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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

13.04.24

Esse festival pirotécnico de parangonas com que nos entopem os sentidos e nos atravancam a alma com grilhões é um chorrilho de arrotos afinados pela novidade mais fresca, que ao ouvido mais destreinado passa por sinfonia. A manipulação a que estão sujeitas as multidões põe a marioneta em perspectiva, confere-lhe tridimensionalidade, adiciona-lhe chapéu e futuro, ao passo que nós, tão desgraçados quanto alienados, embarcámos numa viagem inspirada em Flatland. Quanto menos dimensões tiver, menos problemas arranjo, há-de congeminar um matemático virado para a ardósia a mando de uma faca de dimensões e gume respeitáveis. A marionete regozija-se pelo seu destino — o primeiro pensamento assim que a fada lhe confere vida e número de contribuinte.

E eu? Na altura, inferior a todos eles, fui ganhando corpulência e testículos à Rabelais, os quais saltaram marotamente de geração em geração, qual tesouro de família, tipo Santo Graal do baixo ventre, rapinando centímetros e coragem a esses poeirentos cadáveres encalhados nas estantes, inspirei-me, não minto, em patilhas célebres e barbas com obra feita. À conta de leituras metamorfoseei-me num cachalote pitosga e camaleónico, nem negro nem branco, confundo-me com águas e marés com o intuito de me aproximar desse enxame de Ahabs gagos de arpão reformado. Daí para a frente é sem mestre, cornos nos cornos com a morte. Posso finalmente desarrolhar o demónio que há dentro do homem. Hoje ninguém dorme, é dia de festa, o Diabo olhou, novamente, para o céu.

A minha luta, sei-o, é contra o tempo. Doravante é um contra-relógio, licra da cabeça aos pés e cores berrantes que não me favorecem seja qual for o ângulo ou o fotógrafo, e vá de dar ao pedal. Pedalo logo suo. Existir fica para depois. Em face do vasto catálogo farfalhante de bichos, no qual as espécies se encavalitam umas nas outras no mesmo ruído, quer dizer, acotovelam-se com a ideia de entrarem no círculo franzino onde o holofote separa, de longe, o trigo do joio, ou, se preferirem, como se o jogo da reputação fosse uma partida de sumo, estamos todos gordos e em trajes menores;  em todo o caso, quem permanece no círculo está em jogo; fora isso, ainda há, ouvi de fonte precariamente segura no entanto subornável, gente a merecer um elogio ou outro. Avancemos com calminha, a senda até ao próximo raciocínio está pejada de buracos e buraquinhos. Ali vai uma gaja que merecia estar comigo, comenta o macho em idade de acasalar — e isto não é de somenos. Confiscando os voos do ego para divãs que valorizam à medida que coleccionam rabos desejosos de desabafar, anos a fio no funambulismo da adolescência, anos à pendura no carrossel da morte, mas sim, os voos, ao relegá-los para a frieza das fórmulas físicas, como quem chama a genialidade ao gabinete da eficácia com o fito de a abençoar com um sermão antes de a despedir. Encasulados no cacho de âmbar da previsibilidade, a enceleirar raiva dentro de pipas de carvalho, a fazer tempo para a mudança — e reparem que os séculos passam num foguete, Camões que era Camões falava de um Portugal com os vícios de hoje, meus queridos Velhos do Restelo em regime pós-laboral.

A fórmula arruma tudo: quando descortinarem a minha posição inicial — o inferno, o inferno! — e a minha aceleração — luciferina, não há outra — hão-de ir ao tapete e se for preciso até ajudam o árbitro na contagem. Hão-de aproveitar o último fôlego para a epifania de vão de escada. O humanismo é uma coisa maravilhosa, mas como mercadoria.

Não há por aí ninguém para me despentear as convicções políticas, pergunta a mulher no bar num tom que, se os tempos fossem outros, diríamos carregadamente sexual. Já ninguém me arrepia com parágrafos, os quais tombam sem agenda do céu tipo caca de pombo e ali ficam à espera que a burocracia das freguesias desatravanque o caminho da ideia de limpeza para a limpeza propriamente dita; esses filhos da puta — calma, não é daí que nascem as dificuldades e as diferenças entre nós — desembarcam à minha beira com o seu refrão de época alta com a gangrena de quem romantizou a inércia e a elevou a musa só para ter uma desculpa de atar as mãos. É o costume. Entretém de pila murcha. Na versão fílmica, haverá uns tipos a quem o declive vai beliscando a frágil verticalidade até que, esgotadas as forças, as quais foram desbaratadas em punhetas líricas ou alheias com o fito de subirem na hierarquia onde só os sopés são palpáveis, encetam a queda com a lágrima no canto do olho. Pensamento novo. Não é a descoberta da pólvora, mas anda lá perto. Mas filho, cogitará o leitor ajeitando os óculos e os colhões de forma síncrona, para quê estes coices metidos a despropósito? Meu puto, estás tão a leste das quezílias, o verniz da tua pretensa sofisticação ingressou em ti como ácido, a princípio educadamente, e está a minutos de chegar aos ossos. A tua propensão para imitares os quadrúpedes quando a política te bate à porta tinha de ter uma razão que não psicanalítica. Está bem que nos fodem, à grande e à estrangeira, mas foste tu, não foi a tua mãe nem Laio, que permitiu que o verniz assentasse arraiais no esqueleto e ganhasse confiança até se tranfigurar num vampiro.

Outro personagem. Tratam-no alternadamente como génio e erro conforme tocam os reclames. Linhas — isso vi eu com olhos incorruptíveis — de pura genuinidade da candonga, elevada a hino. Os aplausos ante tamanha farsa tiraram-me o sono durante décadas. As insónias ensinaram-me tudo o que havia a aprender: meti o bedelho como um felino ferra os dentes nas goelas da presa, eu que antes havia inventado acidentes para abrandar a locomotiva da fome.

