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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

10.01.22

De qualquer perspectiva imparcial, tenha ou não existido com poderes dignos de figurar nos filmes da Marvel, Jesus é reconhecido por crentes e incréus como tipo porreiro. Jesus, como mensageiro do amor, tornou-se uma figura excepcionalmente popular e hoje é o ponta-de-lança da religião com mais adeptos.

Versátil, pronto a curar leprosos e erigir pequenos e grandes Lázaros de ataúdes, Cristo foi amealhando simpatias graças à cinética dos alegados milagres. Nos bastidores desses episódios — e isso fá-lo palpavelmente humano — foi enceleirando detractores mais ou menos subtis.

Para citar Lotário di Segni, isto é, o Papa Inocêncio III, todos os seres humanos são Job. É uma bela ponte entre o filho de Deus e o Homem. Dou-me conta da ousadia. Discorremos sobre Jesus, como se não houvesse séculos a separar-nos. Eis-me retratista do quase impossível.

Ingressarmos nas questões de Deus constitui um laboratório no qual, a partir de uma vaga inquietude, se destilam várias espécies de gritos. Para lá de todos os precipícios, encontra-se uma vontade primitiva de dar nome a essa luz que não cessa.
A meio da queda, com o auxílio in extremis do Altíssimo, o Homem adquire asas que o afastam, por momentos, da morte. Até quando?, questiona o mais impaciente.

Segundo o crente pacificado com o silêncio, encontrarmo-nos com Deus é um relaxamento face à ideia de morte. Para lá de toda a trivialidade, para lá de todas as cacofonias que enformam o nosso parlapié de futuro defunto, há uma migalha com ânsias de germinar, hábil em iluminar o nosso humilde caminho.

Em jeito de súmula, o Homem aproxima-se de Deus porque procura domesticar o que lhe foge. O problema não reside em acreditar ou não acreditar, mas sim na consequência nefasta do narcisismo galopante. Nas palavras de Peter Sloterdijk, ao deixar de pôr Deus acima de todas as coisas, o Homem ingénuo ou ganancioso, semelhantemente a Satã, escolhe-se a si mesmo como o seu objecto de eleição. E eis a queda.

Abandonemos a esfera da queda, quase não exige esforço desmontar a pose ficticiamente vertical do homem contemporâneo. Depois de Deus, a verticalidade é uma fabricação suspeita, engendrada por hipócritas que se pavoneiam em frente a uma turba de ingénuos.

Detenhamo-nos por um momento em histórias paralelas, uma das quais engendradas por Judeus. Há uma história apócrifa — que é como quem diz, rumor — segundo a qual Jesus é filho de um soldado chamado Pantera — belo nome —, resultando daí que Maria era uma espécie de prostituta disponível nas pausas dos eventos bélicos.

Só há duas formas de estar na vida, dois estilos diametralmente opostos: 1) passar por tudo, 2) prescindir de tudo.

O jejum do coração e do cérebro, quanto a mim, não me parece escolha saudável. Afastarmo-nos cinicamente das coisas não me parece a coreografia certa — é antes uma arma romba da sapiência contemporânea. O cínico olímpico cai na esparrela de florear a seguinte ideia: tudo é outra coisa, tudo o que vejo é pretexto para outra coisa. Têm predilecção por polemizar tudo aquilo que tocam. Afadigam-se na teorização da jornada e do cerco. Fazem de tudo para não dar um passo em frente. O cinismo, de facto, é porta-voz da ruína interior. Entronizam-se venenos a fim de dar consistência ao nosso desnorte, eis a criatividade pós-queda.

A palavra, doença ou terapia tartamudeada por outro, encontra-se hoje numa situação frágil. Tanto pode repelir como aproximar dois estrangeiros. Gaguejada não pode constituir promessa alguma, ao passo que se vier categórica é-nos suspeita.

A paixão, o amor, amizade, por assim dizer, nessas províncias de difícil acesso ao homem contemporâneo, carecem de itinerários fixos. Falar é importante, abrirmos o coração é indispensável, pôr o miolo em canção é necessário. Tudo isto para andar às voltas do dito Agostiniano: “A recompensa da confissão é que quem diz a verdade chega à verdade.” Longe do domínio senhorial do umbigo, habitar essa verdade é passar a dor a limpo, purificá-la e fazer as pazes com o passado.

Mas estaremos nós a pensar bem? Deixarmo-nos inundar pelas palavras de Deus conduzir-nos-á a um sítio melhor? A tensão intelectual associada à resposta começa a desaparecer, dado que não pode ser articulada em palavras. Mas regressemos a Jesus, será ele um representante imaculado do Amor?

Com efeito, Jesus foi alvo, ao longo das eras, de sucessivos retoques enaltecedores claramente tendenciosos. Fizemo-lo crescer em luz com os restos da realidade e exagerámo-lo como quem não tem escapatória senão a hipérbole.

Jesus. (João 2:4)
“O que tem isso que ver contigo, mulher?”, deixa com a qual cortou a palavra à Mãe, Maria, nas bodas de Caná.
Não me parece que tenha ficado muito bem na fotografia.

De um ponto de vista embriagador, uma das questões mais decisivas, presente no livro de Lucas. Outra vez Jesus:
“Julgais que vim para estabelecer a paz na terra?”

