Roberto Gamito
08.04.22
Fazendo fé nas conclusões de travo alimentício da consultora Nielsen, a qual monitoriza as compras de três mil lares portugueses, e futuramente as compras de três mil hostels, o consumo de frutas e legumes diminuiu nas famílias com filhos, privilegiando a aquisição dos produtos de conveniência, a saber: refrigerantes, conservas e take-away, que são, para usar a expressão de Clara Viana, do Público, facilitadores do dia-a-dia. Aqui principiamos a divergir ligeiramente. Embora reconheça que alguns dos produtos nos tornem a vida mais fácil, cito como exemplo uma lata de atum, a qual é uma espécie de MacGyver que desempecilha a refeição em situações que de outra forma seriam impossíveis de resolver para uma pessoa cujo lema da vida é “mexer-me o menos possível”. Se a vida melhorou drasticamente após termos conhecido a lata de atum? Não nos precipitemos na resposta. É uma relação longa, começa na universidade ou até antes e acompanhar-nos-á, suspeito, o resto da vida. Logo terá todas as características de uma relação duradoira, tanto as boas como as más. Creio ser despiciendo sublinhar que a aura romântica que paira sobre as conservas rapidamente desaparece. Falo por mim, sempre que desfruto desse singelo pitéu que consta no menu do desenrascanço, sou arrastado aos solavancos por uma imaginação contrariada rumo a um cenário de guerra em que estou a fruir da minha última refeição. E eis que choro profusamente. Não adivinharia, nem nos meus mais célebres pesadelos, que a minha vida seria essa. Acabar os meus dias a comer atum num casebre abandonado enquanto espero pela morte e ouço Maria Leal.
Há, continuando a pastorear os olhos no artigo, motivo pelo qual encetei esta prosa suculenta, um aumento dos produtos exímios em insuflar a pança, tais como: chocolates, batatas fritas, bolachas que existem para, momentaneamente, tapar o buraquinho existencial. O número de suicídios seria mais elevado se não houvesse estes paliativos. Nunca tive, que me lembre, ideias suicidas enquanto estou a estraçalhar uma tablete de chocolate. Depois de a comer é outra conversa, mas é uma questão de comprar a maior tablete possível. Teorizando um nadinha, posso assegurar que, se comprarem uma tablete de chocolate infinita, nunca mais pensarão em coisas tristes.
Que vida a criança teria se, além do típico conselho paternal “não fumes, não bebas, não te drogues” fosse aconselhado a enveredar pela via marginal logo desaconselhável da fruta. A criança não teria alegria nenhuma para continuar a viver neste mundo empestado de regras. E sabem como são as crianças. Pode acontecer, não digo que em cem mil catraios não haja um que goste de fruta, que se delicie em abocanhar citrinos e assim, mas, debaixo da mira do olhar desdenhoso e inquisitório dos seus ranhosos colegas, opta por recalcar o seu amor pelos legumes e pela fruta. Moro no Algarve, onde há citrinos aos pontapés, e do que me lembro dos tempos de escola, descartando as memórias das pessoas boas e das professoras boas, supondo que são coisas diferentes, não me lembro de muitos episódios em que o Dário ou o Alexandre pudessem descascar clementinas sem serem importunados. Supondo que a geração actual de putos é superior à minha nesse aspecto, sim, estou disponível para realizar esse salto de fé, que não importunam os outros, pois têm assuntos mais sérios a tratar, como estar concentradamente alienados ao smartphone, ou a realizar directos para o Instagram, levanta-se outra questão. A questão da socialização. A fruta não promove a socialização. Ninguém se aproxima de um puto e diz: Orienta-me aí um gomo de tangerina. Ninguém. Nós queremos relacionar-nos com os outros e a fruta e os legumes não constituem grandes catalisadores. Pelo contrário: são inibidores. Daí não constituir espanto para mim que os putos enveredem pelos Kit Kats e pelo tabaco. É o que levamos da vida. Histórias. Histórias com outras pessoas. De que me serve morrer com um corpo a abarrotar de vitaminas se ninguém quer meter conversa comigo? Isolei-me do mundo por via de ter criado uma barreira de clementinas, bananas e maçãs, pensará o miúdo que seguiu uma vida saudável. Viverá dentro de um casulo de fruta e um dia brotará, de dentro do casulo, uma borboleta bisonha da espécie Carmen Miranda.
E a mãe que diz “comprei estes abacates a pensar no meu filho” é uma mãe que não ama a sua cria. Ai eu faço-te lembrar um abacate?, pensará o filho quando confrontado com esse pensamento. Mãe, não me conheces. Eu sou um ser doce, dirá o garoto. Daqui em diante quero que te lembres de mim quando passares pela secção das gomas, concluirá o puto.
Ou então os pais detestam os filhos e estão a tentar matá-los seguindo os trâmites legais, a única forma socialmente aceite de matar um petiz: não lhe providenciar comida saudável. Não me oponho, só quero saber se é preciso aquecer o biberão de coca-cola.