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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

23.06.21

Escrevo, à maneira póstuma, sem recear ninguém.
Só fora dos ecrãs é que a vida é vida. Uns fogem, outros desviam-se, consentindo a sedução por parte das sereias do escapismo, enquanto outros, com nomes à espera de serem insuflados pela posteridade, esperam, sentados numa rua deserta, o tsunami das dúvidas.

A maioria dos amputados sofrem daquilo a que medicina chama “membro fantasma”. Lançar o boato de que o Homem do século XXI, o qual foi degolado pela velocidade, padece de cérebro fantasma e ver de camarote o século incendiar-se. O poeta maldito como uma espécie de Nero clandestino.

Diante da montanha aplanada graças ao dinamite da mediocridade, o poeta comenta: “Cume, fazes-me uma falta incalculável. Espero ter estado à tua altura.” Não te subestimes”, diz o sopé em tom de gracejo.

Trocar as pausas para o tabaco por pausas para a comoção.

O silêncio é mais experiente que o mais genial dos Homens. A ideia que hoje formulas, a qual se pavoneia desmembrada na cabeça, saltando de sinapse em sinapse à espera de uma mutação que lhe dê forma, já foi escutada por ele. O silêncio já escutou tudo. O que é novo para o Homem é antigo para o silêncio.

O epitáfio do suicida é a sua própria queda. Naufraga à vontade, o farol foi desactivado. Há frases que são consequência da queda, outras da redenção. Porém a maioria são tentativas vãs de cartografar o nevoeiro. Eis-me mágico doidivanas a retirar da cartola informe gritos, mitos, hidras e heróis.

Entrem e saiam calados da casa do Senhor. Não proponham personagens ao criador, não tentem interferir na história.

Se soubesse que a queda era tão boa nunca teria aprendido a voar, cogita Lúcifer. Doravante o Homem já não toma parte do diálogo. Somos cinzas adiadas nas mãos do fogo.

Não. Uma síntese célere de despojamento. Mais tarde ou mais cedo aquele que for capaz de o pronunciar será o mais rebelde dos Homens. O não enquanto pedra na engrenagem na máquina do progresso. Notícia num século que não lembra ao Diabo: Homem apanha prisão perpétua por ter dito não.

Suspender a visão e lucidez, abdicar da jornada e do cerco, liquidar o texto, as margens e as notas de rodapé dos vindouros simulando a dança da destruição de Shiva. Rir diante do incêndio da memória.

Não basta sublinhares o óbvio para te evidenciares, digo. O século XXI ri-se. Nem só de ecos se fazem as décadas.
A crítica ao eco é quase outro eco. A trecho final da trajectória da humanidade enquanto luta de papagaios.

Não fites o quadro a menos que te fira os olhos. Regressar de um quadro que nos esmaga é como enfrentar um sol e não cegar.
Que arte terá visto Homero? Que quadro, escultura ou poema o terá esmagado a ponto de o cegar? E se as suas duas epopeias não senão um relato desse encontro?

Não reponho a água na jarra, prefiro apressar o definhamento da flor. Identifico-me com o seu murchar. A água, no caso da flor retirada do seu meio, é um paliativo. A flor merece sofrer.

Numa selva de fauna luxuriante, a abarrotar de estímulos, o faro fica preguiçoso. É preciso aprender a caçar no deserto. Aí é preciso inventar as presas para nos mantermos vivos.

Deixem-me ser o mais claro que se pode ser nestas condições: as minhas estratégias de capturar aquele que gostaria de ser fracassaram. Daí em diante as incompatibilidades aumentaram, virei costas ao mundo e fechei-me dentro do meu eremitério privado. Encasulei-me no interior de um pêssego quilométrico. Sou o caroço duro de um mundo que há-de singrar após o meu último suspiro.

Só dar atenção àquilo que cega. Mas não basta olhares para o sol, é necessário vasculhar o mundo de uma ponta à outra à cata de estrelas insuspeitas e terrenas.

É impossível um deus morrer se as carpideiras endeusam essa morte.

Uma província de espectros, sem ninguém para tocar. Andar com as mãos atrás das costas, quiçá atadas, como os velhos. Eis a pandemia. O mundo assombrado.

