Roberto Gamito
01.01.21
Paisagens como bugalhos. Cárcere de carne, arquitectura óssea. Corpo a raiar o humano. Furtava com as mãos atrás das costas os nomes esquecidos dos pergaminhos das estantes mais altas de Alexandria. Entre uma revolta e outra, sentava-me onde os cães defecavam e esquecia o mundo. O labirinto ia ter comigo, perseguia-me a salivar até ao cume, apinhando-me de bifurcações. Há décadas que o número de dúvidas não parava de aumentar. Cicatrizava o amor em sépia com a mão mergulhada nas letras, polvo mutilado de cinco tentáculos legando ao predador um maremoto de tinta, linhas atrás de linhas, a epopeia babélica do elipse do Homem, vertigem ilusória de acagaçar míopes, precipício erigido do nada ou do branco, uma noite posta em verso. Falaciosa jornada com os cronistas da mesma na valeta. O coração entregue à tradução, o cérebro numa língua estrangeira, ou vice-versa. Afoito na tristeza, na clareira do asteróide esquecido hoje entregue às ervas daninhas, desapontando a profecia mais risonha que a sacerdotisa me havia confiado, simulava a minha própria morte com veemência de autor. À tardinha, numa vagabundagem pelas ruas empoeiradas que o amor abandonou, recebia pequeno-burguesmente, de pupilas destroçadas, o ocaso pontual. A ferida reaberta pela realidade. Ovídio viu mal a coisa: há sempre espaço para as mesmas feridas. Corpo hospitaleiro recebendo de braços abertos os bastidores de uma relação falhada. Calor numa métrica contorcionista, cio nas entrelinhas. Dedos perdigueiros bisbilhotando no verbo o nome ausente. Tempestade impune. Saga do eco tímido até ao grito. Onde há fogo não há livro, onde há mulher linchada não há liberdade nem pensamento. Paz à alma de Hipácia.
A monotonia parasitária. Na orla da frustração, consentimos ao tempo que nos engaiole numa dança pobre feita de passos em falso. Bem-vindo à legenda de um quadro cuja cratera em crescendo, devido ao galope paulatino do lume, não poupará nada nem ninguém.