E por último, não me recordo o livro:
“Se alguém vem ter comigo e não odeia o seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos, as suas irmãs e até a sua própria vida, não consegue ser meu discípulo.”
Dá ideia de que o amor ficou para segundo plano.

Neste ponto, a distância temporal é mãe de todas as interpretações. O Homem lá foi tentando suavizar a postura de Jesus com contratextos, porém a dúvida persiste. Em todo o caso, há sempre a hipótese de nos tornarmos outro. Com ou sem auxílio divino, a metamorfose continua alcançável.
“Em toda a parte se encontra um Jordão.”

Deus dissecado pelo depois, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

28.12.21

Eis o nosso assassino. De estatura mediana, era de compleição delgada, a tender para o magro mas sem ferir as vistas, braços capazes de carregar uma saca de cimento sem lamúrias, naturalmente musculado, que é como quem diz, músculos criados no campo sem recorrer a rações cheias de químicos, sem carnes adicionais que, em ocasiões de disparos fotográficos, nos envergonham a bom envergonhar. Todavia, esta não é a descrição do assassino. O nosso personagem era um tipo normal, tão normal que é impossível decompô-lo em atributos sem adormecer.

Sob outros aspectos, porém, a sua aparência tinha algo de encantador. Refiro-me, pois, ao inventário mental. Aquela cabecinha era um hotel de demónios e fantasmas. Pelo menos é assim que o vejo e não há tempo para o confirmar — por ora contentemo-nos com a especulação. Dir-se-ia, admitiu a minha confiável informadora, a qual estava vestida de enguia, que naquelas veias corria sangue vermelho. E — ousadia da parte dela— o sangue de um verdadeiro assassino e poeta. De que modo as veias deste sujeito conseguiam albergar tanto sangue permanece ainda hoje um mistério.

Não daria o meu patrocínio a tão absurda informadora, confidenciam-me. Em boa verdade, tenho de labutar com o que tenho, não há orçamento para contratar melhor. Se tivesse meios, adquiria os serviços de uma informadora enfarpelada de hiena.

Embora me contradiga um pouco, felizmente estamos no século XXI em que a contradição é o prato do dia, urge dar-vos um lamiré sobre o nosso assassino. A cara dele foi o que o conduziu a essa vida. De facto, a face, que a turba via como velhaca apesar de ser uma jóia de moço, contribuiu desde tenra idade para o seu êxito junto de alguns dos zaragateiros mais famosos da aldeia. E de soco em soco lá traçou o seu caminho. Humilde, principiou pelo soco, avançou com a medicinal cadeira nas costas, passando pela cabeçada carinhosa. Um dia foi acometido por uma epifania, qual pessoa devotada à sua arte, e disse: “Se quero continuar a progredir na carreira de zaragateiro, não posso continuar a distribuir papo-seco a qualquer macaco, preciso, como se diz hoje, de expandir o meu portefólio de velhacarias. Vou começar a matar pessoas." Os três ou quatro gatos-pingados esmurrados minutos antes concordaram com a sua decisão e de seguida foram para casa inventariar nódoas negras.

Ao contrário do que costuma suceder quando abrimos negócio, o nosso assassino, vamos chamá-lo Irineu, teve a ajuda do seu melhor amigo — o qual se ofereceu para morrer às suas mãos.

Sobre a história que correu, na altura, sobre as relações de ambos, e que, verdadeira ou inventada, nunca foi oficialmente desmentida, nada tenho a acrescentar de extraordinário. Há quem afiance — atentem bem nas más-línguas —, que não passou de um ajuste de contas. Poucos são os que vêem no sucedido um acto de verdadeira amizade, do género: “Precisas de ganhar confiança na tua arte, terá dito a vítima, ofereço-me, assim como assim já não faço nada de jeito com a minha vida”.

Entretanto, os minutos perderam a noção do tempo e passam a horas, as horas a dias, e a areia vai escorrendo da ampulheta a um ritmo estonteante, tanto que nos mijamos nas cuecas — sim, envelhecemos. Caramba, não avancemos já para o fim; recuemos para idades menos provectas.

Como qualquer pessoa metida em negócios, o assassino tinha as suas preocupações. Começamos com sonhos e acabamos com dívidas.
As dívidas atormentavam-no, o lucro que retirava dos assassínios não dava para cobrir as despesas. Irineu não era menino para desanimar. Porém não há forma de fugir à realidade. Com efeito, o dinheiro começa a escassear e principiou a cortar — perdoem-me a brincadeira — na qualidade das facas. Era vê-lo, de madrugada, colado à televisão a babar-se ante os anúncios de facas supostamente fantásticas. Nunca vou poder exercer a minha profissão na sua plenitude. Ai, que triste fado o meu, lamentava-se o nosso assassino sem posses.

A qualidade das suas ferramentas diminuíra a ponto de começar a assassinar por prestações. Por sorte, a vítima não era alheia à situação financeira de alguém nascido num berço de palha. Ao ver o assassino desolado, consolava-o: “Não chores, camarada, já me fizeste um corte no pescoço, o mais difícil está feito, amanhã vens cá e acabas o trabalho.”

