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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

19.02.21

Hesitante, saltitante, quase comicamente indeciso, por ser essa a natureza cambaleante de uma mão aflitíssima que se espraia na folha aspirando ao alívio. Tudo começa a partir de agora, declara um homem esperançoso nascido de geração espontânea. É preciso improvisar umas tangentes na folha para não emperrar. Separados do mundo, engaiolados em casa, os Homens engendram observações imbativelmente exóticas sobre a arquitectura de uma migalha. A pandemia como que nos obrigou a procurar mundos dentro de casa se quisermos prosseguir a senda das garatujas com o depósito da sanidade na reserva. Nomes que nos dão um empurrão, a saber: animais, leão, urso, pangolim, tubarão, alforreca. No fervilhar do poema, cada verso ameaça desdobrar-se num romance, numa nova vida. Ao especular, no alto da minha torre de marfim improvisada, feita de caixas e de entulho, no cume do meu celibato pandémico, sobre o futuro que nos coube, vou, sem surpresa, parar às fantasias onde o corpo desnudo aproveita as delícias de estar vivo.

Num dia bom, sou menino para enumerar todas as coordenadas onde me perdi durante a última década. Será possível escrever ao mesmo tempo que calcorreamos uma estrada de lâminas? Como esmagar o nevoeiro com uma linha? Para o melhor e para o pior, continuo a tentar imitar os pássaros canoros. O desejável seria ter tempo de sobra, passar os dias à espera de um pássaro estrangeiro e não me preocupar com nada a não ser a forma como a ave interrompe o silêncio. Rejeito, ignoro se com as palavras certas, o mito imperante de que o ruído conquistou todos os territórios deste século. Por ora, contentemo-nos com um rol esgazeado de projectos.

Rol de projectos, Roberto Gamito

 

 


Roberto Gamito

18.02.21

Tempos houve em que era submisso ao cume. A pandemia abriu-me os olhos para a impossibilidade de continuar com a escalada solitária. Na altura, o meu maior desejo era perder a pele nessa empresa, renascer como animal outro e vivaz. Projecto adiado, cabeça atafulhada de fantasmas ingovernáveis. Cada pergunta sem respostas ameaça desdobrar-se em guilhotinas. O que é que isso faz às ideias? Sem dar por isso, ultrapassamos esse sentimento de que somos alguém e metamorfoseamo-nos no expoente máximo da nova nulidade.
Ambiente envenenado, parca capacidade negocial, pelo que os demónios se regozijam ao rés da jugular. Poeta, animal de luz alimentando-se de biscates e cruzes quebradas. Não frequento nenhum círculo de Dante. Troquei os dias por grilhetas, os suspiros por mordaças, as asas por garrotes. Não encontro primavera nesse olhar. Aprendi a emudecer antes de tempo graças à escola da vertigem.

De resto, permaneço idêntico: enterro os cornos na folha, como se ensaiasse um mergulho de criança, sem jeito nem porquê, e não sem ironia ponho o umbiguinho no papel, como os outros, porém com pólvora. Vou-me alimentando desses eclipses, desses animais fugidios, desses… Resumidamente, falta-me pedalada para encontrar alegria seja onde for. De maneiras que sou incapaz de me abstrair do inferno. Idealmente, devia abortar o eu.

Creio que podíamos dividir os Homens entre os que compilam noites destas — trevas por esmiuçar, demónios por catalogar, nem que seja só para admirar — e os que, hipnotizados pelos paraísos artificiais, não o fazem. É superficial encarar o mundo apenas como um receptáculo de perfumes. Em tempos idos, fui numa viagem para ver se conseguia regatear o regresso. Seja como for, este espectáculo tresanda a morte.

