Roberto Gamito
23.06.21
Escrevo, à maneira póstuma, sem recear ninguém.
Só fora dos ecrãs é que a vida é vida. Uns fogem, outros desviam-se, consentindo a sedução por parte das sereias do escapismo, enquanto outros, com nomes à espera de serem insuflados pela posteridade, esperam, sentados numa rua deserta, o tsunami das dúvidas.
A maioria dos amputados sofrem daquilo a que medicina chama “membro fantasma”. Lançar o boato de que o Homem do século XXI, o qual foi degolado pela velocidade, padece de cérebro fantasma e ver de camarote o século incendiar-se. O poeta maldito como uma espécie de Nero clandestino.
Diante da montanha aplanada graças ao dinamite da mediocridade, o poeta comenta: “Cume, fazes-me uma falta incalculável. Espero ter estado à tua altura.” Não te subestimes”, diz o sopé em tom de gracejo.
Trocar as pausas para o tabaco por pausas para a comoção.
O silêncio é mais experiente que o mais genial dos Homens. A ideia que hoje formulas, a qual se pavoneia desmembrada na cabeça, saltando de sinapse em sinapse à espera de uma mutação que lhe dê forma, já foi escutada por ele. O silêncio já escutou tudo. O que é novo para o Homem é antigo para o silêncio.
O epitáfio do suicida é a sua própria queda. Naufraga à vontade, o farol foi desactivado. Há frases que são consequência da queda, outras da redenção. Porém a maioria são tentativas vãs de cartografar o nevoeiro. Eis-me mágico doidivanas a retirar da cartola informe gritos, mitos, hidras e heróis.
Entrem e saiam calados da casa do Senhor. Não proponham personagens ao criador, não tentem interferir na história.
Se soubesse que a queda era tão boa nunca teria aprendido a voar, cogita Lúcifer. Doravante o Homem já não toma parte do diálogo. Somos cinzas adiadas nas mãos do fogo.
Não. Uma síntese célere de despojamento. Mais tarde ou mais cedo aquele que for capaz de o pronunciar será o mais rebelde dos Homens. O não enquanto pedra na engrenagem na máquina do progresso. Notícia num século que não lembra ao Diabo: Homem apanha prisão perpétua por ter dito não.
Suspender a visão e lucidez, abdicar da jornada e do cerco, liquidar o texto, as margens e as notas de rodapé dos vindouros simulando a dança da destruição de Shiva. Rir diante do incêndio da memória.
Não basta sublinhares o óbvio para te evidenciares, digo. O século XXI ri-se. Nem só de ecos se fazem as décadas.
A crítica ao eco é quase outro eco. A trecho final da trajectória da humanidade enquanto luta de papagaios.
Não fites o quadro a menos que te fira os olhos. Regressar de um quadro que nos esmaga é como enfrentar um sol e não cegar.
Que arte terá visto Homero? Que quadro, escultura ou poema o terá esmagado a ponto de o cegar? E se as suas duas epopeias não senão um relato desse encontro?
Não reponho a água na jarra, prefiro apressar o definhamento da flor. Identifico-me com o seu murchar. A água, no caso da flor retirada do seu meio, é um paliativo. A flor merece sofrer.
Numa selva de fauna luxuriante, a abarrotar de estímulos, o faro fica preguiçoso. É preciso aprender a caçar no deserto. Aí é preciso inventar as presas para nos mantermos vivos.
Deixem-me ser o mais claro que se pode ser nestas condições: as minhas estratégias de capturar aquele que gostaria de ser fracassaram. Daí em diante as incompatibilidades aumentaram, virei costas ao mundo e fechei-me dentro do meu eremitério privado. Encasulei-me no interior de um pêssego quilométrico. Sou o caroço duro de um mundo que há-de singrar após o meu último suspiro.
Só dar atenção àquilo que cega. Mas não basta olhares para o sol, é necessário vasculhar o mundo de uma ponta à outra à cata de estrelas insuspeitas e terrenas.
É impossível um deus morrer se as carpideiras endeusam essa morte.
Uma província de espectros, sem ninguém para tocar. Andar com as mãos atrás das costas, quiçá atadas, como os velhos. Eis a pandemia. O mundo assombrado.
“Acabe-se com as citações”, disseram os estudantes radicais de Frankfurt. Desculpem, puseram-se a jeito, não escrevo para agradar Ninguém.
Mas já cá que estamos, nas frutuosas paisagens da ecolalia, citemos Canetti: “Ele refugiou-se em Deus. Aí é onde mais gosta de sentir medo”. Isso foi antes d’Ele morrer ou depois? Suponhamos o seguinte cenário, Deus, mudado em cachalote branco, ocupado por gerações e gerações de homens que procuram o santuário onde o seu grito possa ser ouvido. Homem, o qual foi feito à imagem de Deus, unido ao criador (em virtude da morte minúsculo) pela podridão.
O artista confessa ao psicólogo a sua capacidade de exteriorizar o seu mundo interior, porém receia que não haja espaço para tantos planetas. Resta-lhe o voto de silêncio.
Deus está embriagado com a miséria. Fiquem em casa, é mais sensato. Se Ele vos encontra, mata-vos com a conversa mais maçadora de sempre.
Século XXX. À excepção do Homem e de um punhado de animais úteis para o estômago do ser desumano, tudo se extinguiu. Foram anos de muito tumulto para os biólogos. Hoje é comum vê-los camuflados nos arbustos da cidade a documentar a vida de um ser humano anónimo. Calem-se, sussurra o biólogo, está ali um animal raro, o poeta. Mergulhado na escrita, nada nele está noutro sítio. A indústria da compressão de arquivos inspirar-se-á na poesia. A ciência de ser tudo em pouco espaço acabará por florescer, eis o prognóstico do biólogo palavroso.
Procuramos na arte uma espécie de judo metafísico. Quando a vida vem abrutalhada e cheia de pressas, há um meio de a atirar ao chão. Virar do avesso quem nos quer tombar. O artista franzino serve-se da força da vida para a atirar ao chão. A vida com os costados no cimento e o franzino a celebrar a vitória que alguns julgaram inverosímil. Não podemos deixar de sorrir quando vemos o gigante estatelado no chão, o gigante vencido. Sentimo-nos uma espécie de gato das botas. Tudo muito bonito, mas será possível aplicar o judo à morte, a qual vem lá de longe a anunciar-se com uma fúria de mongol? Será a morte o limite do judo?
Peço desculpa pelo incómodo, chamem-me sedentário, mas prefiro adiar esse último confronto. Nunca se sabe quando é que uma nova técnica me vem parar à mão.