“Acabe-se com as citações”, disseram os estudantes radicais de Frankfurt. Desculpem, puseram-se a jeito, não escrevo para agradar Ninguém.
Mas já cá que estamos, nas frutuosas paisagens da ecolalia, citemos Canetti: “Ele refugiou-se em Deus. Aí é onde mais gosta de sentir medo”. Isso foi antes d’Ele morrer ou depois? Suponhamos o seguinte cenário, Deus, mudado em cachalote branco, ocupado por gerações e gerações de homens que procuram o santuário onde o seu grito possa ser ouvido. Homem, o qual foi feito à imagem de Deus, unido ao criador (em virtude da morte minúsculo) pela podridão.

O artista confessa ao psicólogo a sua capacidade de exteriorizar o seu mundo interior, porém receia que não haja espaço para tantos planetas. Resta-lhe o voto de silêncio.

Deus está embriagado com a miséria. Fiquem em casa, é mais sensato. Se Ele vos encontra, mata-vos com a conversa mais maçadora de sempre.

Século XXX. À excepção do Homem e de um punhado de animais úteis para o estômago do ser desumano, tudo se extinguiu. Foram anos de muito tumulto para os biólogos. Hoje é comum vê-los camuflados nos arbustos da cidade a documentar a vida de um ser humano anónimo. Calem-se, sussurra o biólogo, está ali um animal raro, o poeta. Mergulhado na escrita, nada nele está noutro sítio. A indústria da compressão de arquivos inspirar-se-á na poesia. A ciência de ser tudo em pouco espaço acabará por florescer, eis o prognóstico do biólogo palavroso.

Procuramos na arte uma espécie de judo metafísico. Quando a vida vem abrutalhada e cheia de pressas, há um meio de a atirar ao chão. Virar do avesso quem nos quer tombar. O artista franzino serve-se da força da vida para a atirar ao chão. A vida com os costados no cimento e o franzino a celebrar a vitória que alguns julgaram inverosímil. Não podemos deixar de sorrir quando vemos o gigante estatelado no chão, o gigante vencido. Sentimo-nos uma espécie de gato das botas. Tudo muito bonito, mas será possível aplicar o judo à morte, a qual vem lá de longe a anunciar-se com uma fúria de mongol? Será a morte o limite do judo?
Peço desculpa pelo incómodo, chamem-me sedentário, mas prefiro adiar esse último confronto. Nunca se sabe quando é que uma nova técnica me vem parar à mão.

 

Judo aplicado à morte, Roberto Gamito

 

 


Roberto Gamito

27.05.21

Que é feito do desgosto amoroso já sublimado? Eis que restam, ilegíveis, as cinzas de muitos arraiais de despedida. Um homem sem valor facturado no espectáculo da carnificina. Por aqui permanecemos ingénuos, quais cães recém-vadios rondando a presa. Antes da despedida inescapável, uma ou duas frases memoráveis.

A obra podia começar por aí, todavia carecemos de tempo para a encorpar em vários volumes. A morte, apesar de perceber como ninguém o valor da arte, não vai em cantigas.

Por fora homens, por dentro abutres ocultando o jejum.
De joelhos, uns metros antes da pira, estudamos o chão sem canhenho que nos guie até às raízes da salvação.

O que é feito do passo antes apetecido? Quem diria que a fome é susceptível de evaporar. Outrora sapos de anca frenética
saltando de cama em cama
e nelas exprimimos as cruzes
para de seguida as incendiar.

A cada piso o diagnóstico perde adjectivos, ornamentos. Na descida às catacumbas, a prosa transfigura-se em poesia. Tudo se torna flagrantemente claro.

Agora, sobre um chão de promessas quebradas, sobre os estilhaços dos caminhos não percorridos, sobre as carcaças daqueles que fomos sendo ao longo da vida, futuro mártir dançando num piso de mártires pretéritos. Narciso louco e colérico bailando na casa de espelhos em ruínas.