Que campeões deste atletismo de aprumadinhos! Deleitados e tontos, medalhas e cérebros nas prateleiras dos troféus. Tantos gráficos e nenhum é capaz de mascarar o nosso desnorte. Tantos pódios atulhados de malta com vertigens.

Cada influencer está convencida — ou convencido, que os há também em formato macho — que dá guarida a uma dinastia na barriga. O puto é endeusado assim que é escorraçado da mãe — agora aguentem este festival de mimados.

Não me quero armar em juiz, estou nisto, na vida e no resto, com ganas de aprender e desaprender. Se possível, munido das palavras mais ígneas. Nada de descambar em projectos ambiciosos, pelo que não esperem destas unhas nenhuma catedral, o vosso Deus que durma na rua — daqui em diante é o evangelho da pólvora. Desapareçam-me da frente mais a vossa gangrena do positivismo.

Andas a catar de cadáveres alheios piolhos para assim teres pretexto para te coçar, dir-me-ão convencidos que o vosso cérebro quer alguma coisa convosco. São empreendimentos deste calibre que nos catapultam para uma antologia do disparate, destacadíssimos. Não retruco. Está certo, até deixar de estar.

Com ou sem bola, isolei-me com fintas de autor, visto que o esférico é artifício para evitarmos andarmos por aí aos tiros, não foi golo, mas. Um mas atestado de cólera. O meu propósito: um susto na grande área. Falho, todos falhamos, o que muda é o equipamento e o teor dos comentários dirigidos ao árbitro; e nada garante que para a próxima falhemos melhor. O susto não passou: cá estou eu na área, uma e outra vez, qual possesso suado e de calções cheios de terra.

Roubei-lhe tempo. Que estupidez, perdi o meu tempo e o dela. Somos larápios de tempo inexperientes. Envergonhe-se já o leitor, as banalidades, estas e outras, serão regadas a gasolina. Das mil, uma: uma horta de chamas e faúlhas — um milagre da sustentabilidade, só precisa ser regada uma vez.

Festival de parangonas


Roberto Gamito

07.04.24

Pedi com voz coxa, amparada pelas muletas tipo e imagina, fruto de lábia extenuada de andar a impingir isto e aquilo aos néscios, um café à homem contemporâneo, sem princípio. De uma penada confeccionei crítica social e parodiei Borges, o escritor argentino. Ainda não está suficientemente profundo, comentei ao fitar o café com as mãos de quem vai dar início ao mergulho. Das duas, uma: ou ganho uma medalha ou conduzem-me para o hospício, fosse como fosse, a parvoíce é olímpica.

Língua insubmissa, pese embora o corpo agrilhoado, vícios de quem ambiciona subir pela hierarquia acima, para desprestígio do cu ontem bem reputado, e o corpo é que paga!, manietado no colete-de-forças da eficiência — caiu-nos um problema (desafio, caso vos tenha calhado a fava de ‘empreendedor’) no colo. O problema órfão encontrou em mim um pai adoptivo, e assim se vê como anda o mundo das ideias. A empresa faliu por ser incapaz de oferecer morada a tanto desafio. Das cinzas desse negócio nasceu uma casa de criadores de conteúdo.

Com os joelhos a tremerem que nem varas ao serem coreografadas pelo vento, como que a prefaciar a grande conversa ou uma foda há muito desejada, o clima, ameno, não pedia preservativos nem gorros. Décadas a aturar manetas, a cuspir aos ouvidos dos apardalados o mesmo refrão capitalista para que me levem as bagatelas das prateleiras, anos a deixar-me ficar para trás nesta maratona a que uns, não sem vergonha, apodam progresso, um sem-número de restos de música que transbordavam dos bares, sítios onde vamos à noitinha prosseguir com as buscas, a felicidade que não há meio de aparecer, tudo isso fazia esquecer-me que a velhice — essa cabra multiforme que nos esculpe desfavoravelmente qual escultor sem talento, um escultor só Parkinson, recorda-me do que sei, que é como quem diz, o meu mundo cabe à larga num bolso. A vida é uma tragédia em plano inclinado, o potencial ficou lá atrás.

É agora, questionou a mulher de peito farto. Deixa-me só encostar o mundo às cordas, bramou o poeta armado em pugilista com os calções na mão, consente, filha, que despache o mundo numas linhas, que eu já te atendo.

Numa esquina dessa história cuja luz daria à cena, caso fosse fotografada, o estatuto de memorável, a velhota corcunda, tipo caracol com a mania da verticalidade, vistoriava a montra atulhada de bolos com paciência de relojoeiro. Não tenho tempo para nada, excepto para bolos, aí aprecio a ponderação, eis uma legenda para a cena a piscar o olho a Fernando Pessoa.
Um bolo de arroz e, sem transição, aquela “ainda agora se divorciou e já anda com outro.” Como se as mulheres fossem obrigadas a um período de pousio. Durante uma temporada não se plantarão nabos nessa cona, eis o que deveria vir no Borda d'Água. Deixa a mulher em paz, interrompi eu, agricultura é vida.

Era um homem a desnovelar os segredos do cosmos ao balcão entre berros, pancadas e perguntas. Pediu marisco ao taberneiro só para ter o gostinho de escutar um delicioso ‘vai para o caralho mais o teu gosto requintado’. Antes disso havia estado em casa a homenagear o compasso, a descrever círculos em todas as divisões, pi, pi, caralho, clamava quando cumpria a volta.

E a bifana vem ou não vem, perguntava alguém furibundo, há horas que ando a mobilar as tripas a cerveja e tu, tasqueiro só patilhas, não me desenrascas nada para entreter os dentes.

Outra velha que não a outra, esta segunda velha não parecia de porcelana, porém não estava viva. O cão empalhado exibia o seu melhor ar de desconfiado. A perdiz está amalhada. O restolho devolve-nos um som de cinema a cada passo. Não há lebres a acordar para o espanto de quem foi passear ao mato com o fito de espairecer e foi abalroado com o facto de o mundo, que não se importa com nada do que é humano, ter mais vida que um colhão no auge.

