Roberto Gamito
13.07.22
Na escrita, atiro carne podre aos vindouros. Formulei, para uso caseiro, tempestades e incêndios, vandalizei máscaras e escoei venenos.
Numa das minhas mãos habitam um sem-número de roteiros de desorientação. Vasculhei dentro de mim — reconheço hoje o equívoco — uma família de mapas novinhos em folha.
Os caminhos alimentam-se de passos, a jornada cresce com o nosso desnorte.
A mulher suspira, como é usual em muitas histórias. Sabe-se pouco a respeito das entrelinhas da respiração aflita. O talento da respiração é fintar repetidas vezes a morte.
A senhora de noventa anos descobre que a filha tem Alzheimer. Em minutos perdem-se todas as certezas da última década.
Cabisbaixo, o meu rosto despenha-se do céu, qual Lúcifer, nas poças de água.
Rasto cifrado para ludibriar hienas e perdigueiros, passos tapados por folhas, apeadeiros em chamas. Ulisses anónimos com a água das lágrimas a dar-lhes pelo pescoço. A vida a centímetros da morte.
Toda a gente acorda de manhã como que vinda de um milagre, hesitante, um pouco espantada com mais um dia. Não era esta a imagem que tínhamos do inferno.
Um ponto. Não há lugar para os pés nem para as mãos, nem tão-pouco para deuses. Encolhemo-nos até ao esquecimento. Novamente nesse ponto primevo, o antes-de-tudo-o-que-conhecemos-e-ignoramos.
As coisas libertam-se do seu nome emperrado graças ao grito.
Vencidos os homens, sobram umas migalhas. As sementes preparam uma rebelião há séculos no rés-do-chão do sangue. Até lá sobram-nos as histórias. As línguas despem-se de palavras ao rés do rosto amado. A mão percorre ao de leve o rosto como a brisa a cevada. O seu cheiro invade os campos da minha imaginação.
A sua verticalidade é postiça, porque teme soltar o animal na escrita. Este alarde a que não falta fanatismo actua como um holofote, elevando o espantalho a celebridade.
Amor, Deus, morte. A respiração de civilizações inteiras ecoa dentro de certas palavras.
O falcão olha de cima o labirinto do Homem e confunde-nos com formigas. Agora vamos por aqui: engaiolar na mão a recém-cortada cauda da osga e ver na sua movimentação vã a humanidade.
A morte, assim como Deus e o amor, é uma semente, está no meio de nós. Envelhecemos por aí, à procura do perdão.