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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

26.04.21

Esta, amigo ou leitor, é a última carta que escrevo ao meu passado. Homens sofisticados, no papel inteligentes, correndo sem plano atrás dos seus sonhos como quem persegue ficções. Que a vossa interpretação dê uma revolução de pendor incendiário. Que este tempo sentado na universidade nos dê um canudo telescópico para ver além do desemprego. Ontem amigos, hoje adversários. Divergiram, mantiveram-se fiéis à doutrina da repulsa. Atracção ou repulsão, a distância dita as regras. Átomos cheios de auto-estima.

Na folha, posso magnificar o grito até ao infinito e ensurdecer o cadáver de Deus. Neste Natal perpétuo desmantelamos presentes e rompemos laços a um ritmo que diria desaconselhável. O nome, seja ou não celebrado na festa da ascensão ou no festival da queda, será estraçalhado por abutres. És um merdas incorrigível, dir-te-ia se te aproximasses de mim. Calculei que um insulto ficaria bem aqui nesta relação finalmente amadurecida.

Olheiras conquistadas a custo, foram muitas noites sem dormir. Para não me matar, fui obrigado a arranjar um mundo em cima dos joelhos. Atrás das minhas costas, de nariz empinado, a turba partiu rumo à eternidade pelo atalho mais pisoteado da época.
O pó como que se riu. À mesa, garfadas sem intervalo
de molde a entreter o enfado e a solidão ruinosa. Estamos perante um esboço que não consente o apuramento. Sendo assim, contentemo-nos em pagar mais uma rodada aos demónios da hesitação.

Sem norte que me ilumine, cheguei a casa sem vida
despedaçado como um cadáver caído de uma falésia.

Necessitamos urgentemente de uma torção luminosa. Respiramos de alívio, renovamos o contrato com a rija húbris. Risos.
Só a carne — refiro-me ao pensamento —, há que censurar a salada mental ou, imagine-se, receber de braços abertos a beleza hoje fora de moda de ficar sem palavras. A vida interpela-me sem que eu tenha mão que a agarre ou escreva.

Na boca dos outros, sou resumo medíocre. Faltam-me as palavras para argumentar, os meus lábios, por mais que tentem ou acertem, são incapazes de pintar o meu retrato.

Fecho os olhos
ponho o meu coração para ver ao longe
tentando perceber a duração do amor.

Merda, cedi ao facilitismo. Regressemos sem medalhas ao nevoeiro prolixo.

Sou uma floresta em chamas, eu próprio, enquanto animal, fujo de mim. Bando de estorninhos em mutação. Quebra-se-me o fio de raciocínio, cai a ideia funâmbula. No solo, diminuído pela queda, dou três passos para trás, diminuindo as parangonas. Receio, e já não é de agora, que a vida não seja senão uma correria em círculos no centro da qual uma carcaça postiça nos seduz. Um engodo bem trabalhado pela ausência.

Do outro lado da história, a crueldade de abrir a boca para não dizer nada além do óbvio. E nós festejando em círculos de coristas. Cada refrão uma espécie de verdade. Sabes que mais? Isto é uma crónica e não é, conquanto estimes a deambulação espaventosa do escriba. Mas tudo isto aconteceu na primeira parte. Na segunda, contentámo-nos em segurar a derrota. Aventurar-me-ei um pouco mais? Deixo o peixe levar a corda ou começo a investir contra ele?

Terminemos por agora. Eu estou destroçado qual poeta que perdeu a mão no seu último poema.

 

Artista sem mão, Roberto Gamito

 

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