e os acessos de vómito e responder afirmativamente à pergunta da progenitora “Então, a sopa está boa?”, eu, bem, ela está fartinha de saber que eu detesto sopa de peixe, aliás, prefiro estar colado ao sofá a visionar uma maratona de programas da tarde, daqueles onde aparecem figuras de proa como o Nuno Eiró e outras de igual envergadura, sumariamente, um fartote de interesse em escutar durante dias seguidos um programa protagonizado por um remédio para as insónias, tudo é preferível a sopa de peixe, sei lá, até levar com um meteoro no escroto, mas não, lá está a mãe a impingir a sopa de peixe, porque já sabem como são as mães, sempre com a cantilena, ‘isso vai-te fazer bem’, que a minha avó traduz volta e meia por ‘come que isso dá força na verga’ (para a minha avó todas as comidas dão força na verga), e eu, como pessoa crescida, crescido aos trambolhões, com largos anos de experiência no campo da mentira, não consigo dizer que não. Vá de colheradas para a boca do menino. Lutar para acabar o prato, ou pelo menos deixar o menos possível, enquanto luto contra o vómito e tento fazer uma cara que não a de asco enquanto tento meter conversa, faz de mim, não me orgulho disso, um malabarista da hipocrisia. Espero que hoje a minha mãe tenha a decência de me confeccionar um bife com batatas fritas.