Roberto Gamito
07.12.21
Nasce a piada. Num ápice, surge o discurso sobre o humor que gera por sua vez um discurso sobre o discurso e por aí vai. Assistimos de mãos e pés atados — embora possamos contribuir à nossa maneira em cada uma dessa novas vagas de interpretação — à tradução por parte de intérpretes míopes — não há outros.
Supondo que o humor sobrevive no discurso apesar de se afastar do centro, isto é, da piada que lhe deu origem, pese embora mais raquítico, temos um desporto elevado à potência n.
Encarcerada no centro, a piada revela a sua natureza primeva, o seu pendor para a queda, e aproxima-se da figura do Diabo no nono círculo de Dante. Humoristas de primeiro círculo, de segundo círculo,... humorista do nono círculo. Do centro para a periferia, os intérpretes de natureza assustadiça, não vá a piada rachar-lhes o mundo em dois, diluem a eventual maldade que a piada possa transportar. É um desperdício lúdico que pode ganhar contornos competitivos. Enceta-se o concurso: “Achas que sabes desmantelar a piada?” Surgem homens de todos os quadrantes da estupidez para a desmembrar. Regozijam-se nesse ritual como pequenitas hienas. Todavia não riem.
Com a lente errada, a piada surge apinhada de erros. A lente certa dar-nos-ia o seu propósito, porém isso não gera gritos e avalanches — tão ao gosto do Homem contemporâneo. O processo torna-se muitas vezes circular e respostas à piada metamorfoseiam-se, num ápice, em novas perguntas. Eis-nos chegados ao âmago da natureza humana: persistimos náufragos, não há nada de sólido neste oceano imenso que é a vida.
Uma das críticas mais frequentes em relação à piada danosa é esta ser mais do mesmo. A dinâmica é simples: ataca-se o lugar-comum com mais lugares-comuns. Amputa-se a sua estatura com rótulos mesquinhos. A estranheza não é bem-vinda, venha ela de onde vier, seja da piada, seja da interpretação. Mais uma vez o medo que a piada suscita no Narciso. Urge encasular a estranheza num sudário de miragens, não vá o reflexo benfazejo esfumar-se.
O intérprete pitosga esqueceu-se da natureza do bobo: profundamente subversiva. Se à primeira vista parece um lugar-comum, é porque tal foi o desejo do laracheador. O derradeiro propósito do humorista? Introduzir, camuflada, a novidade no armazém dos lugares-comuns e imolá-la com uma fagulha de surpresa. De supetão, incendiar a arquitectura das vossas certezas…
Mas até o incêndio pode ser interpretado, diluído, enjaulado num porquê — eis o jogo infinito.