Roberto Gamito
11.03.21
Embora pareça aos olhos dos abutres uma pessoa perseverante, que se recusa a morrer, sou 1/7 niilista, visto que às segundas-feiras não acredito em nada. Em tempos de negação, em que todo o ser humano — animal em formação — ostenta uma cara esfarrapada de alguém que escapou por um triz ao matadouro sem metade da vida, ouso exibir um sorriso mínimo, típico de quem nunca teve aulas de como lidar eruditamente com o nervosismo. A vida é o que é, nem grande nem pequena, uma coisa que não vale a pena exibir no Instagram. Postas lado a lado, a salada de frutas é mais fotogénica que a vida. Contudo, é isto que me dá força para continuar vivo, é dos poucos lugares onde podemos pensar sobre o suicídio.
Respirar é julgar, escreveu Camus, pelo que, enquanto asmático, dava um péssimo juiz. Entre o justo e o injusto pouco há de diferente, daí o martelo do juiz que, pontualmente, dá ênfase ao ridículo da existência. Não me interpretem mal, como é vosso apanágio, mas à data do crime há diferenças substanciais, porém, ao pensarmos de forma mais lata abarcando vários séculos damo-nos conta que o que é hoje um crime amanhã é lei. E vice-versa, dado que o pensamento é uma dança composta de avanços e recuos.
Sendo o mundo como é, um circo governado por palhaços proficientes na loucura, não podemos esperar uma sucessão lógica de acontecimentos. Não nos espantaria por aí além se viesse um anjo ter connosco e nos dissesse que o mundo vai acabar porque um tipo, ao tentar matar uma mosca, deu uma bofetada num padre, esse estafeta do amor. Resta-nos cantar, com esta voz herdada da melhor família de canas rachadas, uma serenata com uma lágrima no canto do olho, enaltecendo a perfeição do homem à nossa amada, a guilhotina. Neste mundo vertiginoso entregue aos bichos desnorteados, em que o apego e o compromisso são mitos, a perversidade e a virtude acaso ou capricho. O assassino e o filantropo matam ou salvam porque perderam uma aposta. E partem de supetão para o próximo episódio sem olhar na cara de quem estava no centro do jogo, tal como fazem os médicos actuais. Assim como assim vais morrer, de que adianta dizer que estás doente ou são, declararia um médico com nada a perder. Vamos todos morrer, meu querido; são 100 biscas, podes pagar à saída se quiseres continuar vivo.
Deus está morto e, segundo as notícias mais recentes, permanece morto, logo temos de nos fazer à vida sem intermediários divinos. Neste caso, à falta de uma estrela guia barbuda que nos conduza à acção benfazeja, orientar-nos-emos no sentido de um não sei quê. O costume, dirão os mais exercitados de miolo.
Imbuídos no espírito da nossa época, que em termos de hierarquia demoníaca é dos mais poderosos, não obstante em jantares de família parecer um tipo impecável, podemos assegurar que estamos a falar de eficácia. Todavia, se a loucura não se tiver entretanto apossado dos nossos neurónios, supondo que não os penhorámos para comprar alguma bagatela, não ignoramos que em alguns casos, se não mesmo em todos, estamos a perseguir uma eficácia de pendor absurdo. Queremos ser eficazes quando desconhecemos todas as variáveis. O importante é fazer, mesmo que o resultado seja pior que estar quieto. Como o pensamento é inimigo da eficácia actual, nunca percebemos o porquê das coisas descambarem em equívocos graúdos ou desastres com corpulência suficiente para ir pousar às parangonas. Enfim mais uma tirada brilhante do Homem do século XXI.
De qualquer modo, compete-nos a nós, novelos de contradições, responder à pergunta que nos é posta pela ausência de sentido, esse grão de luz que se assoma por entre o sangue e os gritos vindos de todas as direcções, dizendo o seguinte: Nós ainda não estamos mortos. Pode ser que seja suficiente para não nos adicionarem à pilha de mortos, ao número crescente dos caídos. Se vos derem como mortos, não se aborreçam, são pessoas a fazer o seu trabalho. Aliás, esteja certo ou errado, a mando da eficácia contemporânea, o importante é mostrar trabalho.
Citando Camus, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o Sol, não sou grande nem pequeno, acrescento da minha lavra, sou humano. É por isso que usamos chapéus, não queremos ser confundidos com os ursos.