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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

10.02.21

Alegro-me que tenhas chegado são e salvo a este texto. Que os deuses se revelem favoráveis para comigo, como se dizia na antiguidade. Leitor, se não te causar incómodo, vou simular uma conversa numa taberna. Passeia quanto te apetecer pelo diálogo, como se fosse teu e tivesses de o emendar.

— Sou estúpido.
— Partilho da tua opinião.
— Haja concórdia neste mundo. Mas iria mais longe.
— Não é suficiente assumir-me?
— Não nego que é um bom princípio, porém acrescentaria: Sou de longe o mais estúpido dos homens.
— Sou um estúpido humilde, nunca diria algo que me enaltecesse.
— Não lhe chamaria enaltecimento.
— O senhor está aqui a enfrascar-se?
— Vê lá se não te desviaste do caminho da conversa para ires merendar uns pontapés.
— Estás a arruinar o clima do diálogo.
— Enquanto actor deste cambalacho, parece-me um convite à insurreição. A culpa não reside em nós, mas em quem nos escreve.

É o que seria de esperar de indivíduos como estes, que não servem para nada. Não dou valor nenhum a este tipo de personagens. Dou-lhes tudo, vida, taberna e diálogo, mas mesmo assim não é suficiente. Até ao momento correu tudo às mil maravilhas. Mas não somos nada, lembrem-se disso…

— Quanto te pões com esses apartes só nos atrasas, ó narrador.
— Já perdi a vontade de andar à porrada.
— Não queres mandar vergastar a boca desse indivíduo com alho-porro?
— Não me oponho.

Bom vinho, comida, pecado de boa qualidade.

— Olha o suborno a pingar.
— Não me oponho.

 

Vinho, Comida e Pecado de Boa qualidade, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

06.01.21

Decorridas estas décadas de vida sofrida durante as quais percorri de gatas o trilho da penúria sentimental, continuo sem perceber a razão pela qual a comunidade gay não se apropriou do belo ditado “o pássaro madrugador é quem apanha a primeira minhoca”.
Não é que se possa fazer grande coisa pela saúde — leia-se reputação — da frase anterior, mas ao menos podia desculpar-me dizendo que tenho séculos em cima do lombo e, tal como o idoso, gozo de uma imunidade que me permite zombar de tudo.

Cá está um mentecapto, pensam vocês. Segue-se um diálogo. Se perguntarem por mim, estou no twitter a salvar o mundo.

— Haja companheirismo neste mundo que só está bem a desintegrar a irmandade da verga.
— Podias explicar-te melhor? Necessito de mais pistas para saber do que falas.
— Vamos lá ter calma, senhor detective. Um gajo já não pode desabafar hieroglificamente?
— Poder podes, mas dessa forma estou impedido de contribuir para o diálogo satisfatoriamente.
— Tens mesmo cara de quem contribui para diálogos.
— Podias não me enxovalhar?
— Calma, meu vândalo de monólogos. Vens para aqui todo lampeiro a interromper este caudal verboso de maravilhas com o bigode a tresandar a virilha de taberneiro octogenário e não queres levar uma palavrinha mais azeda como paga. Vê se cresces, pequenote.
— Assim não há condições para termos uma conversa saudável.
— Mais um oportunista da toxicidade espontânea. Vai choramingar para as redes sociais e não me torres o miolo. Já me tinham falado de ti, corre por aí um boato que és um palerma.
— Preferia não me pronunciar quanto a essa temática.
— Lá está, o boato tem sempre, pelo menos, um grão de verdade. Deixe-se de queixumes e insulte-me humoristicamente como um homem.
— O senhor cumpre todos os requisitos de um estúpido.
— Essa boca é para mim?
— Não, estava apenas a ensaiar uma forma de ser simpático consigo.
— Amigo, estava a mangar consigo. Acagaça-se logo, falta-lhe treino de pugilato verbal. Precisa de vir comigo todas as noites à taberna e insultar pessoas à desgarrada, isso dar-lhe-á fibra. Assim como está não arranja amigos nem companheiros de zaragata. Está aí com uns insultos que é uma tristeza.
— Obrigado pelo conselho, mas a que se deve tamanha amabilidade?
— Vou conversar com o Deus que está dentro de nós e já lhe respondo. Entretanto, para se entreter, pode ir para o caralho.
— Não tinha já parado o arraial de boçalidade e insultos?
— Companheiro, nunca pára, é assim que se ganha músculo na lábia. Desiludiu-me um nadinha, está armado em putinha inibida que se mostra envergonhada ao mínimo afago quando na verdade a sua imaginação é uma morada de nabos.
— Problemas que me ocupam a cachola. Bem tento resolvê-los com a minha psicóloga, todavia continuo o mesmo entrevado no capítulo das intimidades.
— Compincha, continue o seu raciocínio, mas primeiro deixe-me abandonar a sala, não há necessidade de eu continuar a ouvir as suas baboseiras.
— O meu amigo consegue ser muito cruel quando quer.
— Pedia-lhe que me deixasse prosseguir com o monólogo. Ficou claro que, por mais que se esforce, é incapaz de adicionar algo ao diálogo. Tão jovem e já tão inútil.
— Mas…
— Nem mas, nem meio mas. Andavas tu de colhão para colhão já eu levava a cabo monólogos dignos de Shakespeare. Vi algo em ti, mas desiludiste-me. Este lado humano que me força a apostar em cavalos pernetas só me traz desgostos.
— Senti um pingo de humanidade.
— Já me assoei, já não há pinga, meu cabrão.
— Afinal há luz dentro de ti.
— Ui, pronto, alcançaste os píncaros da lamechice e do enfado com essa tirada. Não digas mais nada que ainda me matas de tédio. Já estou a sentir umas pontadas no cerebelo.
— Vou calar-me.
— Que ideia brilhante! Saiu dessa bela cabecinha? Nem parece teu.