Alumiados pelas mãos em brasa, as quais foram durante muito tempo guardiãs de uma chama mínima, blindando a esperança das ameaças exteriores, opondo à tempestade, o canto íngreme dos náufragos, o cadáver dos nossos dias mais memoráveis.

Já à beira do fim, escutamos ao longe o mundo em uníssono, o marulhar das ondas, o crepitar dos escaravelhos espezinhados, as árvores ganhando voz graças ao vento, o estalar de um osso que deu tudo à bailarina, o canto de cisne do bácoro que recebeu a navalhada no bucho, as últimas palavras do poeta, o barulhinho de uma compra registada, um obrigado a cavalo de um ‘vai-te embora”, um amo-te rasgado por um rugido, o regougar de um raposa de fábula, o grito lancinante de Dido. De seguida, adivinhamos o perfume certo no seio de um exército de cheiros.
Assim que deslindamos a senda que nos conduz ao Tempo Perdido, alcança-nos o golpe fatal.

 

Abutres ocultando o jejum, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

06.05.21

Eu era a nota de rodapé respirando em letra miúda em romance alheio. Na grande tômbola do destino, fui amamentado a horas certas e sombrias pelo desnorte durante décadas. Entretanto, fui giro para algumas, recto para alguns, obtuso para os demais. Pautei a minha vida de forma a escorraçar os ângulos mortos da minha língua, ao passo que tu, pobre leitor de dedo nervoso no gatilho da interpretação, só te embeiças pelo teu magro reflexo. Não obstante, como que abençoamos a nossa ração de promessas quebradas. Não fosse a cólera a singularizar o homem e seríamos fotocópias uns dos outros.

Ícaro está morto, a queda está viva. É-se amado em qualquer lugar, mas primeiro é preciso aprender a mentir. O carinho bateu em retirada procurando guarida no guião, o canto, mais assustadiço, recuou rumo às províncias animalescas. Urdiu-se um mundo em letras garrafais para gáudio dos míopes.
O cérebro apodreceu de certezas. Fogachos de um númen a gastar os últimos cartuchos, idêntico ao dia em que renunciaste à tua luz. Para saber falar da vida é preciso passar uma temporada como carrasco. O resto são lérias que nos contam para que possamos dormir sem pesadelos.

O personagem fala da necessidade de se conhecer. Que imbecilidade. Sofro mortes umas a seguir às outras, nada do que é desumano me é estranho. Não caminhamos para nada de definitivo. Provavelmente é preferível atermo-nos ao silêncio e à imobilidade. Já não há nada que o caminho nos possa oferecer. Toda a desgraça brota do homem que se ausenta da sua pose de estátua. Gárgula insatisfeita semeia o caos onde ontem havia serenidade.

Ao sabor dos tiros ocasionais, os quais não nos matam nem nos ferem, eu cubro o maior leque possível de movimentos de fuga. A dança posta a nu, coreografada pela morte. A toda a hora se falha, a toda a hora se recomeça. Trata-se de uma verdade inabalável.

Um pouco disto que vi nos filmes, um pouco do discurso da celebridade, uma indignação temperada de forma a parecer justa; vida para uns, circo para outros.

Pudesse eu ser um palhaço no lugar do funâmbulo e apaixonar-me pelas alturas a cada passo dado em direcção à morte. Todo o sopé foi debulhado pelo ruído. Eu sou quem se despede da povoação para arriscar a minha vida no fio da navalha.

Com o olho aberto para o tráfego divino, catalogo os anjos que sobem e descem, os que saem do Céu em direcção ao Inferno e os, mais improvável, que partem do Inferno com o fito de conquistar o Céu.

Deixei as asas hoje carcomidas pelo pó fechadas nos poemas abortados. Apesar disso não me afastei completamente da ideia de Homem: fantasio com as minhas utopias, doutrino migalhas e fantasmas. Cansando-me das trajectórias puídas das redes sociais, as quais, apinhadas de evangelistas de pacotilha, espumam de fórmulas, espremi o meu coração com uma miríade de mãos. Bebi-lhe o sumo e o sangue e, recobrando a energia, afastei a ideia do Homem bom da minha cabeça. Ainda chamarei a isto uma vitória.

