Roberto Gamito
16.06.21
Sinto-me a caminhar sobre gelo fino. O peso é o meu inimigo; atravesso o lago gelado ao sabor das piadas. Talvez a leveza me salve. Seria terrível se a arte, ao adicionar peso ao corpo, nos castigasse com o afogamento.
O fim do mundo? O apocalipse já chegou, está é mal distribuído.
Hoje acabou o amor, diz o homem destroçado à mulher. Peço desculpa. O melhor é voltares cá amanhã, pode ser que tenhas sorte. Pode ser que a sorte chegue para os dois.
Diálogo improvável.
— O que vais fazer hoje?
— Nada de especial, vou passar a tarde a olhar para uma foto de infância.
Mas o poema convocará cada estrangeiro de dentro da noite para o coração da luz. É preciso continuar, mesmo que saibamos onde parar. No norte não há norte.
O velho tomba na rua, aparentemente sem causa. Segundo o parecer do vate, foi abalroado por uma memória. Está-me sempre a acontecer, prossegue o bardo.
Tenho receio de disciplinar o meu coração para a frieza. E depois? Nem sempre o que é útil no presente nos ajudará no futuro. Síntese porreira.
A., de 80 anos, passeia um cão de loiça. A trela está esticada, o canídeo está irrequieto, está com fome de vida.
Durante o confinamento a casa foi transformada em palco. Portas a fingir, entradas e saídas de fazer de conta. A vida transformada pela peste numa peça de vaudeville macambúzio.
Há navios à espera de autorização para descarregar os contentores apinhados de demónios. A pandemia lixou os planos do Diabo. Tenho o dinheiro todo empatado, regurgita o senhor dos mil nomes.
Nas ruas mais perigosas, os velocistas treinam o sprint com um punhal na mão. Aconteça o que acontecer, não abrandar.
O assassino lançou a dúvida em pleno julgamento, levando ao rubro um bando de filósofos. Segundo ele, a pena é excessiva, ninguém está inteiramente vivo. Matei apenas o bocadinho que estava vivo, comentou o semiassassino.
A economia como homem dos robertos. É ele que nos guia, agachado, ora para fora de casa, ora para dentro. Choramos quando lemos um poema sobre liberdade, todavia ignoramos a razão do aparecimento das lágrimas.
Um fosso entre as pessoas. Será o amor capaz de dar o salto?
Entre as pessoas, crocodilos imaginários.
A temperatura de um livro é medida pelo número de ideias que é capaz de gerar aquando da sua leitura. A frase é dita sem convicção.
Outra vez o poeta: gerei um verso excepcionalmente inesperado, fiz gato-sapato da vida e da morte. O meu destino encontra-se boquiaberto.
O suicídio é uma hipótese. Mas só pode ser testada uma vez. Pelos padrões da ciência não prova nada.
O meu coração é uma província inabitável há vários anos. O caminho está feito. É preciso voltar atrás se a intenção for caminhar. Ensino o meu coração a fitar o outro sem se entusiasmar. Víscera-mor enquanto cão amestrado.
Noutro mundo.
Há dez anos que não nasce uma criança. Foram encerrados infantários, amas, lojas de roupa de bebé. Seguem-se primárias, escolas básicas e, por último, secundárias. O mundo fechado capítulo a capítulo.
Os jornais incentivam os poetas a desinfectar as mãos antes de se aventurarem em províncias estrangeiras. A poesia está, mais uma vez, morta.
Falta pouco para começarmos a disparar contra palavras. Falta pouco para humorista surgir como sinónimo de déspota.
As palavras ainda não estão obsoletas. Há dias, meia dúzia delas foi capaz de me derreter o coração. Talvez resida aí algum tipo de magia. Adiar o acto de atirar a toalha ao chão. Ter fé no dia seguinte como num Deus.
Um tiro na nuca desse dia que me assombra. Arrastá-lo sem alarde pelos degraus do poema, eis a minha poética.
O boneco, que imita o bebé, ri e chora.
O bebé, que imita o boneco, cala-se e permanece quieto.