 

Regater o regresso

 


Roberto Gamito

12.02.21

Palermas: cardume ou um viveiro deles. Imaginemos o que poderíamos resgatar da estupidez se houvesse possibilidade de sairmos dela. Idealizemos, se formos capazes, o perfil do bicho: mutante vanguardista, vento empenhado numa torrente de uivos. O departamento das virtudes abandonado, recentemente ocupado por uma quadrilha de vícios.
Trinta e seis partidas em falso. Continuo, como está bem de ver, por nascer. Memórias mornas esculpidas pelo desapego. Um punhado de areia escoante, o tesouro possível. A descrição de um corpo devorado pelo esquecimento. Quando sobreviver era uma novidade, saíamos mais fortes de cada batalha. O posfácio do eclipse. Canto ou dança, talvez seguido de queda. O palco orlado de chamadas, demónios emudecidos. A descrição do que passou pela cabeça de Deus quando puniu o Diabo. O amor: um território por desbravar. Os lumes catalogados por alturas, à cautela cifrados e embalados em verso e em prosa. Eu preciso de aprender a escrever, o resto aborrece-me, em cima de um chão pejado de cacos. Urge ser o vate faquir dançando sobre as sobras de uma vida quebrada. Comédia e tragédia mescladas na mesma coreografia de sangue, na plateia, tubarões de todas as eras.

Ser ao mesmo tempo faca e corte, chaga e ungento, sangue e cicatriz, preguiça e ira. Acordar um dia bem cedo, a uma hora em que não haja nem luz nem noite e enfurecer cada ponto para que nasçam universos inéditos.
E não acaba a paixão por ser assimilada pelo entulho do quotidiano? Monstro sacudido pelas definições divergentes que o tentam engaiolar. Será isso um Homem?
Mas não é a respiração justamente o testemunho da pugna com o vazio, com a morte? Calma, ainda não disse as minhas últimas palavras, nem tão-pouco as primeiras.

Não é que não aprecie uma certa comicidade na prosa, cuspir saraivadas de piadas para um alvo em movimento, enquanto o palco feito prateleira se verga com a minha dança feita canto.
A História do Homem: uma biblioteca lá para os lados do destino onde os livros foram substituídos por pássaros empalhados.

 

Trinte e seis partidas em falso, Roberto Gamito

 

 


Roberto Gamito

11.02.21

O estômago cantarola qual galo madrugador e irritadiço, como que perguntando: "mas és algum monge a jejuar?" Por esta altura — 13:30 — já deveria estar com o bucho apaziguado com paparoca da boa, contudo, a fim de manter viva a tradição de garatujar uma crónica diária, preciso de me manter sensivelmente desperto e escrever um punhadinho de linhas.
Vou explicar-me um nadinha melhor, na óptica de um sujeito propenso a ficar bochechudo e afavelmente roliço, o confinamento é uma província atreita à engorda. Quem, como eu, endeusa a comida em situações aflitivas, que é como quem diz, vê na comida um refúgio, isto é, uma morada à qual me socorro sem enguiço quando sou assolado por tempestades existenciais. No pináculo da angústia, vi-me agarrado a coisas que há muito não recorria, a saber: filipinos, batatas fritas do pacote e rebuçados. Grosso modo, decidi parar no apeadeiro do açúcar — ou como se designa na gíria, as merdas que fazem mal à saúde — antes de ingressar no território inescapável da depressão. Chucho os rebuçados como quem pede um desejo a um santo, distribuo dentadas numa generosa sandocha de presunto como quem passeia e esventra uma paisagem com os pés infatigáveis, sorvo coca-cola como um bebé americano que nasceu com o porte de um rinoceronte avançado, o qual, alapado à mãe, a suga como se fosse um cancro chorão.

Lá vamos levando a vida aos trambolhões, com a cabeça entre as orelhas, pontuando as desgraças com tiradas bem-humoradas. Por estes dias a felicidade está ausente, porém não podemos deixar de a postular e de a procurar. Resumidamente, nunca foi tão clamoroso o apelo de encher o cu com vista a afugentar momentaneamente a tristeza. Bem, vou confeccionar o almoço.