Evidentemente, havia quem não quisesse morrer — gente dessa há em todo o lado. Não morrer, comentava Irineu, acarreta uma certa má vontade e, consequentemente, um maior dispêndio de energia e tempo. Veja lá se percebe o meu lado, sou assassino, não sou palestrante, o meu ofício não é convencer pessoas a ir desta para melhor. O que quer que eu lhe diga, ripostava a eventual vítima, não acho jeito ser assassinado. Pronto, vai obrigar-me a nomear as vantagens de permanecer morto. Convença-me, tenho todo o tempo do mundo, retruca a vítima, tem o senhor, comenta Irineu, mas eu não tenho, ainda queria matar outro desgraçado antes do jantar.

Irineu não logrou acompanhar o mundo. Os preços das facas aumentaram (já para não falar da mania de muscular os pescoços) e ele, que matava por amor à arte, já assassinava — ou melhor, tentava — com faquinhas de plástico, daquelas que levamos para o piquenique. De respeitado carniceiro passou a anedota. Ali vai o ex-assassino, gritava a turba com uma toalha de piquenique a servir de turbante.

Foram tempos difíceis, começou a aceitar trabalhinhos, ele que antes dizimava uns e outros sem receber algum. Na melhor das hipóteses, rapinava o que havia na carteira. O seu tesouro? Uma arrecadação apinhada de caixas de sapatos nas quais abundavam talões multibanco. Seja como for, teve de se fazer à vida.

Certo dia, encarregue de apertar o gasganete a um gajo qualquer, foi dar com o sacana dentro de um poço. Sentiu que a morte se adiantara, que lhe andava a retirar o pão da boca. Pode ser que dê, pensou Irineu. Com efeito, era indispensável que o cadáver fosse içado cuidadosamente do poço para que não raspasse nas paredes do poço. Esfoliei-o até à morte, eis uma frase que estava fora de questão. Teria de dar um jeito à cara verde — lá teria de recorrer à maquilhagem da filha mais nova. Uma vez levada a cabo esta precaução preliminar, apresentou o corpo a quem era de direito de molde a receber os 50 paus — sim, neste país não se dá valor aos artistas. Ah, mas este não é o Carlos. Foda-se, disse Irineu num tom de tenor. Cansado de tantas dificuldades, desistiu do nobre ramo do assassinato e abriu uma rulote de bifanas, negócio que gere com êxito estrondoso desde então. Ao que parece, as pessoas estão mais dispostas a comer bifanas que a morrer.

assassino sem posses

 


Roberto Gamito

11.12.21

a verticalidade — a ficção suprema

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a verticalidade — a ficção suprema
é sempre a mesma estranheza estremunhada
a interpretação soluçante e com isso a condenação

Continua aqui: Medium

 

este poema não é a música a que tu chamas casa

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este poema não é a música a que tu chamas casa
é um bárbaro ganhando estatura entre o amor e a morte
é o cavalo-súmula de todas as corridas escarnecendo das apostas

Continua aqui: Medium

 


Roberto Gamito

03.12.21

Em tempos sombrios, o homem é engodado por pirilampos oportunistas. Melhor dizendo, o cadáver de Deus é reaproveitado como marioneta-farol. No caso de sermos ingénuos, diremos: a luz é sempre uma luz. No caso de sermos cínicos, questionar-nos-emos sobre quem comanda a luz.

O Homem é o cadáver esquisito coligido por várias gerações. Tem uma parte subornável, uma parte risível, uma parte medrosa, uma parte heróica, uma parte fluída, uma parte rígida, uma parte animalesca, uma parte cínica, uma parte romântica. Cada uma dessas partes tem a cabeça a prémio: não são apenas frágeis, flutuantes, províncias que podem ser atacadas, destruídas ou convertidas noutras partes.

Nenhuma lei determina o fim da sede de sangue nem tão-pouco extingue o animal que habita em cada um de nós. A lei é, a par de Deus, a maior ficção criada pelo Homem. Segundo Nietzsche, a lei exprime o triunfo dos fortes sobre os fracos. Como vivemos num século em que o Homem é inábil em mastigar verdades mais duras, talvez seja útil amolecer a frase anterior: a aplicação da lei exprime o triunfo dos fortes sobre os fracos. Se assim é, a justiça é uma ficção. Se a lei é incapaz de reparar injustiças, torna-se uma espécie de doença colectiva, pois a doença, nas palavras Deleuze, separa-me também daquilo que posso. É uma selva injusta: há animais livres a matar animais acorrentados.

Em O Homem que era Quinta-Feira, Chesterton, admirável prosador e ironista, chegou primeiro que o século XXI à encruzilhada desarmante: “Não acreditam que o crime criou o castigo, mas sim que o castigo criou o crime”.

A lei é o açaime educado que, ao ser plantada no mundo dos Homens, permite um certo grau estabilidade com o outro, permite a comunicação e o comércio e, no limite, agrilhoa o animal interior — por outras palavras, adia a sede de sangue.
A cobardia ou o cansaço permitem que a nova lei assente arraiais.
A lei torna-se assim, quase perversamente, uma área controlada, como um infantário, um dique que impede a expressão torrencial da força.

A lei é um tranquilizante, mais ou menos potente, disparado contra a fera que é o Homem. O seu fito é acalmar o nosso instinto violento que domina as relações entre seres humanos.
Todavia não tem um efeito duradoiro. O que a lei faz é adiar e não eliminar o instinto animalesco. As doses aumentam, porém a resistência do animal ao tranquilizante também. Até que chega o dia em que o animal apouca o efeito do tranquilizante e a lei se esfuma.