Amputei as asas, obriguei-me a descobrir a minha forma de voar.
Entrementes, sacudirei o pó das muitas mortes que conquistei. Critiquem agora a minha jornada, ó fulanos benzidos pelos bispos do eco.

A morte
ontem palavra
hoje calafrio
amanhã certeza.

 

Ícaro está morto, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

03.05.21

Sanatório e num salto tanatório. A notícia da minha morte fez-me sentir logo melhor. Leigos alheados do trigo. Precisávamos de um período para incubar um novo mundo, para refrescar o miolo que havia dado tudo no passo anterior da magia. Quer dizer, uma sinapse que se infiltrasse no cérebro como um relâmpago e curto-circuitasse a constelação das convenções que nos agrilhoa os movimentos.

Respiramos o que nos dão os vulcões. Fumo e enxofre como que nos habituam ao inferno que há-de vir. Fiquei décadas a estudar o porquê de me ter afastado da minha vida, quando esta era a única ponte — estafada metáfora — das redondezas. Eu vi extinguir o fogo em meia dúzia de criaturas singulares que entraram na caverna da minha vida como tochas. Após a morte, tentavam acalmar-me num caldo de suspiros e frases entrecortadas, em estrangeiro, num idioma repleto de perífrases, aspas e coisa nenhuma. A morte abordara-me por esses dias numa língua só nossa, propondo-me um fim memorável.

Já fui escorraçado da província dos meus sonhos pelo meu próprio pensamento. Tentei em vão esvaziar a cabeça como forma de retaliação. Meus Deus, quão mortos estamos eu e Tu.

Antes de adormecer, faço uma espécie de luto pelo que acabou de desmoronar à minha frente. Pela boca do incêndio, pasto e colheita soam ao mesmo. Não tarda seremos contemporâneos do pó. Diremos, em havendo milagre, que diabo de destino!

Admiro qualquer forma de voragem, equiparo-a à minha fome extensa e invulnerável. Não a insulto nem a parodio.

Não crio atalhos por entre a turba popularucha a fim de subir degraus indevidos. Sem inimigos nem fanfarras, escalo as montanhas das cidades invisíveis com os joelhos em sangue. Tudo obedece ao cume. Se o alpinista se despedir verdadeiramente do sopé e se entregar à canção do cume, por uma só expedição que seja, não podemos esperar o mesmo homem aquando do fim.

No piso de cima da ampulheta, o deserto nunca cessa de me surpreender. Onde está deserto lia-se, antigamente, humanidade. Ela, ou uma qualquer que funde um poema sem agenda, era uma borboleta no meio de uma parada militar.

O vate primitivo, hipnotizado pelo silêncio, deixou-se chacinar por uma trovoada de cascos de bisonte. Ao rés da sua morte, seres minúsculos, espicaçados pela curiosidade, despertavam da caverna para a sua evolução. Há quanto tempo isto prossegue.

Metamorfoseei-me durante a minha competição contra gigantes extintos. Venci só sem aplausos nem apupos uma luta só minha. O influencer mostra-se-á chocado entre celebrações e activações de marca, ao passo que uma chusma de onanistas se identifica na afirmação que a glorifica. Dá à costa um mar de esperma incapaz, nem Vénus nem Neptunos.

Certos poetas, orlando precipícios com os seus pés metediços de bailarina obscura, contarão certamente outra história.

Os sinais estavam lá, garantem, como miras de sniper nas cabeças ebulientes.

 

Sanatório e Tanatório, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

29.03.21

O atoleiro da pólvora, explosão residencial. Ser humano. Pirotecnia reticente, fogachos tagarelas. O porvir a reboque da poesia. Penúria degolada em verso e de seguida alada. Medusa e Pégaso.
Mercearia onde se mercadejam venenos e antídotos num idioma de seduzir lacunas. A facção dos imunes. Ao rés do perigo, a lula metamorfoseia-se em ananás. Aos olhos menos instruídos, vampiro, na realidade, inerme. A arcana aldrabice dos abismos. Onde a luz não singra, o parasita consome os olhos do tubarão pitosga. Ligarei amanhã para vos comunicar os detalhes do pacto demoníaco. Até lá, aconselho-vos a cantarolar as gordas do Diabo. A montanha joeira corajosos e medrosos. Pela soma das bandeiras no cume podemos saber, caso saibamos a constante do destino, quantos Homens morreram desde o primeiro dia. Calma, não se apressem, a queda nunca se esgotará.