 

O que se retira deste diálogo, perguntam-me. Eh pá, vão chatear o Camões e os seus epígonos.

 

Estoura Monólogos, Roberto Gamito

 

 

 


Roberto Gamito

06.12.20

O assobio é, provavelmente, a manifestação mais indubitável de alegria. Não há, à excepção dos loucos, quem consiga assobiar e estar triste ao mesmo tempo. Se, ao dialogarmos com alguém que nos é próximo pararmos o assobio para falar e perdermos a vontade de o retomar, o melhor é assumir que a alegria nos abandonou.

O outro espatifou-nos a boa-disposição. Caso aconteça com alguma frequência, devemos estar preparados para intervir com um “não me interrompas o assobio, deixa-me ser feliz”.
Não precisamos de nos sentir culpados pelo outro não ter alcançado um patamar de alegria que o permita assobiar.

Mais humanamente, o gatuno de assobios está a pedir ajuda. Sob a sua negatividade implacável e tentacular, de uma forma deturpada, selvagem e amiúde enlouquecedora, implora por ser ouvido. A discussão pode principiar abruptamente.

— Não há motivos para assobiar.
— Quem és tu para me dizer quando há motivos para assobiar?
— A pessoa que vive contigo, mais precisamente a tua mulher.
— Cara colega de casa, estou a homenagear as pequenas coisas da vida. A vida é demasiado bela para não ser celebrada.
— Dá-me exemplos.
— Ter encontrado uma pessoa com quem passar o resto da minha vida. Uma casa estupenda. Os dois filhos.
— Estás equivocado em toda a largura da tua resposta. Nem eu sou essa pessoa, só de olhar para ti dá-me vómitos, nem a casa é assim tão espectacular. Onde vivemos pouco dista de uma barraca. Os cães não são teus filhos.
— Sinto que me queres dizer alguma coisa. Queres falar?
— Estás a ver coisas onde elas não existem, porém acho um exagero essa manifestação de contentamento. O mundo não está para grandes sorrisos.
— Tens motivos para estar triste?
— Mas agora é preciso motivos? Aliás, nem estou triste, estou apenas a constatar factos. Casei-me com um palerma.

Cessa o assobio e o outro, que iniciou a discussão com o tom azedo, ri-se pela primeira vez. E começa a assobiar.

Felicidade flutuante, amigos, felicidade flutuante.

 

assobio, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

25.11.20

— Rezo a Deus para que não tenhas emprenhado mais alguma.
— Mãe, sou uma pessoa nova, dono de uma pila criteriosa, até tenho um chapéu e tudo. Quando entro em casa alheia a desoras o meu intuito é facultar o meu ombro amigo às mais carenciadas. Vamos lá ver uma coisa: eu pratico o bem. É um bem de autor.
— António Farturas, onde é que fica o ombro?
— Ao pé dos testículos, como seria de esperar. Tive 20 a anatomia humana.
— Mas tu nem tens a quarta classe, António. Aliás, eu bem me lembro da tristeza: a tabuada dos dois quase te levou a um esgotamento.

Gera-se um compreensível embaraço, e a mãe, cuja fé no filho nunca atingiu níveis satisfatórios, ajoelhou-se e disse a Deus para não se aborrecer mais, era um caso perdido.

— Filhote, tu não mudaste nada. Continuas o mesmo burro de sempre. Onde é que eu falhei?
— Queres mesmo que te diga? Não usares contraceptivos demonstra a tua insensatez. Fizeste-me de qualquer maneira. Já viste como é que o mundo está? Puseste-me num mundo a abarrotar de venenos e obstáculos.
— Farturas, é terrível para uma mulher de peito vivido descobrir subitamente que, ao longo de toda a sua curta mas penosa existência, não disse nem fez qualquer coisa capaz de te desemburrar. Serás capaz, alguma vez, de dizer algo inteligente?
— Talvez, mas não prometo nada. Mas hoje não, sabes bem que com pressão transformo-me num super-burro.
— Ao menos, quando falo contigo, põe o pirilau para dentro das calças. Sou tua mãe, mereço respeito.
— Compreendo a tua posição, porém não vou acatar. Sabes que sou nervoso nos diálogos e preciso de me sentir livre para cuspir umas palavrinhas. Se puser o pénis para dentro das calças, transformo-me num mimo.
— Suspeito que não há resquício de lógica no que acabaste de dizer.
— Suspeitas? Mas agora trabalhas na polícia. O que mais me enerva é pessoas sem estudos opinarem à queima-roupa sobre aquilo que desconhecem.
— Desconhecem? Sou tua mãe. Fui eu que lavei essa miséria durante anos a fio.
— Pormenores. Mas vamos lá tirar uma coisa a limpo: está ou não está a ser uma conversa memorável.
— Não lhe chamaria memorável.
— Não sabia que a minha progenitora era poeta. Ai agora as palavras não te servem. Urge usar a palavra certa, caso contrário tudo de esboroa.
— Não estou a gostar do tom, António Farturas.
— Pronto, temos professora de música. Uma pessoa já não pode desafinar um bocado e leva uma repreensão. Deixa-me criar no tom que eu quiser.
— Farturas, por que raio estás a levitar?
— Disparatar deixa-me mais leve.
— Sai da minha casa que eu não estou para aturar magias.

 

Não estou para aturar magias, Roberto Gamito

 

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