Roberto Gamito
18.09.22
O vinho escorre-lhe pelos beiços, tipo bosquejo de cascata. É poesia, e da boa, comenta o aspirante a narrador. O pau eriça-se; pronto, está cumprida a vontade de Deus, vozeia o bêbado residente. Não me consigo compatibilizar com esta nova leva de fedelhos: fizeram tábua rasa do tesão. Entre as deixas dos personagens ouve-se uma espécie de eco: É esta vida que levamos.
Verticalizando o pau
dentro das possibilidades
graças aos andaimes do calor
Esqueçam, não é suficiente para encetar o poema. Não me fodas, retrucou o bêbado, já vi obras começarem por menos.
É uma pena, murmura, não passamos de um exercício de estilo, condenados a perecer num papel amachucado pela raiva.
Também quis ser Diderot por um dia, perder-me e afadigar-me em enciclopédias e paródias. Ouve-se um disparo; não há vítimas. Os jornalistas regressam a casa de mãos vazias. Falsa partida, o árbitro pede que regressemos aos nossos lugares. O melhor é não abusar da sorte, vestir as mesmas roupas e pronunciar as deixas do costume, fazer da vida o refrão da estagnação.
Parece evidente que a fuga é uma ilusão como qualquer outra, eis o legado de Sísifo. Estou fodido e sem tesão para a escrita, grita um epígono de Pessoa parido por estes dias que não lembram ao Diabo. E nisto passa a vida, e vamos ficando mais parecidos ao tríptico de Francis Bacon, dor e fome da cabeça aos pés, a tentar mascarar a infância com líricas mancas e desasadas. Ao menos Ícaro morreu na queda. Não tivesse morrido e ter-se-ia transformado em poeta maldito. Do que nos livrámos! Qualquer imbecil serve se o propósito for estragar uma vida, comentou uma mulher de cona calejada.
Dando aos pedais, saltamos de século em século, artifício que te faz compreender a longevidade da cólera e seus períodos de hibernação. O século XI, por exemplo, ensina-nos que a miséria extrema é tão-somente um pretexto para nos metamorfosearmos em canibais. Outro dia, a meio da pronunciação do seu nome, dei-me conta que não a amava. Felizmente, há mil maneiras de desperdiçar a vida, a isso damos o nome de livre-arbítrio. Em todos os lugares as mesmas personagens, em simultâneo protagonista e figurante, consoante o ponto de vista. Só quero que me esqueçam o melhor que conseguirem. Façam de conta que nunca existi. Por amor de Deus, há séculos que a memória não tem um dia de folga. Substituam-na, por favor. A arte não passou de um engano, a tentativa ridícula de engavetar e alfinetar o que nunca esteve parado.
O romancista que levas para a cama fez carreira com palavras de menino traumatizado. Cabrão, não tem vergonha nenhuma. A forma como tenta em vão sair do buraco dava um livro. Não há faísca, não há gumes nem perfumes. Sem perfumes, estamos condenados ao presente. O mundo é tão murcho e fedorento como um cachalote encalhado.
E isto tudo porque me furtei à escrita do poema.
Os declives são teimosos, não descansam enquanto não me virem a rebolar até a sepultura. Como se nos importássemos.
Não é possível que este seja eu, dizemos nós todos diante do espelho. Acabem com os tribunais, podem dizer que fui eu o culpado de tudo.
Estes tempos reservam pouca margem para Utopias, o espaço foi ocupado por prateleiras e ninharias. A obsolescência e a sua lógica expansionista, talvez isto fizesse rir Napoleão.
Já houve um tempo em que tudo isto me arrepiava. No que me toca, honrei o legado de Atlas e de Actéon ao mesmo tempo.
Seja como for, não podemos continuar indefinidamente a dançar entre fojos.
Voltar costas ao poema
quando o poema aparecer
não passar cartão à sua voz.
Não há nada a temer.
O inferno
o cume da organização.
Tudo no sítio.