A carnificina não desmentiu o oráculo. Há cadáveres para todos os gostos, melhor dizendo, para todas as histórias. E cedo limpam à pressa a cena de matadouro. O espectáculo da morte não pode parar, comunica o anjo que faz uma perninha como algoz. Se algum dia chover guilhotinas, vou para a rua, declara o mesmo anjo. O part-time no Céu não chega para pagar as contas, o mesmo anjo ainda. Em boa verdade, o mesmo anjo não será, dado que ninguém é imune à mudança. O perigo não resulta na ida ao Inferno. O verdadeiro desafio é tentar sair de lá. Entretanto arrefecem as frases que noutras alturas nos amparavam. Cardumes de desesperados sorridentes ingressam em lojas à cata de réplicas de vidas desperdiçadas. Silêncio. Pouparam ampla verborreia na justificação. Por breves momentos atenuou-se a espessura da mentira, a fragilidade impôs-se num dialecto de frases cortadas, suspiros e soluços.

 

Queda, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

11.03.21

Embora pareça aos olhos dos abutres uma pessoa perseverante, que se recusa a morrer, sou 1/7 niilista, visto que às segundas-feiras não acredito em nada. Em tempos de negação, em que todo o ser humano — animal em formação — ostenta uma cara esfarrapada de alguém que escapou por um triz ao matadouro sem metade da vida, ouso exibir um sorriso mínimo, típico de quem nunca teve aulas de como lidar eruditamente com o nervosismo. A vida é o que é, nem grande nem pequena, uma coisa que não vale a pena exibir no Instagram. Postas lado a lado, a salada de frutas é mais fotogénica que a vida. Contudo, é isto que me dá força para continuar vivo, é dos poucos lugares onde podemos pensar sobre o suicídio.   

Respirar é julgar, escreveu Camus, pelo que, enquanto asmático, dava um péssimo juiz. Entre o justo e o injusto pouco há de diferente, daí o martelo do juiz que, pontualmente, dá ênfase ao ridículo da existência. Não me interpretem mal, como é vosso apanágio, mas à data do crime há diferenças substanciais, porém, ao pensarmos de forma mais lata abarcando vários séculos damo-nos conta que o que é hoje um crime amanhã é lei. E vice-versa, dado que o pensamento é uma dança composta de avanços e recuos.    

Sendo o mundo como é, um circo governado por palhaços proficientes na loucura, não podemos esperar uma sucessão lógica de acontecimentos. Não nos espantaria por aí além se viesse um anjo ter connosco e nos dissesse que o mundo vai acabar porque um tipo, ao tentar matar uma mosca, deu uma bofetada num padre, esse estafeta do amor. Resta-nos cantar, com esta voz herdada da melhor família de canas rachadas, uma serenata com uma lágrima no canto do olho, enaltecendo a perfeição do homem à nossa amada, a guilhotina. Neste mundo vertiginoso entregue aos bichos desnorteados, em que o apego e o compromisso são mitos, a perversidade e a virtude acaso ou capricho. O assassino e o filantropo matam ou salvam porque perderam uma aposta. E partem de supetão para o próximo episódio sem olhar na cara de quem estava no centro do jogo, tal como fazem os médicos actuais. Assim como assim vais morrer, de que adianta dizer que estás doente ou são, declararia um médico com nada a perder. Vamos todos morrer, meu querido; são 100 biscas, podes pagar à saída se quiseres continuar vivo.  

Deus está morto e, segundo as notícias mais recentes, permanece morto, logo temos de nos fazer à vida sem intermediários divinos. Neste caso, à falta de uma estrela guia barbuda que nos conduza à acção benfazeja, orientar-nos-emos no sentido de um não sei quê. O costume, dirão os mais exercitados de miolo. 

