Roberto Gamito
22.06.22
Estava eu no tiro aos patos com a minha espingarda fictícia, matando pelo menos uma dúzia, dado que os patos, ao contrários dos homens, são incapazes de distinguir a realidade do humor quando comecei a pensar no almoço. O mais das vezes, segue-se à sopa um prato de carne, e à carne uma sobremesa. A preguiça intelectual, prima sedentária da poesia, é o ofício de sintetizar o mundo às três pancadas, volta e meia poeticamente. Que este menino o consiga com aparente facilidade sem pactos demoníacos não esconde a labuta incansável para aperfeiçoar a mão cantante.
Longe de transmitir factos, isso deixo para quem não sabe, estorvo o clima assim-assim aumentando a tensão, perturbando as palavras moribundas a toque de bordoada e, em calhando, enfureço os arquivistas de lugares-comuns. Cada palavra é cuidadosa e caseiramente escolhida de entre os mais potentes venenos. Fora com os bálsamos! As perífrases, distantes de serem diluições, são, além de exercícios de estilo, manobras de diversão. É a caça no seu melhor. Imune a uma certa gama de bacoradas, transmudo com entusiasmo os disparates em voga cuspidos pelos radicais sazonais em belos nacos de prosa. É hora de dar ao dente, diz o lobo mau.
A envergadura do artista mede-se pelo seu apetite. Nunca se conformar com migalhas, sejam elas oriundas de bolos ou de gratificação momentânea, exige uma espécie de coragem na defesa de uma causa impopular. A irrelevância. A arte é a activista da irrelevância. Saúdo escritores que, apesar virarem costas ao espírito da época, batendo-se na batalha mais desigual de todas, um contra ao mundo, viram a vitória chegar postumamente.
Assisti com a alma de cronista a uma procissão de medíocres. Emplumados graças aos ecos, voavam rasteiramente cacarejando nas ruas mais movimentadas dos lugares-comuns. Tranquilizou-me que, apesar de tudo, ainda havia poetas cujo labor era armadilhar palavras ontem inofensivas de pólvora. Um dia a minha cólera rebentar-vos-á a língua, ego, o eu e ensinar-vos-á o que é um Homem. Por isso, sobrevivo. A ideia, que aos poucos ia sendo demonizada pelos meios de comunicação, entrará um dia no vosso castelo de cartas qual bárbaro com o machado incendiado e reduzirá as vossas certezas a cinzas. Numa era despojada de poetas e deuses, o objectivo não é a verdade, é o assassínio.
Para o observador ingénuo, a homogeneidade é sinónimo de paz. O ideal é começar lento, descontraidamente e com agenda em branco, exibir umas trivialidades numa língua coxa e servil e preparar-nos para desarrolhar o bicho que há em nós. O estalo da rolha será como que uma guilhotina a abater-se sobre os papagaios. Desse silêncio que se segue ao inesperado hei-de erigir a minha obra, sorrirá o poeta. Eu canto a dinamite.