Roberto Gamito
30.09.23
O tom de voz usado pelo grupo, do qual sou apenas espectador, recorda-me da minha condição de forasteiro. O meu, inspirado num abismo, não vai nessas cantigas. Nisto dou conta que só logro conversar com desesperados. Regressei à minha vida ontem, e a interrogação, que me ocupou a cabeça e de seguida a mão, incidiu sobre os obstáculos, os verdadeiros e os fictícios. É como se um eu que podíamos ter sido tivesse saído a correr da nossa vida actual rumo ao futuro e tivesse semeado generosamente obstáculos pela nossa biografia. À experiência cabe a ingrata tarefa (ingrata porque amiúde votada ao fracasso) de separar o trigo do joio no concernente aos obstáculos.
Rompo com o vaivém monótono da vidinha, pêndulo de duas perninhas capaz de adormecer sereias, e dirijo-me com ganas de povoar a cabeça com luz e perfumes. Um jardim, uns patos, flores para as quais não tenho nome. Cogito: o melhor é sair daqui o quanto antes, seria uma tristeza inclinar-me para a poesia. A língua, que muda a própria natureza, é um jardineiro ébrio. Os dias acotovelam-se dentro da cabeça e deles ignoramos quase tudo. A concentração já não abre caminho através da floresta do silêncio, nem obriga a vir à tona certos nomes. É o desfazer-se da verticalidade imaginada — se preferirem, sonhada — na juventude. Os dias foram surgindo sem que lhe farejássemos as intenções, uns atrás dos outros, subtis e liliputianos, e arrumaram com a altura do gigante. Não demos conta da cilada.
Possível epitáfio: vou descer fingindo que acredito. Adiante. Faço o possível por não engolir o labirinto, confidenciou-me o Minotauro, nas entrelinhas da minha respiração. Apagado o fogo, desenhamos nas cinzas um nome que outrora confundimos com norte.
O olhar frio é ineficaz: as obsessões apodrecem a caminho da mão esquerda. O cérebro, o citador de ruídos, principiou a encher-se de mentiras; crê ver no estratagema um alívio. Harmonizei os falhanços no silêncio, pelo que não esperem nenhum canto de cisne. Sou seu súbdito, em troca dotou-me de uma outra espécie de fome. A certa altura está-se cheio de ser-se olhado como animal morto — e depois?
Não fosse ter inventado um falcão a inspeccionar a minha pequenez lá do alto, e teria sido uma manhã como as outras. Este apeadeiro foi incendiado e segui caminho. Voltei-me para os versos de poemas antigos e chorei diluvianamente. O corvo de Noé ter-se-ia banqueteado com esta selva de cadáveres. Em todo o caso, desejo saúde e longa vida aos meus fantasmas, e eis que a luta recomeça. Nós não estamos condenados a abreviarmos a vida num grito.