A lei tem como antepassado e herdeiro a violência. A lei é uma pausa entre duas carnificinas. É um recobrar de forças, um afiar de lâminas, é um afinar da barbárie.
O desejo de paz não é suficientemente grande para suplantar a sede de sangue.
A lei não opera no Homem uma conversão moral. Apenas torna o bárbaro mais paciente. Acreditar que a lei consegue domar a lâmina é uma narrativa ilusória.

No entanto, nem nos períodos de paz a violência é abolida.

Ortopedia moral, mais uma vez Foucault, isto é, endireitar o que é violento, porém endireitar é sempre uma operação violenta. O endireita não é senão um algoz de folga. Por ora contenta-se em provocar a dor no outro. Se obtivéssemos a caixa negra destes últimos anos, veríamos a ortopedia moral como ginásio onde espezinhamos os Homens e, indo mais longe, uma violência educada. Uma versão mais subtil da pena de morte que, nas palavras de Gonçalo M. Tavares, é um assassinato educado. Em suma, a lei é um viveiro de perversões subtis, até chegar o dia em que tudo se torna mais claro.

Crime e Castigo, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

09.07.21

Túnel de Vento é simultaneamente um podcast e um erro.

Há improviso, humor, lamirés sobre literatura e poesia e, de longe em longe, javardice de elevado quilate.

De Roberto Gamito e suas vozes.

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túnel de vento Roberto Gamito

Ep 467 - São Judas, Humor e a Pose Consumista, Génio e Medíocre

Apeadeiros da conversa:

.Amestrar paredes.
.As duas Ceias.
.O abismo entre a palavra e a acção.
.Cabana da felicidade.
.David e Golias.
.Sócrates teve a vida facilitada.
.Falar o bem não é sinónimo de praticar o bem.
.São Judas.
.Olhar múltiplo e uma nesga de realidade.
.Humor, a burla, a pose consumista.
.O Génio e o Medíocre.

 

Podem escutar-me o episódio e seguir-me aqui:

 


Roberto Gamito

09.07.21

Corpo em revolução, figura parva ou geométrica. Redondo ou quadrado, carne para uso, descarte ou disparate. De quanta obsolescência serão dignas as minhas frases? Linhas que aos demais não assentam, nem à justa nem à larga, nem em prosa nem tão-pouco em verso. Lá vão elas rumo aos bastidores da tratantada com as tetas bem apertadas de molde a não desarmonizarem a eufonia, as sílabas, acotovelando-se no meio do texto íngreme e a raiar o inútil, as sílabas, o mundo enquanto lugar de caça e fuga, as sílabas.

Poder ser que seja um acto louco, mas ajo de acordo com o pulsar do texto: eis a minha crença mais arreigada. Já de rastos ou a meio da queda, sintonizava a vida com o respirar da literatura. Éramos, cada um à sua maneira, dois animais aflitos a braços com o fim.

Que mal pode haver em querer escrever e carecer de começo de língua inédita? Ao rés da folha, desenteso ao fitar o inferno do mesmo. Outrora, desentendíamo-nos ao primeiro verso, poeta e leitor dois bichos singularizados pelo desnorte. Um poema perfeito é uma paixão recém-chegada. Salvo o calor e suas múltiplas acepções, não entendemos peva. De joelhos, aquiescemos face à língua ígnea e estrangeira.

Choquei alguns acólitos do gelo, alguns paladinos de coração emperrado, alguns cruzadinhos de espada romba. Morte ou vida é-me igual ao litro, grito ao sacristão. Doravante o sino dobrará sem porquê.

Amor. Terei eu pé mesmo se o tema teimar em aprofundar-se ao ser desnovelado na língua em solavancos tépidos? Nas minhas costas, o mundo.

Disparate: emendar o que quer que seja quando nada é certo. Enumerem, caso haja tempo para futilidades, os sábios que se cruzaram convosco até então. O animal amolece, nada duro e durável. Tento entender a trajectória dos projécteis adiados.

A sedutora 4x4, adaptada a qualquer terreno, fez mais uma vítima. Retirei peso ao seu negrume, confesso-me.
Ao ruminar o que terá acontecido longe do radar das minhas pupilas, as hormonas decidiram entrar-me pela prosa adentro, qual rusga, insuflando-me os verbos outrora flácidos.

Amor ou morte? A ganância tomou conta das mãos indecisas. Nem ouro nem poesia. Temi as consequências, o retorno a um início primevo, desta vez de mãos vazias e afónicas.

Imaginava-me de pés e mãos atados, encimado por um carnaval de flechas desejosas de se abaterem sobre mim. Voar é um exercício vão quando o céu principia a dar mostras de querer ruir.

A carne, a eterna suspeita. De um lado os idólatras, do outro, os iconoclastas. Sou um entre a multidão de anónimos. Espero pacientemente a minha vez de arder na pira. Palavras demasiado concludentes. Em tempos idos, fui ensinado a deixar o mundo de fora da língua. Não digas isto, isto e isto. Então falo do quê?, respondia. Ninguém me sabia responder, o gato finalmente comera-a.

O rei dos oportunistas palmilhava a estrada do sucesso com a sua corte de sequazes que, espante-se, massajava-lhe os nobres tintins sem descanso.