A fauna do sítio era vasta e merecedora de descrição mais avultada. Com o porquinho no colo, o pastor novo-rico dotado com tiques de celebridade de redes sociais trouxe o porco directamente da pocilga para a pastelaria e não admite crítica, vi lá fora, logo faço também, o bêbedo, o qual empestou a visão com vídeos de Instagram viu há dias uma dondoca a passear o seu piruças aprumado numa mala e, para fazer um brilharete, transporta o seu mini bobi desleixado cujo pêlo nunca conheceu escova num saco plástico grande e transparente como quem transporta um peixinho dourado para casa mas antes atesta a pança de bagaço. Patinhas a dar a dar, lindo, turistas, zero, o que era um descanso para a alma. Cafés e bolos a preço de local. De seguida, acordei e dei uma volta.

 

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Roberto Gamito

07.01.24

A paixão é uma experiência cinética — um movimento que celebra um sem-número de apeadeiros por onde o calor passa a todo o vapor. Tanta coisa ficou por perguntar e outra tanta por responder; principiamos a abrandar, a pôr o mapa de lado, atiramos os santos pelas janelas do carro e enviamos piretes ao destino. Ao espaço e ao tempo deixamos as peles secas. O final está ali, à espreita, todo fome e mandíbulas. 

O artista pequenito começa a escalar, como quem não quer a coisa, pelo tornozelo da sua musa, vemo-lo a congeminar patifarias eufónicas, quer dizer, poemas feitos de fôlego de vidas desperdiçadas, vemo-lo, presumivelmente, destituído das máscaras do dia-a-dia, catapultamo-lo para o palco improvisado pelo olhar, o qual desceu pé ante pé pelo declive que liga o marasmo do quotidiano ao decote perfumado. Suspirou com vagar, parafraseando uma actriz de cinema. Dias ou meses mais tarde, desencarcerará desse instante palavras como beleza, bebedouro, energia, indizível. Ao rés desse episódio que não vingou no mundo, regressamos ao zero absoluto. Depois, ziguezagueamos até casa atirando o norte para trás das costas. 

Não me difames assim tão facilmente. Quando me vim, não sabia o que pensar do orgasmo. À primeira vista, era um território despovoado de palavras. À medida que a temperatura arrefecia, as palavras reclamaram o espaço quais ervas daninhas. Doravante parodiarão a Idade de Ouro. 

O poema sobre o orgasmo, lamentava-se o poeta, ninguém tinha interesse em ouvi-lo. No entanto, para escutar o orgasmo, não faltavam ouvintes. É muito sensível, não é? Ao humanizá-lo, ao ver nele, no orgasmo, prateleiras apinhadas de legendas, sufocamo-lo. Mas isso não é grave. O pior é não sabermos o que fazer com o tempo que nos resta. 

Durante muitos anos tinha sempre um livro onde me refugiar. Ignoro se sou eu que cresci, se são os livros que minguaram. Uma coisa é certa, durmo com o rabo de fora — e isso não é bom. Não é bom para mim, que me constipo, nem para a literatura, que não faz puto.

Tencionava replicar esse desconforto noutras coordenadas. Não tínhamos dinheiro, nem tínhamos fome. Víamo-nos uns aos outros como pipas resignadas onde a frustração fermentava longe dos olhares. Um dos meus maiores arrependimentos, diz o velho, é ter dito não ao Diabo; serviu-me de muito. 

Alguns fados, uma canção desasada e um homem depenado às voltas do microfone como quem procura o nome da musa debaixo da língua. 

 

Desconforto noutras coordenadas


Roberto Gamito

10.12.23

Tempos houve em que a criança da cidade, ao pronunciar-se acerca da proveniência do leite, respondia com a incompreendida deixa “vem da fábrica” e era prontamente alvo de um sem-fim de larachas e azedumes. Independentemente da corpulência ou da idade do catraio, a criatura em flor transformava-se num alvo indefeso dum circo apalhaçado, no qual o deboche vertiginoso dava mostras de incansabilidade.

O adulto, especializado em problemas desta estirpe, vinha em socorro da realidade e declarava: “o leite vem das tetas da vaca”. E mais: o adulto não se coibia de adornar a sua resposta com um acrescento já célebre: “actualmente, não sei o que é que as crianças aprendem na escola”. Não vou mentir, também eu, animal amigo da paz excepto nos dias de folga, engrossei o refrão da turba sem titubear. O adulto é um bicho que raramente perde a oportunidade de se mostrar superior aos demais. Mostrar-se conhecedor da origem do leite é uma oportunidade tão boa como outras, aliás, capaz de ombrear sem medos com outras questiúnculas, a saber, quem foi Newton e qual o seu legado, enfim, a altura ideal para exibir o crachá precário de homem inteligente. No entanto, o adulto pouco mais sabe sobre a jornada do leite que a sua origem. Sabe que o leite pinga da teta do bovino, sabe que sucedem vários processos de permeio, coisa que é incapaz de especificar sem se atrapalhar e sem fazer uma impecável figura de parvo, e sabe que essas gotas, mais tarde, hão-de parar no copo.
Aqui chegados, é preciso ter em conta que, se a criança não é grande espingarda em termos de raciocínio, o adulto, o qual, acreditando nos livros, também já foi criança, não é melhor, uma vez que já se esqueceu de tudo o que aprendeu em garoto. A criança pode não saber nada, no entanto, do outro lado da barricada, temos o adulto, alguém que salta de bitaite em bitaite, passando ao lado de qualquer coisa que se assemelhe à verdade.

Perante o perigo de perpetuar esta injustiça, tomei corajosamente a decisão de tirar as mãos da cabeça, que lá estavam com o fito de enfatizar o espanto, pô-las no bolso, para sublinhar que não há pressa, e encaminhá-las rumo à folha a fim de rabiscar o meu parecer de perito em assuntos aos quais ninguém parece passar cartão.