Imbuídos no espírito da nossa época, que em termos de hierarquia demoníaca é dos mais poderosos, não obstante em jantares de família parecer um tipo impecável, podemos assegurar que estamos a falar de eficácia. Todavia, se a loucura não se tiver entretanto apossado dos nossos neurónios, supondo que não os penhorámos para comprar alguma bagatela, não ignoramos que em alguns casos, se não mesmo em todos, estamos a perseguir uma eficácia de pendor absurdo. Queremos ser eficazes quando desconhecemos todas as variáveis. O importante é fazer, mesmo que o resultado seja pior que estar quieto. Como o pensamento é inimigo da eficácia actual, nunca percebemos o porquê das coisas descambarem em equívocos graúdos ou desastres com corpulência suficiente para ir pousar às parangonas. Enfim mais uma tirada brilhante do Homem do século XXI.   

De qualquer modo, compete-nos a nós, novelos de contradições, responder à pergunta que nos é posta pela ausência de sentido, esse grão de luz que se assoma por entre o sangue e os gritos vindos de todas as direcções, dizendo o seguinte: Nós ainda não estamos mortos. Pode ser que seja suficiente para não nos adicionarem à pilha de mortos, ao número crescente dos caídos. Se vos derem como mortos, não se aborreçam, são pessoas a fazer o seu trabalho. Aliás, esteja certo ou errado, a mando da eficácia contemporânea, o importante é mostrar trabalho.   

Citando Camus, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o Sol, não sou grande nem pequeno, acrescento da minha lavra, sou humano. É por isso que usamos chapéus, não queremos ser confundidos com os ursos.

 

Camus, Absurdo, Morte, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

13.02.21

Que nenhum dogma passe uma rasteira ou belisque a trajectória do Homem. Um quadro, seja ele estático ou dinâmico, animal ou estátua, deve enfeitiçar-nos ao primeiro olhar e só devemos despertar quando a metamorfose estiver concluída. Podemos jornadear até aos territórios vastos e mutantes da infância, voar até aos píncaros da imaginação, naufragar até às profundezas do passado mais recalcado, com as mãos atrás das costas ou com elas à frente do corpo, da carne, como se a carne e a mão falassem línguas distintas e o cérebro fosse um tradutor de vão de escada, dono de uma fluência artificiosa.

A morte. Fim. Não há necessidade de dizer tudo o que pode ser dito sobre o assunto. Este eu é, ao mesmo tempo, animalesco e civilizado — e, o que é igualmente premente, devastador. O eu, artifício composto de restos. Como a personagem de O Homem sem Qualidades de Musil, Ulrich, sinto-me (qual bomba mansa, acrescento da minha cepa) a dar passos livres em todas as direcções. Quão fragmentado está o Norte? Quantas Ítacas preciso de amealhar com os meus passos de molde a consumar o regresso? Sou sem nome ou Ninguém, sou homem hipotético e provisório borbulhando aflitivamente num caldeirão de eus. O próprio grito admite hierarquias. Um cardume ou um viveiro deles: eis a colossal diferença.

Amor, sempre o amor. Tudo o que a mão alcança e persegue deve estar subordinado a esse desiderato. Há uma incitação que me diz numa língua acabadiça: nunca desistas de o procurar, o resto não é senão ficção.

O funâmbulo é que sabe andar nisto. Para citar Brian Dillon, o futuro está mais no instável do que no estável, e o presente não é mais do que uma hipótese que ainda não ultrapassámos. Pausa para digerir o oráculo. Esta passagem é instrutiva quanto à natureza polimorfa do tempo, perpetuamente esquiva, que se metamorfoseia, qual partícula do mundo quântico, consoante o, digamos, observador. A presença ou a ausência de observador muda tudo. O observador, no mundo quântico ou no amor, como agente principal da metamorfose. Citando Ovídio de memória, de formas mudadas leva-me o engenho a falar, mas primeiro — anda cá, leitor. Com efeito, sem observador o caos segue indomável.

