Roberto Gamito
08.12.20
Não havendo nenhum cataclismo que revertesse esta vontade inexplicável de empilhar linhas, contento-me em prosseguir com este bizarro costume de escrever uma crónica diária. Mais uma vez, um belo pretexto para pôr por extenso o nada.
O tempo é curto e a imaginação parca. Infelizmente, ao contrário de muito cronista e escritor bafejado pela sorte, brindado com o facto de viver num sítio cuja fauna luxuriante o inspira até às orelhas, vivo num meio pequeno e os padrões estão há muito dissecados. Há velhos, bêbedos e coisas tristes. Eis a minha matéria-prima. Não fosse a imaginação me convidar volta e meia para certas viagens e nunca saberia o que escrever.
Há um velho bêbedo a catrapiscar uma cerveja morta, vendo nela a vida ou a mulher que lhe fugiu, uma senhora com os seus quarenta com três fedelhos a gravitar em torno das suas saias.
Há um, digamos, mulherengo reformado. Os tempos são outros, as mulheres, essas, hão-de procurar outras coisas, afirmo eu sem saber da poda. Se a memória não me falha, andou de porta em porta a oferecer os seus préstimos e lá se arranjou após várias negas. Raramente foi acolhido com sorrisos, o que me espanta. Fala-se muito, seja por crentes, seja por ateus, da falta de amor no mundo, porém, quando alguém se chega a frente a fim de mudar o paradigma da temperatura, ninguém parece passar cartão. Desculpe, foi para aqui que encomendaram o amor, perguntará o mulherengo. Não, deve ser engano, responde a mulher.
Palhaço admirável!, gritam em uníssono. Admirável síntese, respondo eu com vontade. E isto: sabem lá os puritanos de hoje se não serão os depravados de amanhã. Nunca se esqueçam.
Ainda hei-de fabricar bombas e mandar essas certezas que vos consomem pelo ar. A minha veia de dinamiteiro assim o exige.
Desafortunadamente, terão de esperar mais um pouco, ainda não encontrei o explosivo indicado.