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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

02.07.22

A laureada morte prescreve o ritual, do qual quase tudo se ignora, segundo o qual o druida imprevisto, cuspindo na mercadoria, fará a adoração do fetiche da extinção, saltando de animal em animal, retrocedendo até ao organismo primevo, ou à faísca que pegou fogo à pólvora até então húmida, coisa que maravilha o Diabo, narcotiza-o, deixando-o, não à beira da loucura, mas no seu coração. O amor, se usado em plano inclinado, é um camarote com vista privilegiada sobre o abismo. As coordenadas nas quais as mãos se libertam da servidão de serem produtivas e se agarram à vida ou porventura à morte. Um espaço envidraçado, género estufa, onde os corações crescem desabaladamente abraçados à sua música de eleição. Sociedade da transparência, afiançam eles. O sangue, nos seus começos, revelava-se uma oferenda do recém-decapitado ao deus sequioso. São lugares verdadeiramente infernais, as ruas. A entronização da rosa e os venenos caleidoscópicos que a envolvem, embora por muito tempo tenha permanecido um segredo, fora o motivo principal para o eremita baptizar cada passo. Enquanto quieto, os olhares postulavam-no sábio, enquanto o próprio acreditava ver um beco, daí ter interrompido a marcha. Os ubíquos problemas de interpretação. Etiquetar com um nome confere-nos segurança. Um dos mais antigos e duradouros estratagemas do homem. Aproveitando a distância galopante entre o cinismo e romantismo da coisa, a cidade cresce. Cada interstício é local de negócio ou de futura miséria. Os locais de passagem, observou-o o capitalismo, constituíam um peso morto. Necessitavam de ser abolidos.

Vendo-se a chegar ao fim do rosário das tácticas, o sedutor começa por sublinhar os elementos que havia já aludido, dando uma ênfase bizarra, lenta e estudada a cada centímetro do corpo da presa, como se esperasse ressuscitar a magia arcaica das palavras. Não houve época de ouro. Se oxidou, se hoje vemos os tempos áureos de outra forma, não é ouro. Quando muito, idades de pechisbeque que se revezam e que, envergonhadas, hábito eterno, se apropriam do estatuto do ouro. Isto não acontece somente por razões económicas. O Homem adora ser enganado; vai até ao fim do mundo se for preciso de molde a escutar uma nova mentira. O betão oferece ao homem novas possibilidades de esborrachar a cabeça. Uma das grandes conquistas da humanidade. Imaginem o que era, no princípio dos princípios, o homem chegar a casa, após uma caçada que não deu em nada, e querer dá vazão à sua fúria tendo ao seu dispor uma parede de palha para disparar murros, pontapés e cabeçadas. Legamos, querendo ou não querendo, rastos. Seremos procurados. Não há milagres, apenas crimes pelos quais somos procurados. O que acontece é que a morte, o amor, Deus e toda a pandilha de palavras com as quais se costuma abalroar a fluência de uma frase, qual ponto final que caísse do céu impondo um silêncio inesperado, fareja-nos e acabará por nos encontrar. Preparemo-nos sem esperanças no desfecho favorável. É uma corrida de perdigueiros. Somos uma peça de caça miúda. O que difere de homem para homem é a ordem dos perdigueiros que nos abocanham. Lembrem-se de Actéon, se precisarem da muleta do mito. Evitem inchar o peito, não há caça grossa entre nós. A filosofia, a religião, a ciência e a arte são artifícios para nos iludirmos do facto de sermos caça miúda.
A estupidez, que julgámos morta, pois fomos alvo da seta do Cupido, ressuscita todas as manhãs pelo próprio pé, sem auxílio de deuses, estudada que está a morte.

Se estacamos ao sermos seduzidos por uma ideia, logo somos emboscados por uma matilha que ajusta o tom, inicia alto e vai minguando, como se o afinasse, qual grupo de conspiradores amadores. Outros, que talvez ainda caibam neste texto, cedendo ao perfume acre da libertinagem, de goelas e braguilhas abertas para o que der e vier, interpelados por freiras postiças, as quais recrutadas na espuma dos dias. Pessoas há, e nem são das mais raras, que não têm a mínima hesitação em caracterizar um Homem dos pés à cabeça, do rés-do-chão à mansarda, com um olhar, vício de consumista, de quem está habituado a ter a vista desimpedida no armazém, capaz de abarcar tudo num trago de pupila. A nós, estrangeiros, que nos desentendemos em todas as línguas, devemos regatear com o coração o valor de todos os cheiros. Exumam para imortalizar quem nunca esteve vivo. Não vou atrás de tudo, o mundo é uma bola, mas eu nunca fui um cão. Sou tão-somente um vagabundo a sorrir na rua dos apetites, sem que me consigam raptar os olhos.

 

As ruas e o estrangeiro

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