O funâmbulo leva uma vida despojada no fio caprichoso; o futuro, o futuro bem debaixo dos pés. Uma existência sem barroquismos nem ademanes. A maromba como único luxo. Nós, comuns entre os comuns, passamos a vida a olhar para cima, fitando o céu desabitado, pondo no discurso inveja onde devia haver intrepidez. O funâmbulo trocou as musas pela morte, pelo que nunca estima equivocamente a importância de cada passo.

 

Presente e Futuro, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

28.01.21

E se agora, na desordem da minha mente, ao contemplar de forma animal uma mulher, me metamorfoseasse em poeta? De costas voltadas para a minha biografia, dou comigo a afirmar: Não há mulher, não há animalidade na visão — mas já houve, os livros não me deixam mentir —, não há nada — apenas uma selvajaria postiça ao sabor da respiração, melhor dizendo, uma embriaguez vazia, sem pés nem cabeça à qual o temor e tremor, a morte e a vida, os limites da mão, fazem as vezes das musas, hoje cadáveres destroçados. Viro os meus pesadelos uns contra os outros e assisto, de olhos fechados, à matança.

O coração nunca é uma casa, é um estaleiro naval onde a memória coordena as entradas e saídas dos nomes.
Nesse lugar de chegadas e partidas, assolado pelas mais altas fantasias, que é como quem diz, no limiar da razão, aquele que reflecte no porquê da respiração acelerada descobre que já não há futuro. Trânsito de navios-fantasma, fora os nomes que à época eram prementes e se afogaram no esquecimento entretanto.

A paixão abre à minha frente um cadafalso que me atrai e é familiar. Preparo-me para a morte como das outras vezes: coração nas mãos, cabeça no cepo.

O artista é aquele que espera enquanto foge. É um simulacro de pensamento, típico deste século a cair aos bocados.
Como escreveu Georges Bataille, é necessário ter coragem e teimosia para não perder o fôlego.
Sem ar nem vida
cheguei ao teu corpo
noutra língua.

Em sucedendo, mesmo que seja pela via da imaginação, o gemido enfatizador dessa fantasia pode, se alcançado o cume da liberdade, ser o prelúdio de uma obra capaz de vergar estantes.
A simpatia polivalente no mundo dito real (a indignação nas catacumbas) põe certamente em evidência a nossa impotência em nos transcendermos. Olhamos à volta, como um animal apático após matar o rival, sem que nada nos desperte o interesse. Abandonamos o cadáver pondo para trás das costas o acto que lhe deu origem.

Fora da esfera da carnificina, regresso à arena onde as palavras que não disse me mordem e esbofeteiam e cabeceiam. Afinando o quadro para o espectador míope, posso dizer-vos que sou o homem nu ao redor do qual as palavras que fui incapaz de dizer na altura certa — palavras mágicas? — cospem em coreografias de humilhação o meu fado. Os livros, uma vez que se devoram uns aos outros, são de espécies diferentes, de forças distintas. O mesmo sucede com os dias. Há dias capazes de me engolir de supetão, enquanto outros se contentam com carícias.

Não existe, do Homem feliz àquele que é devorado por ideias suicidas, uma relação sincera com o mundo. Inevitavelmente, aos olhos de um sábio, somos crianças embeiçadas por paraísos artificiais, os quais, a cada ano, são aperfeiçoados para que não nos apercebamos da patranha da miragem. De pé ou de joelhos, o Homem, esse simulacro de Atlas, deve recusar-se a ser visto como uma coisa. Nem que dê a vida por isso.

 

Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

21.12.20

Uma tempestade de areia mumificou uma floresta arcaica e, desde então, quais faraós que ninguém ouviu falar, as árvores descansaram protegidas da decomposição.

Tempestade de areia, escoada piroclástica, tal como aconteceu em Pompeia, eis a Medusa inescapável. Medusa, mulher monstro, ponto de contacto entre fuga e combate, horror cujo olhar petrificava as pessoas, mito cujo desenlace fatal operado por Perseu foi retratado por Caravaggio no seu célebre escudo, o cabeçalho deste blog.

Espera-se da carne que cumpra com indiscutível mestria o inadiável protocolo de fornicar. Fornicação, uma prioridade do caderno dos afazeres, actualmente atafulhado de entulho.