Ninguém me ensinou a afogar — tudo o que ignoro aprendi sozinho.
Respirar para tão pouco. Cá estamos, camaradas náufragos, neste mar vindimado pelo medo.

Desisto da minha condição de estátua. Inicio a dança, faço as pazes com o movimento. Não é comum depararmo-nos com uma magia consumada que não aproveite o momento para mamar da teta dos holofotes.

Tardava o confronto com o tempo. Entretanto, ia-se entretendo a lutar contra espantalhos e pardais. Se quiseres ser homem-estátua, pára, se continuares assim, a andar feito parvo, não vais a lado nenhum.

Não temo a morte, tenho um ataúde à sua medida à sua espera em cada esquina do texto. Como afiançam os místicos, não é o Homem que entra no templo, é o templo que entra no Homem.

Terei de me assumir inábil para lidar com o amor. Já o tive nas mãos mas…
Volta para a direita, volta para esquerda, hesitação, simulo a volta para a direita e volto para a esquerda. Um tiquetaque obnóxio, uma tentativa de abrir o cofre da alma e pôr o Homem — o que poderia ter sido se a plenitude fosse alcançável — diante do Tempo vertebrado para avaliação.

Uma vez descalçada a bota que é confeccionar o primeiro verso, o poema anda sozinho, quase sem ajuda. As sílabas que colho da mão suada: frutos em botão.

Constato que o hábito recente deixara o monge inacabado.
Ao contrário do que nos foi ensinado nas redes sociais, é impossível reduzir o Homem a uma característica. Resumir um ser humano a uma palavra é um acto criminoso, sem direito a redenção, ó cruzadinhos da empatia.

O que é afinal o Homem? Animal exemplar, domesticado em dias de festa — sexo! —, de pronto solto no seu habitat penumbroso apinhado de olhos inquisidores.

A luz fraqueja diante das palavras maiores. Os anjos não se pronunciam. Esta manhã, graças ao nervosismo face à situação que me poderia pôr em cheque — e logo eu que nunca tive queda para rei —, aprendi, enquanto remexia as nádegas na cadeira, o samba da sala de espera — dança que, quanto a mim, merecia outro prestígio.

Suspeitem de asas tão franzinas. Estou certo de já ter passado por esta ideia. Por sorte, a cabeça será outra e a frase, resultante da observação, sairá noutros moldes. Não me questionem se tal constitui um ganho. Sim, distraio-me com o que estiver mais à mão.

Fugir ao medo? Com o calor que está? Não sejas estúpido. Aninha-te aqui e vamos lá ver se há material para erigir uma história de amor. Finda a fornicação, posso ocupar-me de outros assuntos. Não houvesse período refractário e o homem nunca teria inventado a burocracia. Sem período refractário não haveria Kafka, pensei eu após a ejaculação.

Não sei formular um pedido de socorro sem parecer uma causa perdida. Não sei pedir ajuda sem que me dêem extrema-unção.

O passado é fértil. Tanto é uma barragem contra fantasmas como se transmuda num viveiro deles.

A desconfiança tomou conta das minhas definições. Tento fintar o cinismo, todavia ele arranja constantemente forma de entrar a pés juntos na frase. Combatê-lo com ironia é engrandecê-lo. As armas para nos defendermos dele ou estão extintas ou ainda não foram inventadas.

As cabeças dos gigantes derrotados. Tê-las à cabeceira, sob a forma de rosário, é, a espaços, reconfortante.
À parte isso, sou, incontestavelmente, farinha do mesmo saco. Porém, ao estar em contacto com os meus semelhantes, fui impelido rumo à singularização. Não me peçam mais explicações, não estão em idade de compreender a minha jornada.

A abstracção de decantar a música cantada ao coração numa noite como nenhuma outra. Prosa atafulhada de inseguranças, perífrases atrás de perífrases, o nada mais copioso possível.

Mas…não vim ao mundo com o fito de moer palavras adultas e diluí-las em frases mansas, de pacote. A língua selvagem descansa. Ao entrar em casa, penduro-a, por fim, não na folha, mas no cabide, como coisa que só faça sentido ser usada na rua.

Peso infinito sobre os ombros. Já disse ao médico uma ou duas vezes. Não há meio do teste de ADN chegar, não me espantava nada que fosse filho de Atlas. Que vida é esta afinal? Carregar o cosmos às costas — façanha ao alcance de tão poucos — e suplicar ajuda às sanguessugas para que me cocem os tomates. O gigante mirra a cada súplica. Dentro de pouco tempo poderá ser derrubado por qualquer um: eis o destino dos grandes.

Tenho os dias pretéritos como reféns na memória. Sinto que levei a cabo um crime imperdoável que não cessa de engrossar.

Na folha, dou as voltas que o mundo não deu. Cada um foi para seu lado; um permanece no tabuleiro, o outro, comido.

Martelei-lhe a carne, conta a mulher A à mulher B, mas nem por isso ficou mais tenro — continuou, aliás, duríssimo. Mistério que intrigava todos os talhantes com que se cruzara.

Poeta: Planeio cada pormenor como quem arquitecta uma catedral.
Escrever ajuda-nos a exercitar a mão, que é por onde a humanidade abre o leque dos mundos possíveis.

O meu marido deixou de me procurar, comentou a mulher à amiga. Cessaram as buscas, fui dada como morta. E agora? O que faço eu à minha vida?