Dirijamo-nos ao fulcro da coisa: as crianças da cidade têm razão. O leite vem, actualmente, de fábricas. Quero pedir desculpa em nome de todos os adultos, comediantes, palhaços amadores e pessoas que se deixaram levar, qual cadáver sem personalidade, pela maré do escárnio. Se forem habitantes deste século, que nem é dos melhores em matéria de vistas, não vos terá passado despercebido o aparecimento de inéditas espécies de leite, nomeadamente leite de aveia e amêndoa.

Tal prova, ao contrário daquilo que inúmeros biólogos costumam dizer, gente que anda na ciência sem amor e com os olhos desfocados a pensar que o mundo é uma exposição de quadros abstratos, que os mamíferos ganharam. Dêem a coroa de todos os reinos, animal, vegetal, monera e restantes aos mamíferos. Já não constitui novidade para ninguém, os mamíferos ganharam uma reputação tal que até as amêndoas se alistaram no partido das mamas.
Como apreciador de mamas desde tenra idade, conhecedor da sua polivalência terapêutica, acolho com agrado o facto de as amêndoas terem feito implantes mamários; as mamas nunca são de mais. E, sem mais, o elogio pela delicadeza e a paciência de quem tem como ofício ordenhá-las.

Não obstante a satisfação que é verificar o avanço das mamas até sítios inesperados, urge lermos a situação à luz dos nossos dias. Será uma jogada de marketing ou o jugo do patriarcado a abater-se sobre as inocentes amêndoas que, a fim de continuarem relevantes nas redes sociais, precisam de arranjar mamas para exibir no Instagram e quejandos? Se for isso é triste, embora me faça rir. É o mundo que queremos deixar como herança aos nossos filhos? Um mundo que obriga a aveia, amêndoas e outras da mesma laia a tornarem-se mamíferos?
Como é que os vegetais e frutos que não aderiram à moda de virar mamífero reagem a esta situação? Tremo só de pensar na pressão a que devem estar sujeitas as novas amêndoas por parte das amêndoas mais conservadoras.
Enfim, só não fico mais doente porque bebo leite de vaca e este, felizmente, está pejado de antibióticos e medicamentos. Seja como for, os estúpidos putos da cidade estavam certos. O leite vem da fábrica. Foram, sem que o soubessem, profetas. Espero que um dia essas crianças, hoje talvez adultas (sei lá, há pessoas que se recusam a crescer), as quais, amarguradas e revoltadas, enveredaram pela via do crime ou do veganismo em virtude do trauma de terem sido tão violentamente gozadas. Desculpem, crianças, os adultos não sabem o que fazem.

 

(10 de Dezembro de 2019)

 

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Roberto Gamito

26.11.23

Na estante 
tornada móvel pelo sismo 
aonde vamos acomodar, lado a lado, 
as memórias carunchosas 
desta vida leiloada ao Diabo

Verso devoluto, nem canto, nem tão-pouco feras, 
somente sereias gagas e em princípio afónicas.
Prende-se o Ulisses ao mastro para nada, 
é sempre a mesma cantiga
de tão cansada não nos ilumina nem nos obscurece. 
Para estes lábios, que por estes dias alcançaram o deserto
segundo a rota do analfabetismo, efeito colateral da ausência 
que bom que houvesse tempo para soletrar 
estas e outras palavras rombas 

talvez, inspirados na morte, as limássemos
e déssemos à luz uma ninhada de gumes. 

Sobras de ave, um apelido sem a primeira sílaba, um mito a ganhar ares — nem sequer é piada — de Ícaro. Em todo o lado semeio a minha querida queda. 

Essa vasta cabeça desocupada 
viveiro de demónios por vir 
a simulação de recomeço 
irrefreável número circense 
com que entretenho os demónios.

Por que buracos e redes se escapam os vossos peixes? Este esquelético e camaleónico edifício de rancor a que muitos chamam humano é incapaz de hospedar sonhos e felicidade sem resmungar. 

Escrevo outro poema 
pela necessidade 
ou pelo vício de me libertar 
comparo-te à saída do inferno
aos nomes que a memória vai mesclando 
numa única quimera impronunciável. 

Bicho de um sem-fim de cabeças 
és um livro lançado ao fogo 
com o fito de o educar.

Esta luta entre a vontade de dormir e o café, que, com meros mililitros se opõe à minha vontade, o trabalho que se espraia durante horas e de seguida dias, qual nódoa ingovernável com tiques napoleónicos
tarefas que me devoram horas e a vida na mesma dentada — 
bizarro ritual onde me descubro quilométrico e celeiro de feras interiores.

O uivo que me animaliza e liberta do nome no mesmo fôlego. 
Uma ponte que vou soldando ao teu perfume. Um dia espero completá-la e regressar a esse dia em que nos conhecemos. 
A sentença da qual os animais fogem quando sonham, ao ar livre, com o matadouro. Bebo o meu reflexo do bebedouro como quem extingue a sede 
para que a morte se esqueça de mim. 

A mão destinada 
ao inventário de cacos 
a carne em condições 
de ir para o lixo. 

Tenho o cuidado de passar longe das tuas palavras, não vá ser contaminado com os teus atalhos. Tem paciência, neste reino mando eu. Repara bem: atrás de mim há uma pilha de regicidas. 

 

Pilha de regicidas


Roberto Gamito

17.11.23

Não entendo o festival de parangonas à volta dos escândalos políticos: corromper e ser corrompido são actividades que merecem remuneração — é trabalho. 

Ao trocar o modesto Peugeot 106 — não confundir com o opulento Peugeot 106, o qual passa pelas lombas com o vagar de uma princesa — pelos altos voos da corrupção, tudo isso patrocinado pela TAP, e só nos orgulha, dá-nos a conhecer a propensão para o deslize da malta que decidiu enterrar o dinheiro no tuning. Em faltando os recursos vindos de mãos sujas no entanto generosas, contentam-se em fabricar um avião caseiro segundo os altos padrões estéticos da Joana Vasconcelos após uma noite mal dormida. 

