Roberto Gamito
28.12.21
Eis o nosso assassino. De estatura mediana, era de compleição delgada, a tender para o magro mas sem ferir as vistas, braços capazes de carregar uma saca de cimento sem lamúrias, naturalmente musculado, que é como quem diz, músculos criados no campo sem recorrer a rações cheias de químicos, sem carnes adicionais que, em ocasiões de disparos fotográficos, nos envergonham a bom envergonhar. Todavia, esta não é a descrição do assassino. O nosso personagem era um tipo normal, tão normal que é impossível decompô-lo em atributos sem adormecer.
Sob outros aspectos, porém, a sua aparência tinha algo de encantador. Refiro-me, pois, ao inventário mental. Aquela cabecinha era um hotel de demónios e fantasmas. Pelo menos é assim que o vejo e não há tempo para o confirmar — por ora contentemo-nos com a especulação. Dir-se-ia, admitiu a minha confiável informadora, a qual estava vestida de enguia, que naquelas veias corria sangue vermelho. E — ousadia da parte dela— o sangue de um verdadeiro assassino e poeta. De que modo as veias deste sujeito conseguiam albergar tanto sangue permanece ainda hoje um mistério.
Não daria o meu patrocínio a tão absurda informadora, confidenciam-me. Em boa verdade, tenho de labutar com o que tenho, não há orçamento para contratar melhor. Se tivesse meios, adquiria os serviços de uma informadora enfarpelada de hiena.
Embora me contradiga um pouco, felizmente estamos no século XXI em que a contradição é o prato do dia, urge dar-vos um lamiré sobre o nosso assassino. A cara dele foi o que o conduziu a essa vida. De facto, a face, que a turba via como velhaca apesar de ser uma jóia de moço, contribuiu desde tenra idade para o seu êxito junto de alguns dos zaragateiros mais famosos da aldeia. E de soco em soco lá traçou o seu caminho. Humilde, principiou pelo soco, avançou com a medicinal cadeira nas costas, passando pela cabeçada carinhosa. Um dia foi acometido por uma epifania, qual pessoa devotada à sua arte, e disse: “Se quero continuar a progredir na carreira de zaragateiro, não posso continuar a distribuir papo-seco a qualquer macaco, preciso, como se diz hoje, de expandir o meu portefólio de velhacarias. Vou começar a matar pessoas." Os três ou quatro gatos-pingados esmurrados minutos antes concordaram com a sua decisão e de seguida foram para casa inventariar nódoas negras.
Ao contrário do que costuma suceder quando abrimos negócio, o nosso assassino, vamos chamá-lo Irineu, teve a ajuda do seu melhor amigo — o qual se ofereceu para morrer às suas mãos.
Sobre a história que correu, na altura, sobre as relações de ambos, e que, verdadeira ou inventada, nunca foi oficialmente desmentida, nada tenho a acrescentar de extraordinário. Há quem afiance — atentem bem nas más-línguas —, que não passou de um ajuste de contas. Poucos são os que vêem no sucedido um acto de verdadeira amizade, do género: “Precisas de ganhar confiança na tua arte, terá dito a vítima, ofereço-me, assim como assim já não faço nada de jeito com a minha vida”.
Entretanto, os minutos perderam a noção do tempo e passam a horas, as horas a dias, e a areia vai escorrendo da ampulheta a um ritmo estonteante, tanto que nos mijamos nas cuecas — sim, envelhecemos. Caramba, não avancemos já para o fim; recuemos para idades menos provectas.
Como qualquer pessoa metida em negócios, o assassino tinha as suas preocupações. Começamos com sonhos e acabamos com dívidas.
As dívidas atormentavam-no, o lucro que retirava dos assassínios não dava para cobrir as despesas. Irineu não era menino para desanimar. Porém não há forma de fugir à realidade. Com efeito, o dinheiro começa a escassear e principiou a cortar — perdoem-me a brincadeira — na qualidade das facas. Era vê-lo, de madrugada, colado à televisão a babar-se ante os anúncios de facas supostamente fantásticas. Nunca vou poder exercer a minha profissão na sua plenitude. Ai, que triste fado o meu, lamentava-se o nosso assassino sem posses.
A qualidade das suas ferramentas diminuíra a ponto de começar a assassinar por prestações. Por sorte, a vítima não era alheia à situação financeira de alguém nascido num berço de palha. Ao ver o assassino desolado, consolava-o: “Não chores, camarada, já me fizeste um corte no pescoço, o mais difícil está feito, amanhã vens cá e acabas o trabalho.”
Evidentemente, havia quem não quisesse morrer — gente dessa há em todo o lado. Não morrer, comentava Irineu, acarreta uma certa má vontade e, consequentemente, um maior dispêndio de energia e tempo. Veja lá se percebe o meu lado, sou assassino, não sou palestrante, o meu ofício não é convencer pessoas a ir desta para melhor. O que quer que eu lhe diga, ripostava a eventual vítima, não acho jeito ser assassinado. Pronto, vai obrigar-me a nomear as vantagens de permanecer morto. Convença-me, tenho todo o tempo do mundo, retruca a vítima, tem o senhor, comenta Irineu, mas eu não tenho, ainda queria matar outro desgraçado antes do jantar.
Irineu não logrou acompanhar o mundo. Os preços das facas aumentaram (já para não falar da mania de muscular os pescoços) e ele, que matava por amor à arte, já assassinava — ou melhor, tentava — com faquinhas de plástico, daquelas que levamos para o piquenique. De respeitado carniceiro passou a anedota. Ali vai o ex-assassino, gritava a turba com uma toalha de piquenique a servir de turbante.
Foram tempos difíceis, começou a aceitar trabalhinhos, ele que antes dizimava uns e outros sem receber algum. Na melhor das hipóteses, rapinava o que havia na carteira. O seu tesouro? Uma arrecadação apinhada de caixas de sapatos nas quais abundavam talões multibanco. Seja como for, teve de se fazer à vida.
Certo dia, encarregue de apertar o gasganete a um gajo qualquer, foi dar com o sacana dentro de um poço. Sentiu que a morte se adiantara, que lhe andava a retirar o pão da boca. Pode ser que dê, pensou Irineu. Com efeito, era indispensável que o cadáver fosse içado cuidadosamente do poço para que não raspasse nas paredes do poço. Esfoliei-o até à morte, eis uma frase que estava fora de questão. Teria de dar um jeito à cara verde — lá teria de recorrer à maquilhagem da filha mais nova. Uma vez levada a cabo esta precaução preliminar, apresentou o corpo a quem era de direito de molde a receber os 50 paus — sim, neste país não se dá valor aos artistas. Ah, mas este não é o Carlos. Foda-se, disse Irineu num tom de tenor. Cansado de tantas dificuldades, desistiu do nobre ramo do assassinato e abriu uma rulote de bifanas, negócio que gere com êxito estrondoso desde então. Ao que parece, as pessoas estão mais dispostas a comer bifanas que a morrer.