Para muitos, a vida é andar em manada, de mamada em mamada, um tudo ou nada de quatro ou de joelhos.

Este lugar, que assumiríamos meu, será, postumamente, ocupado por um sismo.

Corpo em revolução, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

07.07.21

António Careca levou a cabo uma proeza alto lá com ela. Segundo reza as gordas do jornal, escorraçou com um pontapé bem metido nas nalgas o Caído-Mor, o Senhor Satã, o qual replicou degrau a degrau a sua célebre queda. Escapou por um triz ao elogio do vulgo, o visado acanhava — sempre acanhou — os bajuladores. Os demónios menores caíram-lhe em cima como lobos esfomeados. Em vez de o matar, desfecho que o aliviaria, obrigaram-no, então, a vestir-se com um oleado verde e amarelo, isolando-o cromaticamente do resto do mundo. As redes sociais, blindadas que estão ao pensamento, não souberam como reagir a tal acontecimento. Assim enfarpelado, o homem cumpriu o seu destino de fazer-nos rir.

É uma criatura submissa, entre o homem e o cão, pacata e inofensiva, cuja arte lhe chega, no máximo, para coçar os tomates em dias de palestra. Ao que parece, é insuficiente se o fito for fundar uma vanguarda.

A modéstia impede-me de revelar os maiores cumes entre os estúpidos. Todavia uma coisa vos digo, a competição nunca esteve tão renhida. Não é fácil deixar um legado neste campo.

O árbitro de comportamentos interrompia momentos tensos como se a vida dos outros fosse um filme dirigido por ele. Movido por um fervor religioso, o figurão eclesiástico das redes comunicava às pessoas como deviam viver a sua vida. Ninguém diz nada, esse juiz de meia-tigela é o orgulho do Homem, a menina dos olhos do século XXI. Todos fingem concordar, perpetuando assim a farsa. Mais burros não ficamos, pensavam eles.

O seu nome vem à baila de vez em quando, fazendo o soalho estalar com o sapateado da sua grandeza, é um nome demasiado grande para ser menosprezado pelo círculo de medíocres calejados. Corre o boato que a conversa só é conversa quando o seu nome é chamado ao barulho.

Homens sazonalmente verticais tentam passar por escritores. Estão a braços com uma língua que não é a deles, espremem-na até à última gota, mal dá para um copo, quanto mais para uma obra.

À míngua de espectáculos e demandas dignas de figurar em currículos de heróis, ocupam os dias a apadrinhar guilhotinas. As redes sociais são o lar, como alguém há-de postular um dia, de algozes enfezados. Incapazes de ver sangue, arranjaram um ardil destinado a provocar a morte à distância.

Oh, K., receio bem que o senhor seja demasiado hilariante para este século. Amanhã falamos, primeiro é necessário seduzir o coração do castelo.

À excepção do linchamento digital, somos burocratas até ao tutano. Burocratizamos o coração, o sexo e o mais. A picha e a cona traumatizados, acoitados em cima da pilha de papéis. E que alívio é abrirmos a porta à morte e saltar pela janela do quinto andar.
Os suicidas dariam a vida para poder ver as feições da morte ao perceber a fífia do Homem.
Os génios do século XXI ocupam um lugar muito importante na História, e é extremamente árdua a tarefa de os descrever — são papagaios uns dos outros.

Mais uma corrente literária, mais uma ninhada de papagaios.
À medida que envelhecem, os Homens vêem com mais nitidez o discurso do seu reflexo. Olha como estás acabado, meu animal esfrangalhado, comenta o reflexo alojado no espelho.

Recuso-me a ser ludibriado por uma fatia de nada, por mais apetitosa que se me afigure. Logo que os víveres começarem a ser desmentidos pelos sábios, os suicídios vão subir em flecha.

Esquece a verticalidade, se quiseres prosperar no teu ofício, e é por estas dicas que os aspirantes a homenzinhos de valor vendem a alma ao diabo, agacha-te e reza a tudo o que não te for familiar. Pudesse eu ao menos usar um faca nos dentes — sucessora da rosa no tango —, a fim de fazer boa figura na dança das cadeiras. Regicídio, deicídio, não importa. Fui contratado pelo destino para trabalhar, que é como quem diz, colher cabeças dos arbustos penumbrosos.

Não há ninguém capaz de puxar fogo ao século? Estes anos apinhados de escritores de prosa desdentada é incapaz de deixar marca. Tanta carne à espera de ser mordida.

Se apreciares o meu poema, sou menina de te abrir as pernas. Manjar silábico, digno de um não-sei-das-quantas. A cavalo dado não se lhe olha o dente e ficamos assim, cada um com o seu quinhão. A tão desejada aprovação, emprestar a rata por tuta-e-meia, dar minutos de voo ao vergalho, o costume, réchauffés.

Se pudesse fazer aquilo que quero, e o meu caminho fosse exequível, não restariam deuses nem demónios para contar a História. No entanto, é útil editar o pensamento antes de o verbalizar, enfatizá-lo com prosa hipócrita, elevar o paralítico das artes aos píncaros, tudo comportamentos com provas dadas, os quais fazem com que nós sejamos populares quando rodeados de uma matilha a salivar de aprovação. Para brilhar à mesa não é preciso suar o miolo, basta dizer aquilo que os demais ambicionam ouvir.