Eu, que me sinto mais ignorado que um parecer de um biólogo em altura de escavacar zonas protegidas, sabia, à semelhança do MEC, que o tomate ia acabar. Entrementes, raciona-se ketchup mais à esquerda numa batalha de guiões de fraca qualidade. Ao esburacar a estrada para o futuro, o nosso ex-primeiro ministro revelou o seu lado budista, obrigando os portugueses a concentrarem-se no presente.

Portugal, que nunca foi grande, mergulhou, graças à incerteza política, no mundo quântico. Cada pigarrear é uma bola de pêlo figurada — uma homenagem ao Gato de Schrödinger. Em termos mais provincianos, o político podia socorrer-se de uma verdade absoluta. As coisas pioram com o tempo. A culpa é dele, do Tempo, que é um espatifador omnipresente. 

António Costa fala em abstracto, eu respondo triângulo, círculo, Rothko, Playstation. O que leva ao delírio virgens, gamers e espelhos. 

Pessoas saltam da piada para a ética e de seguida para o plano legal. Aplaudo: eis um belo exemplo de parkour intelectual. 

Empatia, vocábulo que é pau para toda a obra, esteja ela parada ou a correr pelos corredores da burocracia, tornou-se ubíqua. Segundo o entendimento de pessoas precipitadamente entendidas no assunto, pedir desculpa humaniza o homem e o político. Pela lógica, Nuno Markl seria o mais humano de nós todos. Raciocínio ousado. Invejo os politólogos: a sua ingenuidade sobreviveu aos estudos e à vida adulta. Se no caso do Wally o desafio é encontrá-lo, na empatia o desafio é precisamente o contrário. Ofereço um jantar se não a encontrarem no discurso político. 

Noutras coordenadas, que é como quem diz, nos arredores do nosso fado, o grupelho chegano foi brindado com pontapés, empurrões, água, sumos. Em Portugal, chama-se a isto protesto aceso, em África ajuda humanitária. Se houvesse serpentinas, estaríamos no Carnaval de Loulé. 

 

operação influencer


Roberto Gamito

08.11.23

António Costa, ex-primeiro-ministro deste rectângulo desenhado a custo, ao ser derrubado por um comunicado com meia dúzia de linhas, se por um lado deixa a suspeita de simulação de falta, ao prestar homenagem sentida a Neymar, por outro, comprova a fragilidade que os médicos lhe apontavam há muito. O governo apresentava carências vitamínicas no seu discurso, a saber: carência de vitamina A, presente no olhar cada vez mais mortiço de Costa, e de vitamina D, visível no esqueleto que ia perdendo, aos poucos, a sua verticalidade face às crises que aparecem no país como cogumelos. E tudo isto é desculpável: reparem bem nos preços dos alimentos. 

Hoje temos de pensar duas vezes antes de atirar um tomate ao comediante: este tomate vai-me fazer falta na salada. De volta para o bolso, meu útil tomatinho.
Não faltam motivos para o arremesso do tomate. Assim que soou a demissão de Costa, os humoristas foram ao rubro, e, magicamente, apareceu mais um pão na mesa — directamente do inferno que nos espera. Os médicos, professores, jornalistas que se aguentem — melhorias, para já, só para os comediantes.

Ao sair deste reality show que alguns comentadores da queda chamam democracia, António Costa terá dito: “Esta é uma etapa da vida que se encerra e que eu encerro de cabeça erguida”. Daqui para a frente ganharei a vida a fazer presenças em discotecas. Um beijinho a todos os portugueses que votaram em mim. Infelizmente, não foi suficiente para me manter na casa.

Obviamente, a minha função de bobo não é compatível com qualquer suspeição que eu me contento com os factos. Seguem-se, por conseguinte, mais piadas.

Montenegro bebeu de um trago o chá de perpétua roxa e exclamou, num tom eleitoral, aquilo que eu costumo dizer quando uma mulher se despe à minha frente: Estou à altura da exigência deste momento. Vamos ver, diz a mulher…e o país. PCP rejeita as eleições, porém está pronto; Chega, que estará em festa até às próximas, juntamente com a Iniciativa Liberal e o Bloco de Esquerda tencionam plantar urnas em escolas, querem que o país vá a votos e, na mesma tarde, enterrar o ensino português, ao passo que o Livre pisca o olho à oportunidade, um tique que já lhe valeu uma cadeira. O PAN não se pronuncia, está a reflectir sobre a relação entre contagem de carneiros e economia adormecida. 

Num país tornado pátria dos epilépticos, onde já só sabemos estar em convulsão ou a espumar raivosamente, é maravilhoso que as próximas eleições se vejam elevadas a performance onde hienas e abutres populistas dançarão à volta da urna motivada por António Costa. Num país onde medram cleptomaníacos engravatados, é apressado afirmar que Costa deixou herança política. Não obstante a incerteza política, que é como a genérica, mas com mais gráficos, fomos atirados para o cenário de sempre, como se regressámos a mais uma temporada da nossa sitcom favorita, a qual dura desde o tempo da Operação Marquês…de Sade.

Distribuam-se pulseiras electrónicas por todos os portugueses. Presos a mais uma crise, já havia poucas, comenta o Zé Povinho sem força para levantar o braço.
Faça-se o devido elogio. A crise nunca nos abandonou, mesmo em momentos de crise, e é aí que se vêem os amigos.

O Mercado, qual TJI, já fez uma react à situação. Cá vai um trecho no qual o Mercado dialoga com o português típico.

Mercado: A notícia da demissão de António Costa obrigou-me a cair 3%.
Português: Como é cair 3%? Só sei cair 100%.
Mercado: É ficar um nadinha inclinado para a direita. 

Cientificamente falando, comparam-se quedas. A de Sócrates, que se arrasta na justiça por, alegadamente, se recusar a beber cicuta e a de António Costa. Todos os corpos caem à mesma aceleração; está bem, Galileu, mas não custa nada repetir a experiência atirando, desta vez, políticos do alto da Torre de Pisa. Feita a experiência, podemos chegar à inesperada conclusão que quanto mais à esquerda estiver o político, mais depressa cai.