 

Estômago armado em galo, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

01.02.21

Histórias, fogo e verticalidade: eis o que o Homem necessita.
O confinamento põe em evidência a natureza excepcionalmente deslizante do Homem.
A divisão entre o fasto e o nefasto torna-se indiscernível. Tentamos a todo o custo preservar a ordem das coisas. Na verdade só permanecemos sãos por meio daquilo que ficcionamos. De facto, engolir o mundo tal como ele é neste momento seria uma operação arriscada, condenada ao fracasso.

O sacrifício da realidade palpável no cadinho alquímico da ficção nunca é o mistério inescrutável que se descreve habitualmente. O cerco traz com ele a urgência de criar. Urge legar aos vindouros o canto da verticalidade. Domesticamente, caso a magia não ceda pelas costuras, as fantasias legar-nos-ão uma margem de satisfação.

Descartada a carne, o Homem é um espírito que deve sempre responder ao mesmo tempo a duas exigências irreconciliáveis: não esquecer inteiramente o mundo exterior e nunca descurar o mundo interior. Surgem deste modo elementos de uma coreografia de salvação à qual habitualmente se dá o nome de arte. As forças não despendidas no grito, o qual afugentaria a réstia de esperança, são usadas na folha ou noutro suporte propenso a haver escoamento.
O gesto da mão é alheio ao sucesso ou à tragédia. Resume-se a isto: transforma o dragão, patrono do caos, numa casa, símbolo da ordem e refúgio. Eis o que procuro: encontrar casas em tudo aquilo que escrevo.

Se a violência grassa no interior, irei opor-me a ela por meio de poemas e danças. É preciso ingenuidade — ou estupidez — assim como um grito enorme transformado em obra para sobreviver ao mundo que nos coube em sorte.

 

Confinamento, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

29.01.21

Túnel de vento podcast, Roberto Gamito

 
Apeadeiros da conversa:
.Não saber andar na rua devido à pandemia.
.Elogio ao frango assado.
.Objectificar o outro.
.Estudioso do sexo.
.Compro o jornal para não ler.
.
O cume da impotência.
.Uma crítica ao podcast típico.
.E outras ninharias.
 
 
Podem escutá-lo no Soundcloud  ou nos sítios do costume. 
 


Roberto Gamito

27.01.21

O activista de sofá é, por assim dizer, um santo canonizado pelas redes sociais. A sua maior obra é uma compilação de tweets num tom estúpido-bélico em torno de um trend qualquer que bateu forte em 2019, graças ao qual é hoje figura de proa na arena da sarrafusca verbal. Onde o comum dos mortais vê uma indignação, o activista de sofá vê uma vaca de tetas avantajadas a precisar de ser ordenhada.

Se lhe pedem ajuda para algo, declara-se, jurando pela alma do filho que não tem, indisponível, alegando falta de tempo por estar, alegadamente, envolvido numa constelação de causas.
Nunca toma a dianteira numa acção. Afadiga-se com paleio importado, coisas que leu de viés com olhos remelentos e hoje, sem resquício de vergonha, assume-se como uma sumidade em mil e um assuntos. O Leonardo da Vinci das causas. Sou um Homem, nada do que é humano me é estranho, diria, se conhecesse Terêncio, escravo tornado comediante.
Amigalhaço da verdade, segundo o próprio. Embora compincha da paz, resvala sempre para o lado negro da força. Sempre que pode, deseja a morte a um humorista por este, veja-se bem a ousadia do bobo, ter escrito uma piada.
Citando Terêncio mais uma vez, a verdade gera o ódio.
À falta de melhor designação, contentemo-nos com esta: são os alunos mais prolixos da escola do ressentimento.

Se fazem um boa acção, amiúde por descuido, proclamam a façanha a alto e bom som. Habitualmente, pronunciam a palavra empatia dez mil vezes por dia, qual mantra.
Narcisos competentes, fanáticos do umbigocentrismo; dos outros não fazem nem ideia. Paladinos da literalidade; para eles, a metáfora não passa de um mito, a ironia, um empecilho, a comédia, um alvo a abater. Repudiam generalizações, a menos que lhes favoreçam as narrativas. Lêem os melhores autores, mas só quando estes batem a caçoleta, no resto dos dias devoram memes requentados e não reconhecem escritores, ensaístas e poetas. A sua ração literária é à base de legendas saloias que acompanham as mamalhudas no Instagram. São meninos para transformar qualquer diálogo numa província inabitável. Nas suas discursatas, fazem das vítimas gato-sapato se estas têm a intrepidez de os contradizer. No twitter, atiram comentários para o ar num tom dramático e vão colhendo fiéis para as suas fileiras. Dura pouco, dado que para o narciso o outro é apenas um entrave para a ego insultado.