Quando cumpridas as várias salvas de elogios, aí sim, podem começar a pavonear-se. A vossa grandeza fictícia entrará sem atrito nessa atmosfera carregada de empáfia. Hipnotizados, os anões julgar-se-ão gigantes. Inimigos, nem vos passa pela cabeça a verdadeira estatura do Homem.

E eis que prossegue o artista nas andas da publicidade, papando elogios qual parasita, saracoteando-se com o pedigree dos iluminados. Atrás dele, uma comitiva de carraças, em cima, uma ou outra pulga.

Mas está tudo mal para ti? Nada disso, sou como uma criança que brinca na praia de pilinha ao léu. Tudo me alegra, tudo capta a minha atenção.

Ninhada de papagaios, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

05.07.21

Kant designa o gracejo — a piada — como luxo das cabeças.   

Na piada, como refere Byung-Chul Han, a linguagem entrega-se ao jogo. Ao privarmos a comédia desse lado lúdico, afunilamo-la, aproximamo-la de uma linguagem informativa. Tornamo-la utilitária. Aos poucos fomo-nos esquecendo que a piada é uma arena onde a linguagem busca o sem sentido, o absurdo, o qual se acoita sob o verniz das miragens incumbidas de nos embriagar.    

Ao tornar-se informativa, como escreveu Byung-Chul Han, a piada trabalha em vez de jogar. Em suma, vergou-se. Uma arte de joelhos não é arte.  

A par da poesia, o humor é uma insurreição contra o mundo e no limite contra ele próprio. 

É um desempoeirar de palavras, um promover de novos encontros, um devolvê-las à rua da embriaguez para que possam circular sem os ditames da produção. No limite, a piada aspira à não utilidade. No limite, a piada não responde a nenhum senhor, não é escrava de ninguém.  

A piada é (ou era) uma espécie de ritual de esmagamento do ego. A possibilidade de sermos mais estúpidos do que somos. Eis uma aberração para a sociedade narcotizada pelo ego.    

Como isso seria um desperdício em termos de produção e como o narcisismo colectivo não vê com bons olhos tal manifestação de inutilidade, a piada selvagem, distante da informação, encontra-se à beira da extinção. Ao aproximar-se da informação, a piada chega aos ouvidos do público já cansada. A informação segue uma lógica aditiva. E…e…e…   

Piadas perecíveis, que apodrecem de um dia para o outro. Eis o que temos presentemente.

O ‘ou’ está fora da equação, tal podia constituir um retrocesso, o maior pecado numa era de produção vertiginosa.   

Na prática, a piada actual começa a morrer no momento em que é proferida, carece da vitalidade de um gracejo arisco, o qual, segundo me contaram, vem ao mundo graças ao jogo e, em calhando, há-de colonizar os discursos de quem a escutou.

Mais que a comédia ou o humor, a poesia eleva esse jogo da linguagem ao limite. Deixou de ser lida. Num mundo cego pelo sentido imediato ela não tem lugar. Segue-se a comédia.

A piada é o luxo das cabeças, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

05.07.21

Houve um período graúdo durante o qual se achou que o humor possuía o condão de retirar o gume às situações. O humorista faz parte da comitiva dos Homens que chegam depois, os retardatários. Um cronista peculiar da tragédia. Enquanto uns exaltam os mortos e outros os ocultam, o humorista diz: Espera lá! Não me digam que estes bandalhos tiveram o desplante de morrer. Logo hoje que me apetecia ser feliz.   

E nesse “espera lá!” face à morte, o único acontecimento sem segundas versões, o comediante despoja o Homem do medo. Nesse momento a faca deixou de cortar. Tal é o mérito momentâneo da comédia. Convém não enveredar pela senda do delírio e postular parolices como o humor salva. O humor amortece um golpe, o gume da faca rapidamente retoma o seu lugar. O que não faltam aí são oportunidades de apanhar no lombo. Enquanto guarda-costas, a comédia deixa um bocado a desejar. Aplaca meia dúzia de golpes e de seguida põe-se a narrar a cena de pancadaria, argumentando que descobriu a sua verdadeira vocação.  

Antes de nos tornamos fanáticos de certas ideias mais rebuscadas, é vital não esquecer a pergunta formulada por Rosenstock-Huessy: Não estará a linguagem ao serviço do momento?   

Seja concisa ou rombuda, a linguagem é um fragmento, ficará sempre algo por dizer. Haverá sempre lugar para subentendidos entre quem manda e quem recebeu a ordem.   

O humor é conciso; o homem actual é rombudo. São inconciliáveis. O medo de ficar algo por dizer obriga o Homem a narrar minuciosamente cada gesto, cada movimento do pensamento, a justificar cada respiração e a desculpar-se por cada palavra. Resultado: dizer demasiado adia a acção, oblitera a tensão.  

Em todo o caso, a sua missão está votada ao fracasso. Por mais detalhada que seja a sua narração nunca será capaz de dizer tudo. Chegará o dia em que até o resumo será desaconselhado.  

As palavras certas terão de aparecer, caso contrário haverá problemas. Palavras como patrocinadores. Quanto mais rombuda é a linguagem, mais diluímos o fogo. Se não queima, não é comédia. 

Há um traço comum presente em quem levou a sátira ou o humor de forma incomparavelmente séria. A desistência após perceber que os predicados da comédia não passam de ficções. Kraus, à cabeça.   