Nada entra em vigor, nem futuro nem nada que faça sorrir o português médio, o qual tem um sentido de humor raro, porra, não se ri com crise nenhuma, seja ela política, económica ou da habitação, tudo isto nos entristece, tudo isto é fado, à excepção do IUC, que se mantém. Óptimas notícias: ainda não é desta que transformo o meu chaço num hostel para ratos. 

Nada pesa na consciência do nosso ex-primeiro, faz sentido, o hidrogénio e o lítio são dois dos três elementos mais leves da tabela periódica, dirá com voz fininha um químico versado em política nacional após inspirar Hélio.

Para já, mantém-se tudo igual, como das outras vezes. O fado mantém inalterado; só os fadistas se revezam.

 

Demissão de António Costa


Roberto Gamito

07.11.23

À sombra dessas décadas desperdiçadas, passo mal à fresca, sou abalroado pelas escolas fechadas por burocratas do passou-bem, escolas do pensamento entregues ao leilão do turismo, pela falta de professores e de paciência, pelas urgências capitaneadas pela burocracia musculada, que satiriza, qual Dioniso, deus da tragédia e da comédia e da insânia, a própria palavra urgência; mais: impressiono-me com a agilidade de pantera com que o refrão dos aflitos salta de greve em greve num tom de raiva enjaulada, não vá sair do tom e o mundo vá por aí abaixo rumo aos direitos humanos e conduza ao horror os tenores de bancada, sem que uma pincelada de cor alegre modifique este quadro em princípio económico mas na verdade de carne e osso, tudo isto ao rés da sucata do progresso, no topo do qual o elevador social brilha como uma memória de infância.
Os futuros pobres, ou, mais eufemisticamente, os desfavorecidos, (eufemismo sempre!, evitemos acordar os políticos e o povo do seu delírio colectivo) graças aos múltiplos cenários hipotéticos onde os vencedores não se revezam, terão mais opções para o acesso à sua tão desejada vida precária. Felizmente, só nos retiraram o futuro, o passado e o presente permanecem iguais. 

A expressão ‘não comas doces que te faz mal aos dentes’ foi substituída pela ‘não compres proteína que te faz mal à carteira’. Magnífico: a economia distribui dicas à la nutricionista de graça. Não há almoços grátis, no entanto, temos pratos vazios para todos. 

Os transportes hospitalares para fora do conselho ‘não te preocupes, vai ficar tudo bem’ demoram hoje 3 a 4 horas. Os antigos 45 minutos não davam para nada; depressa e bem não há quem. Esse tempo permite ao paciente uma decisão sem equívocos, um auto-exame minucioso após o qual sairá a conclusão: não quero continuar vivo. Poupa-se muita malta hospitalar com esta demora, comenta o coveiro especialista em vidas desperdiçadas; durante muito tempo andámos a desperdiçar recursos com gente que, bem vistas as coisas, volvidas umas horas com dor, só já pensa no fim. É desumano impingir a vida a quem deseja morrer. Como afiançam os antigos, o sofrimento ensina-nos muito, nomeadamente, que uma vida assim não é vida não é nada. 

As vantagens não ficam por aqui: ao demorarem mais a chegar do que um amor entre dois jovens de 20 anos, as ambulâncias podem servir, haja olho para o negócio, de carros funerários. Eis a minha modesta proposta para desentupir os hospitais: conduzir os pacientes directamente para o cemitério. E que belo funeral seria: pessoas de bata e luzes conferindo ao cenário um ar festivo de discoteca; espectáculo tremendo, de certeza que ia atrair vampiros de todas as épocas. No meu tempo não havia nada disto, comentaria o Drácula. Proponho a alteração de serviço de urgência para serviço de extrema-unção, uma vez que os doentes têm de esperar 45 minutos dentro da ambulância, o que constitui uma mais-valia, a espera fortalece o carácter. Ocupemos os lugares vazios deixados pelos médicos, os quais subiram aos degraus da audácia com o fito de bramir não às horas extra, por padres, mais baratuchos, movidos pelo combustível do Senhor, quais guias turísticos, hábeis em transformar a viagem até ao inferno uma experiência inesquecível. 

Este país só está bom para imortais. 

Num país que saiu torto do 25 do Abril, dava a ideia que ia sair grande e saiu marreco, em que os grevistas e os turistas entopem à vez as artérias das grandes cidades portuguesas, atropelando as musas e os poetas, para gáudio dos jornalistas que alardeiam tão desarmónico enfarte, pouco ou nada há de esperançoso por estes dias. 

O português politraumatizado pela falta de médicos, pela situação económica e pela perspectiva de que doravante é a pique, regressa ao armário do mito e enfarpela-se de Ícaro. Eu quero estar bonito, pensa o português, quando a queda vier.

Greve de médicos, greve de professores, greve de helicópteros, greve de cérebros, greve de ambulâncias, greve de bombeiros (1), o país em greve, o país tornado uma gigante sala de espera onde cada português se entretém a folhear o seu caderninho de privilégios, pejado de rabiscos em letra de médico. De olhos bem abertos, comenta: há qualquer coisa aqui que em tempos foi minha, mas porra, não percebo nada disto! 

Só a burocracia não emperra na merda deste país entregue aos necrófragos, gargalha uma hiena de laçarote. 

A culpa, além de ser dos médicos que se negam a ir além dos limites do trabalho suplementar e receber de braços abertos medidas que devoram as sobras da dignidade humana, (e dizê-lo sem rebuço como está plasmado nos jornais é já elevá-lo a piada, como que dizer que a culpa de a economia abrandar é em virtude da recusa de o Homem aceitar a escravidão), é a carência de intérpretes hábeis em passar as reivindicações dos médicos para uma língua que o governo perceba, e se possível apinhado de advérbios de modo, e quem diz médicos diz professores e por aí vai. Em suma, o governo cospe: temos uma proposta boa para esta malta de bata, mas só pode ser entregue em tranches infinitesimais durante os próximos trezentos anos. É a nossa melhor oferta: é pegar ou largar.