Volta e meia vem-me à ideia de que o Homem não fez senão arranjar novos modos de morrer. Além dos naturais, morte ofertada por feras e quedas, tragédias trazidas de supetão por erupções e sismos, o Homem, não contente com as formas ditas naturais ou divinas, conforme a escola do medo que tenham cursado noutras vidas, tratou logo de arranjou outras, farto que estava de esperar pelo que não domina. Enforcamento, óbitos por degolação, suicídios de autor, mortes sem querer, fazer do carro um barco. Do lado de fora da chacina, o Homem convencia-se a si mesmo que a barbárie havia sido um percalço há muito ultrapassado.

Para a sede de sangue, herdada provavelmente de um deus arcaico ficcionado pelo Homem, forma inteligente de legitimar a sua animalidade, não vai achar cura nem razão.

O veneno tornou-se invencível; nem por milagre podemos ser curados. Caímos aos pés da cólera e erguemo-nos como bárbaros que nunca deixámos de ser. Uma raiva mansa, um regato marulhoso, o qual transborda violentamente e rompe o casulo da humanidade. Enquanto bárbaro, o Homem quer a soma dos pequenos mundos que lhe foram vedados.

Por certo há a esperança de que tudo podia ser de outro modo no momento em que a hesitação se interpõe entre a vontade e o golpe.

Que é feito do paraíso que havia, por cima e em volta, esse mundo simples todo flores e perfumes que espezinhamos quotidianamente? Procuramos hoje aquilo que matámos ontem.

E o amor que era o que precisávamos? E só o subjectivando — só um louco o faria — se dirá que aquilo que nos aconteceu pode ser uma de várias coisas.

Para onde nos conduzem as águas do rio da História? Como que cadáveres, boiando sem oferecer resistência, fumando a nossa breve existência.

 

Floresta Mumificada, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

11.12.20

Para muitos de nós, foi-se tornando progressivamente mais difícil perceber qual o sentido de estar vivo. As desvantagens são evidentes, numerosas e bem documentadas. Toda a lógica de que a vida é um milagre se esboroa, aos poucos ou de uma vez, na idade adulta. É muitíssimo embaraçoso — ainda que seja um espectáculo mui notável — assistir a um adulto com os seus quarenta e poucos a discursar sobre as delícias de estar vivo. Não é necessário ter estudos por aí além para nos darmos conta de que estamos diante de um farsante. Se não for um vendedor de banha da cobra, é um adulto acriançado pela doutrina do positivo. Embora seja incapaz de nos converter, incréus que somos no poder divino da vida, apreciamos a sua loucura sem recriminações.

A essência da vida é amarrar-nos as mãos, encasular-nos numa camisa-de-forças, pôr-nos um açaime, frustrar as nossas vontades, sejam elas de que pendor for, pôr obstáculos altos no caminho desta criatura trôpega e ensarilhada. É nestas condições que partimos amiudadas vezes em direcção à felicidade ou ao amor. Dizer que a vida é melhor que a morte é um insignificante prémio da consolação.

Uma vida em que não se passa uma quantidade de tempo digna de nota a fantasiar com a morte, além de invulgar, é pouco saudável. O facto de a morte estar à mão de semear alivia-nos e consola-nos. Confere-nos mais uma dose de esperança para enfrentar o combate desleal que a vida nos arranjou com o mundo.
Não é mentira se disser que somos demasiado franzinos para ganhar um combate. Não apostem no Homem, estamos condenados à derrota. Lamento muito, mas não poderíamos, simplesmente, dar um tempo, diríamos nós à vida se ela fosse uma entidade.

O percurso do Homem é um caminho juncado de pequenos fracassos. Ignoremos as grandes derrotas. Um homem típico sai de casa com a cabeça apinhada de esperança rumo a um encontro amoroso e regressa, horas mais tarde, destroçado, a um sítio de onde, umas horas antes, tinha saído a levitar em virtude das borboletas no estômago. Não recomendo a vida a ninguém, mas, até ver, não há alternativas melhores. Contentemo-nos então com o que há nas tristes prateleiras da existência.

 

vida, Roberto Gamito

 

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