A comédia combateu bravamente durante milénios, chegou a hora de arrumar a trouxa e descansar.

 

Comédia Mutilada, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

30.04.21

Neste catálogo de laracheadores pós-modernos, há pouco ou nada que mereça atenção de um olhar mais exigente.
A comédia passeia-se manca pelas frases, a pedir desculpa, em posições nada abonatórias para gente que se autodenomina séria, ora de cócoras ora de cu para o ar, comunicando a sua dor com exuberante espalhafato enquanto guincha qual esquizofrénico o seu génio afonicamente, para gáudio do público semisurdo ávido de um não sei quê, que, no desdobrar do número com ares de comédia, viu assim o seu ego afagado. O tempo dos grandes rasgos já lá vai. O tempo em que a voz tinha o poder de causar um abalo sísmico afigura-se-me, visto à nossa luz, matéria de lendas e mitos.

Acabaram-se os peregrinos, na antiga e talvez verdadeira acepção da palavra, os eremitas do deserto, que procuravam, sozinhos, o seu Deus, o vagababundo, o flâneur. A nossa época é um viveiro de turistas, jogadores e putedo. Eis o catálogo da sociedade, eis o catálogo dos bobos. Desculpem o exagero, o putedo não tem nada que ver com isto, numa sociedade polida não há putedo propriamente dito, não há comércio sexual às escâncaras. Quem sou eu para denegrir o bordel, um complexo habitacional susceptível de atrair "gente de fora", o qual auxilia com alegrias várias e abundantes, haja dinheiro para isso, a economia local.

Ainda como achega: hoje existe uma métrica exigida pela culpa, pelo medo, pelo politicamente correcto, pela visão consumista com a qual abordamos as coisas, pela forma turística de fitar o mundo, pesam-se as sílabas das piadas, quer seja pelo possível dano, quer pelos ditames da literalidade; as piadas são plasmadas com o mínimo de veneno possível, o conteúdo é relegado para segundo plano, é preciso é haver espalhafato e holofotes a dar conta da ocorrência. Uma contradição em termos, se pensar fosse a nova moda. A nenhuma frase é permitido explodir em várias direcções, ser rodopiante, contradizer-se, ser um nada à procura de ser algo. Embeiçados que estamos pela informação, a comédia perdeu a capacidade de ser mágica. De ir de um sítio A para um sítio B com estrondo.

Esta passeata pelo panorama, como direi, risivelmente humorístico que vivenciamos presentemente, como está bem de ver, é, desculpem-me o eufemismo, uma valente merda. E não me estou a referir à passeata em si.
Aqui entra, todo janota e cheio de ginga a personagem de que vos quero falar, José Sesinando. O primeiro contacto que tive com este senhor, ou melhor com a maestria dos dedinhos deste menino do humor, foi, salvo erro, num livro. Sublinhe-se a graçola, num esgar típico de youtuber, com careta à Malucos do Riso 2.0, que é para ter a certeza que perceberam. Foi há uns apitos de tempo que me apareceu, qual cometa, olha o menino a usar expressões de críticos literários a quem falta carne vocabular para descrever o flagrantemente novo, este senhor. O primeiro encontro, ou semiencontro, aconteceu numa crónica de Abel Barros Batista, senhor que tão bem preambula a "obra perfeitamente incompleta", de José Sesinando, recentemente editada pela Tinta da China. Dele, antes do contacto com este canhenho, só consegui ler algumas frases avulsas, algumas fagulhas humorísticas que fui coleccionando em textos alheios. Procurei a obra ântuma durante algum tempo em bibliotecas, em livrarias, em alfarrabistas e em bancas de merceeiro mas, como é meu apanágio, fracassei esplendidamente como gente crescida. Descansei quando, há anos, 3 ou 4 ou coisa assim, li que havia intenção de reunir a obra de Sesinando por parte dessa editora.

Ora, José Sesinando é aquilo que se pode chamar...uma pessoa, que além de ser pessoa, é um filho de Laurence Sterne. Se acreditarmos em Deus, tem pelo menos três pais.
Sesinando só precisa de um mísero pentelho para fazer a frase dançar. Onde os outros estacam por escassez de meios, Sesinando baila madura e doidamente. Do pai Sterne herdou a sabedoria de intuir que para se falar de alguma coisa podemos ir por veredas marginais e, se for preciso, nem tocar realmente no assunto. De Deus herdou a habilidade de parir milagres. Um valente pirete literário às formas convencionais de vistoriar as coisas. Dos poetas malditos, aprendemos que podemos ser mais humanos a falar de inumanidade do que a falar de humanidade, é preciso é haver mãozinha para isso.

Muito mais haveria a palrar sobre Sesinando, e, como Sterne, tentei, através de uma coreografia de tangentes, passar-vos a vontade de dançar que se apossa de mim ao ler este grande escritor de humor. O que importa nos livros é a vontade com que ficamos para fazer algo após a sua leitura. Este livro, ou esta reunião de livros, tipo bíblia, cumpre eximiamente a sua tarefa. Obrigado, José Sesinando. Sei que estás morto, mas o livro só me chegou agora, por isso espero que me perdoes o agradecimento impontual. Obrigado*.

*Perdoa-me a escassez de notas de rodapé.
 

José Sesinando, Roberto Gamito

 

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