O político actual, qual empresário milionário que se pavoneia de Ferrari de vidro aberto e em câmara lenta, de forma a que se perceba que está a falar de como a crise, seja ela verdadeira ou ficcionada, é motivo para cortar nos salários e no pessoal, que as riquezas pessoais não se alimentam sozinhas, quando é a altura de falar de aumento salarial agarra-se às vírgulas e às décimas qual bebé assustado à mama da mãe. Isto há-de ter alguma beleza em alguns círculos artísticos.

Entendam isto de uma vez por todas: a greve não é uma performance, é a luta posta em grito no início manso, é um prefácio antes da violência. O mais triste disto tudo é que não haverá hospitais públicos para receber as vítimas desta guerra pelos direitos humanos. 

 

  1. Pela demora dos bombeiros, há gatos portugueses que, inspirados em vídeos lá de fora, subiram às árvores com vista a serem salvos logo de seguida e ainda lá estão a ganhar bigodes. Segundo o biógrafo desses gatos, há tarecos que perderam as vidas quase todas à espera e quando deram por ela estava a ver
    D. Sebastião fardado de bombeiro a sair do nevoeiro. Outros, mais impacientes, aproveitaram a boleia das andorinhas e foram conhecer Marrocos. Para trás ficou um bilhete no topo da árvore: “volto na Primavera, espero que no próximo ano alguém me tire daqui. Os meus mais sinceros ronrons”.

Pieter_Brueghel_the_Younger,_The_Battle_Between_Ca


Roberto Gamito

06.11.23

Não tenho credibilidade para falar de migração de cérebros, nem de gnus, nem tão-pouco de andorinhas, olhem para mim, durante esta pausa humanitária patrocinada pela barbárie, o último grito da hipocrisia antes de o Homem se finar, reparem bem em mim, pobre português de fato de treino puído pelo sedentarismo, sem vocação para o eufemismo, eu que dou um euro pela bica sem uma pinga de retaliação hábil em dar voz aos meus direitos. É pagar e calar e não falar nos direitos humanos. E ainda ter orgulho de ter sido roubado — não nos devemos agarrar a velhas ideias, actualizemo-nos, o roubo faz a economia andar.

O apetite do governo português por cérebro estrangeiro, iguaria de fazer crescer água na boca no canibal mais apolítico, faz as delícias do velho que treinou os maxilares noutra gastronomia, a da escassez. Qual é o engodo certo se o intuito é ludibriar o cérebro? Em tempos idos, adiantaríamos: pipi. Desgraçadamente, o pipi já não é pau para toda a obra —confidenciou-me um ex-bissexual, o que ofende e desprestigia os antigos cultores do pipi e a actual comunidade LGBTQI+.

Ambicionamos fixar miolo estrangeiro, pensa o ventríloquo do governo, uma vez que o do governo está em período sabático até tempo indeterminado, comunicou-me um médico. O miolo nacional, em havendo, uma vez que surgem ensaios por todo o lado que confirmam a sua extinção, reflecte em português e só isso constitui uma desvantagem irreparável. Não obstante as enxertias de termos lá de fora, os tais cuja função é adicionar um ar de contemporaneidade ao mesmo tempo que espatifam a gramática da frase, tornando-a balofa com muletas linguísticas importadas, crazy! Portugal, um país que não produz nada, nem muletas linguísticas. Só o fado pega de estaca nestas tristes terras estéreis. Se querem escavacar a fluidez do discurso, façam-no, mas com prata da casa. Não dou dez anos para o ‘basicamente’, ‘tipo’, ‘mas ya’ e a rainha actual das muletas, ‘imagina’, serem votadas ao esquecimento, abandonadas no sossegado estaleiro da quinquilharia vocabular. 

No futuro, seremos ingleses que adicionam um mero vocábulo português nas frases como quem preenche as quotas da inclusão.
Não nos percamos na amarga realidade. A apetecível cachola nómada, se quer continuar nómada, recusará sempre a fixação. Em suma, será sempre um animal inquieto, desassossegado, ou, se preferirem, o predilecto dos bichos carpinteiros. Numa economia de movimento, em que nada pode parar, caso contrário daríamos conta que o progresso não é senão a maior ilusão de todas, em que nada começa nem nada está, de facto, terminado, não favorece a criação de cérebro sedentário. 

Há cérebro a entrar e há cérebro a sair de Portugal. Como o cérebro mantém o obsoleto costume de se fazer acompanhar pelo resto do corpo, nada podemos comentar quanto ao acréscimo ou decréscimo de qualidade. 

Todavia não seria descabido criar um mercado de transferências durante o qual se comentaria as saídas e as entradas dos miolos com base no seu potencial. Este cérebro, vindo de Inglaterra, dar-nos-á a cura para o cancro; volvidos uns meses, está num banco de uma pastelaria da moda, a escrever um post motivacional para o seu blog; este, grande promessa do cringe mundial, proporcionar-nos-á toneladas de vídeos constrangedores; passadas três semanas já está a cumprir. Nem todos podem ser o Cristiano Ronaldo do pensamento. 

Não obstante os radicais pensadores, os quais afiançam “o cérebro é uma construção social”, basta reparar no sucesso dos YouTubers, é inegável que os números são impressionantes. Numa época em que o comentário ao corpo alheio é desaconselhado, e é assim que a língua murcha, reservamos o espanto e o comentário velhaco para números inesperadamente avantajados. Em 2022, dez mil e oitocentos nómadas digitais de carne e osso resolveram escolher o Porto como secretária em cima da qual vão dedilhar lucrativamente os seus portáteis — o que há-de enfurecer o português de classe médica, o qual, nem sentado nem de pé consegue enriquecer.

Outras seitas de pensamento menos radical garantem-nos:  “a dinastia do pensamento está prestes a acabar, logo o cérebro terá o fado do apêndice”. No máximo, será um bibelot que o homem transportará de um lado para o outro como homenagem a outros tempos. 

