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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

27.03.22

A morte fê-lo crescer para dentro de vários nomes. Dentes afiados, barriga inchada de vermes, elevando-o ao inquestionável estatuto de animal de museu. A berma para a qual foi atirado pela vida, que, agarrada ao papel de bailarina contemporânea, o catapultou vistosamente, sem esquecer os saltinhos espalhafatosos ao som da música.

Três ou quatro varejeiras pioneiras hão-de chamar outras até se tornarem um nevoeiro fervilhante à roda dos caídos. As varejeiras crepitam no ar inquietas, indecisas entre os mortos e os vivos. Não os distinguem: e isso inquieta-nos. Se não há diferença entre estar vivo e morto, então para quê isto tudo?

Estamos impedidos de tocar no mundo, a repulsão electrónica impede-nos. Poeticamente falando, diríamos a maldição da assimptota. Estamos condenados ao quase. Quase que amei, quase que te toquei, quase que vivi. Saltamos de quase em quase, pelo que o caudal do rio das frustrações transborda até inundar as margens biográficas onde pululavam minúsculos projectos de fauna e flora.

Tento regressar à infância, porém os caminhos por onde andei já não existem. Recordo-me das estradas no Alentejo ladeadas de árvores e olhar para o vidro do carro até ficar enjoado. Às tantas não sabia se era eu que me movia, se eram as árvores. Hoje sobram poucos representantes desses dias, meia dúzia de árvores para contar a história. Neste caso, a luz não é sinónimo de bênção. As sombras daquele cortejo de árvores tranquilizavam-me. O regresso é impossível, contento-me, qual Penélope, a fazer e a desfazer o meu episódio vezes sem conta.

De quando em quando o imprevisível intromete-se no guião das nossas vidas. E o meu passado, escrevi-o noutro texto, foi engolido por um único beijo. Esse amor reinventou-me até ao pormenor, vim à tona das águas com outro nome e outra cabeça. Mas nada dura para sempre, e o amor, tal como deus, não é eterno. Doravante contentar-nos-emos com as sobras de um cadáver imperecível.

Ganharam espinhos, esses dias. Adquiriram o perfume de rosas envenenadas. Encontramo-lo, ao passado, sempre por acaso e parece sempre que andámos a evitá-lo.

No museu da minha vida, vejo tudo com igual desinteresse. Observo as legendas de um quadro a saltarem para outro sem que haja reacção da minha parte: um grande cadáver esquisito em mutação: eis o labor da memória. O que me faz avançar no texto é saber que o vou abandonar, qual cadáver crescido capaz de, mesmo morto, escrever a sua história.

O que era só uma frase inicial tornou-se o regresso à infância. Uma sinfonia de caruncho entoa pela casa dos velhos. O espectáculo de baixo orçamento preludia a morte. A vontade de viver vem-lhe de onde? As ideias veem-lhe de onde? A morte vem-lhe de onde? Onde é que não lhe dói, pergunta o médico.
O escritor ou Homem abeira-se da folha para simular nascimentos e ressurreições.

Por uma frincha na porta, vê-se o velho na cama rodeado por tubos e maquinaria que fazem a conta da luz disparar. Qualquer dia não terei dinheiro para pagar a conta da luz, diz o velho com graves problemas pulmonares. A empresa de electricidade será o seu algoz. Estamos todos presos por arames, eis o que somos: marionetas acamadas.

Um corpo imóvel comentado por uma multidão de cheiros. A última inspiração antes do fim. A vida resumida num estalar de dedos. Acabou, finalmente acabou. Os andaimes — os tubos e as máquinas — que rodeavam a morte em construção foram retirados. Apesar dos sucessivos adiamentos, o projecto foi finalizado. Flores por cima do cadáver, todavia não há flor capaz de fazer as vezes da luz. A noite será daqui em diante para sempre.

A maldição da assimptota

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