Roberto Gamito
29.10.21
A casa, a qual havia sido passada de geração em geração, ardeu por completo num incêndio que se crê ter sido provocado pelo fogo, eis as palavras de um jornalista de nomeada. Ainda dizem que o jornalismo está morto e não tem carinho pelos factos.
Que o fogo é o maior pirómano, não nos oferece qualquer dúvida, todavia, fartos do ramerrame do quotidiano ao qual regressamos cabisbaixos e sem ganas de o transcender, não abdicamos da esperança de um dia nos cruzarmos com parangonas aptas a nos retirarem do marasmo, qual pinça sem Parkinson de uma máquina atulhada de peluches. Com efeito, tratava-se de um incendiário a ensaiar no quarto a sua obra ulterior. Correu mal, ninguém nasce ensinado, mas os pais não o castigaram por isso. Sem saber, arriscara mais que os seus antepassados. Jogar fogo à casa do outro é um desporto que não requer talento por aí além, ao contrário da arte entusiasmante de regar a gasolina o nosso lar. Temos orgulho em ti, disseram os pais, os quais engrossaram as fileiras dos sem-abrigo da cidade.
O avô fora a sua grande inspiração. Reza a lenda que aos sete anos fora capaz de realizar um cerco a uma aldeia. Para tal, precisou de uma carrinha de caixa aberta apinhada de jerricãs de gasolina e um altifalante com sons de cavalos aos pinotes e mongóis aos gritos. A aldeia permaneceu em estado de sítio durante seis dias e só não ficou mais porque o Benfica jogava nesse dia. Desafortunadamente, pelo menos se virmos o episódio do ponto de vista de quem leva a vida a fabricar documentários, a diplomacia foi obrigada a arregaçar as mangas, pondo um ponto final neste Ilíada caseira.
Este avô foi responsável por inculcar no catraio cujo nome não importa referir, dado que Joaquim Asdrúbal não é um nome do qual nos possamos orgulhar, o gosto pela fagulha, a tal ponto que a primeira frase do pirómano-em-flor fora esta deixa carregada de simbolismo: “detesto sushi”.
Aos doze anos de idade, juntamente com três amigos, fundou a sociedade dos Amantes da Labareda. No primeiro trabalho do grupo, decidiram assar um dos elementos. Todos concordaram: o simbolismo do número três é superior ao do quatro. Se queremos eternizar a obra, não podemos pensar pequeno, eis o veredicto que condenou um dos elementos às cinzas, o menino Acácio Albino.
Naqueles dias, éramos livres, eis uma das entradas do diário de Cândido Afonso, um dos elementos do grupo, hoje bancário. É comum vê-lo referir-se a esses tempos como uma escola: sem essa temporada de vândalo não seria o bancário que sou hoje, comenta Cândido. Posso ter trocado o incêndio literal pelo incêndio figurado, porém não sinto que abrandei. Sendo verdadeiro comigo próprio, creio que agarrei este emprego pela oportunidade de incendiar vidas em barda, graceja Cândido antes de ludibriar mais um velhote com propostas duvidosas.
Num ano que não importa apurar, após vários obstáculos de natureza judicial, os elementos ganharam uma bolsa de estudos para filhos de antigos pirómanos. Foi precisamente nesta altura que o nosso personagem principal catapultou a sua vida para a estratosfera. Foram dias de fartura. Além da mencionada bolsa, recebia a bolsa destinada a filhos de antigos bêbedos e demais subsídios que lhe vinham parar o colo. Entre uma coisa e outra, a fim de se camuflarem na sociedade, entraram para os bombeiros. O motivo? Passarem por boas pessoas e confeccionar piadas badalhocas com mangueiras.
Em todo o caso, o seu nome crescera tanto que muitos o viam como artista contemporâneo. E nem isso era bom. A reputação de um artista contemporâneo poucas vezes consegue vir à tona da lama.
Em Lisboa, Joaquim, já com os seus vinte e picos, sob a tutela de uma cadela exemplar, a qual cresceu graças às tetas fartas do álcool, começara a questionar-se sobre a razão do seu fado. Ao ligar a televisão, vira por diversas vezes a concorrência no mundo dos adultos, e o departamento do fogo posto não era excepção. Além do fogo, tinha outra paixão ardente: os livros. De facto, foram estes objectos empoeirados que estiveram na origem da dissolução do grupo. Os outros dois elementos, inspirados na Inquisição, ambicionavam queimar livros, enquanto Joaquim se opunha a essa ideia com todas as suas forças. De que vale reduzir o mundo a cinzas se não fica nenhum registo do episódio?, gritava Joaquim aos ouvidos dos dois papalvos. Tenciono inspirar pelo fogo, quero ser a musa que a musa da memória procura. Uma frase bonita, no entanto, os dois ex-elementos já haviam abandonado o quartel dos Amantes da Labareda.
A quantidade de fogos e foguinhos deteriorara a imagem do incendiário. Em defesa do lume criminoso, cuja imagem estava, a todos os níveis, nas ruas da amargura, escreveu um ensaio intitulado Da defesa do Incêndio e os filhos de Heróstrato, obra recebida com um desprezo líquido pelos críticos.
Grande parte dos anos que se seguiram foi passada em viagens pelos balcões das tabernas mais esconsas, sobre as quais escreveu crónicas naquele tom característico de quem gatafunha poemas enquanto anda a cavalo. Afastou-se da civilização, arrendou um quarto no mato e passou a dividir as despesas com ursos.
Conviveu demasiado tempo com os cucos, saltando de ninho em ninho de molde a estreitar laços com esses seres alados. Os animais contaram-lhe, finalmente o workshop de fabulista que fizera anos antes dava mostras de ser útil, que havia uma lenda japonesa em relação ao cuco. A traço grosso, era uma ave que cospe sangue enquanto canta. Impressionado com a lenda, quisera voar como uma ave. Felizmente os pardais e restante passarada nunca o encorajaram a seguir a carreira de Ícaro; Joaquim interpretou este episódio como mais um falhanço. Sem mais alegrias, passou os últimos anos a contar os seixos do fundo do rio.
Sou um cuco. Estas foram as suas palavras. Morreu no centro de uma poça de sangue, a qual coagulou na forma de labareda. Eis o relato do último elemento.