Se isto me tira o sono? Não, o motivo das olheiras é outro. Preocupo-me mais com a fixação de boa mama estrangeira e falta de incentivo a que a mama nacional se mantenha onde está, ou, respeitosamente, na minha vila. E mais: se os jovens, dotados de bons corpos esculpidos a ginásio e a proteínas da Prozis, com alegria para dar e vender no Onlyfans, ao irem em busca de melhores condições de vida no estrangeiro, deliciam autóctones de outros países enquanto o português fica refém de uma paisagem pobre em bom e inspirador decote — é isto que me tira o sono, cavalheiros. Espero que o governo português dê condições às mamas nacionais, e, em havendo folga orçamental, ao cérebro português — que nem são dos piores do mercado. 

 

Migração de cérebros nómadas


Roberto Gamito

05.11.23

Numa estrada desse país chamado vida, olho pelo retrovisor, de molde a passar o tempo e fintar os demónios, imagino algum engarrafamento, isto numa memória cultora de buracos; nomes, episódios onde o calor discursou numa afiada língua afinada, quedas ímpares, justas homenagens a Ícaro ou Satã, fracassos que, na altura, proporcionavam a novidade do abrandamento ou atrito. Os sonhos ainda não se haviam mudado para as terras da assimptota.
Não tivéssemos cortado as unhas, dava a ideia que os podíamos alcançar. Entrementes, o tempo cultivou o infinito entre nós e esses dias.

Na maioria das vezes, confundíamos amor com uma ida à loja de bugigangas. Só os apaixonados logram ficar com o papel de Duchamp. Numa embriaguez novinha em folha e de língua expedita, patetas de uma escola oblíqua cujos fôlegos se auxiliam a fim de legendar humoristicamente cada bagatela, ambos com um fervor dionisíaco. Concedo, eis o prelúdio do fogo. Nessas alturas em que o fumo era uma mensagem de mudança, estávamos no estaleiro do vulcão.

Graças à legenda, perdoem-me o frio engano de estar a ver a cena à distância, graças à paixão, o bibelot é elevado a arte onde sorrisos e olhares conspiram, revirando-o numa ala de museu, acessível tão-são a corpos conduzidos pelo singularíssimo lume em crescendo. Por esses dias, a aventura não necessitava de um grande romancista para ser escrita. Do sorriso à cama sem parar no stop; e sem recorrer a mapas.

Em cenários contíguos, ou noutras vidas, caso os universos paralelos ressuscitem os eus abortados que fomos semeando pelas cenas ebulientes que não deram em nada, sedentos que aconteça alguma coisa, de alguém hábil em pronunciar o nosso nome ontem pouco sonoro, uma médica autodidacta que, de bata e alma aberta, reabilite o coração fechado em copas, que um beijo nos desagrilhoe desta pose que herdámos de Prometeu e conceda ao fígado um horizonte mais esperançoso. Damos, por algum tempo, folga aos abutres, águias, ou corvos, dependendo dos mitos, o amor que já foi tudo, uma vez que, qual boato, é-lhe contado as Metamorfoses de Ovídio num sem-fim de boca-a-boca.

Essa gestão de encontros apontada em cima da braguilha enfunada operava na agenda a magia da multiplicação das horas. Tão fartos de palavras e tão desesperados por acção que já só desejamos ser desfigurados pela velocidade do tesão, que a fome do outro nos cale e não permita, nem por um segundo, diluir a cena, mas sim tornar a carne feita animal numa emboscada há muito orquestrada pelo inconsciente. Entramos inteiros na vida do outro, de tal forma que nos esquecemos de pôr um gravador na memória a documentar a cena. Daqui sairão uma série de quadros abstratos, que ora nos agigantam, ora nos apequenam.

Punha sempre o meu pénis à disposição. Ficava-se com a sensação que vivíamos dentro de um refrão alegre, que os passeios duravam uma dança, que o amor era uma grande canção que nos impelia à dança, mesmo nos piores momentos. Nessa idade, não damos pelo tempo a passar.

As horas ocupadas pela conversa nunca pareciam excessivas. Nessa altura, iria de gatas até ao fim do mundo se me garantisses que estarias à minha espera. Eras responsável pelo meu mundo, eu, pelo teu. Não fosse a imaginação e não me lembraria de nada desses dias, salvo o teu olhar e o meu coração a ganhar voz à medida que me aproximava do sítio que havíamos combinado.

Mudando abruptamente de faixa, elaborando uma manobra capaz de nos pôr a rezar, finalmente, pela vida, pondo-vos frente a frente com o passado, trazendo à tona os ângulos mortos, confidencio-vos que há um ponto a partir do qual cada gesto principia, de supetão, a pesar desmesuradamente — enferrujamos a meio de uma coreografia. Nem sequer nos ocorreu fotografar nada — éramos como dois leopardos das neves. Quiçá pairasse um receio que a fotografia, ao funcionar como intromissão nesse bailado improvisado pela paixão, quebrasse o encantamento. Sem provas, íamo-nos afundando numa lenda só nossa.

Às tantas foi isso que pôs termo a tudo — um disparo. Um disparo fotográfico de um biólogo de cidade quebrou a pose animalesca de dois bichos esfaimados, entretidos até então no cadáver minguante da paixão. Hoje, com pose desajeitada, e pouco digna para figurar nas fotos, sou marioneta atirada para um canto de um palco em ruínas. Uma marioneta a lamentar a sua verticalidade perdida.

Olhando novamente para trás, começo a duvidar de tudo. Sem nada a que me agarrar, sem provas, e conhecendo o lado charlatão da memória, principio a duvidar de tudo o que escrevi nestas linhas. Nada disto aconteceu senão noutro universo.

Presentemente, recorro a esse armazém quando necessito de peças para pôr a andar um poema, uma crónica, que é como quem diz, um Frankenstein feito de letras.

 

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