Os desnorteados tiram notas para, chegada a altura, enlouquecerem como deve ser.

 

Activista de Sofá

 


Roberto Gamito

21.01.21

Tenho uma sorte, que é o meu físico, um físico de bisonte bisonho que engorda sem dificuldade. Em tempos normais, prescindia facilmente desse dom de ficar com a pança avantajada ao mínimo petisco, no entanto, em tempos de confinamento, dá-me jeito: é um reservatório infinito de desculpas para ficar alapado no sofá qual cadáver esfomeado. Volvidos uns dias fechado em casa tudo perde o sentido, desde a vida até às idas ao Tinder. Que razão há para ter o Tinder instalado? Nenhuma. A não ser que entendamos o Tinder como uma espécie de caça aos pokémons, pokémons com demasiado vocabulário.

Aliado ao tédio, a nosso pensamento desacreditará todas as crenças, dinamitará deuses, torná-los-á pequenos, babujará qualquer ideia sobre o suicídio num tal ecletismo de parvoíces que alguém poderá pensar, ao cruzar-se com esse raro espécime, que encontrou o poeta do fracasso.

Porém, perante certas coisas é preferível ficar mudo e de asas fechadas. Por mais esquartejado que esteja a criatura entediada pelo confinamento, mais vale deixá-la morrer. É deixar Osíris falecer desta vez.

E a turba que ocupava os dias a propagandear o lado positivo disto tudo? Já se calaram? Eram falsos positivos? Segundo eles, devemos fugir daquilo que nos magoa. Se algo é tóxico, afastamo-nos. É isso que tenho feito: afastei-me do mundo, que está tóxico. Pus um aviso na porta: “Mundo, não és bem-vindo”.

 

Mundo, não és bem-vindo

 


Roberto Gamito

20.01.21

Os primeiros dias de confinamento deixaram-me mentalmente extenuado. Já não pico o ponto no posto de trabalho do pensamento. Das duas, uma: ou trepanaram-me o cérebro enquanto estava a ver um daqueles programas da tarde que nos anestesia ou alcancei o último patamar de burrice.

Acabou-se tudo, ligações entre temas, entusiasmo galopante face a assuntos que nos insuflam cérebro e coração, genica para quebrar o casulo do marasmo. Para uma pessoa se dedicar à vida contemplativa enquanto estamos engaiolados é preciso ter vocação, e uma certa dose de alheamento, quer dizer, é preciso saber aborrecer-se com toda e qualquer merda e não passar cartão ao que o mundo nos sussurra. É impressionante como a aura de encanto que as séries e jogos e demais quinquilharias onde torramos a vida se desvanece assim que somos como que impossibilitados de sair à rua. Aquela árvore à frente de nossa casa, cujo nome desconhecemos, interessa-nos pela primeira vez em décadas. Passámos por ela milhares de vezes como se ela não existisse e hoje, do lado de dentro da gaiola, dávamos tudo para fruir da sua sombra. Seja para uma leitura, seja para repousar na sua sombra, qualquer plano nos parece hoje apetecível.

O leitor está a gozar de uma bela vista para a catástrofe. Não sou daquelas pessoas cheias de não-me-toques, embora a expressão tenha adquirido novas e perniciosas conotações graças à pandemia; pelo contrário, deleita-me o circo das pequenas coisas, a saber: a sombra de uma árvore, uma brisa de nos afagar a alma, pássaros a dar de graça o espectáculo da sua existência e um livro ou uma conversa interminável.

 

Os primeiros dias de confinamento

 

 

 

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