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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

05.02.22

Como começar a pensar pela própria cabeça? Recorrer a pessoas, estranhas e conhecidas, quartos ou quadros, folhas em branco, árvores e perfumes, penas e guilhotinas: eis algumas hipóteses.

A paixão como vereda estreita onde o discurso prolixo se despede dos seus barroquismos. Interessa-me isto: por que caminho regressamos ao estádio animal. Que itinerário escolhemos quando vamos da humanidade à animalidade? Seguimos a via da cólera ou a da fornicação? Mas antes há que responder: de que forma sai o Homem do silêncio? Tranquilo ou ofegante: eis tudo.

Tangentes da nova escola, que tocam de raspão mas alardeiam profundidade. Profetas e poetas da tangente. Nuvem de arpões mansos.

A imaginação parte de um pormenor, ingressa nele com ganas, fá-lo ganhar volume, dentes e asas e só descansa quando dele brotar um monstro. A obra do olhar, a sua actuação sobre a paisagem ou um corpo. Eis a missão da arte: fazer de um olhar, de uma rosa, de uma paisagem uma porta.

Em certos funerais, o mínimo choro pode dinamitar uma cidade. Há uma tensão à beira da explosão. Os segundos são frágeis: o mínimo choro, soluço, sílaba pode trazer ao mundo uma nova geração de carpideiras. Diante da morte, o choro metamorfoseia-se em dinamite.

Há, no eufemismo, tão caro ao século XXI, um instinto de defesa, o qual denuncia o medo da palavra. O Homem acredita ter descoberto a fórmula para diluir a noite: só precisa de continuar a falar.

No fundo, Duchamp copiou as crianças desarrumadas. Pôr o vulgar fora-de-sítio é o desporto predilecto dos catraios. Eis uma forma de nos escaparmos a reprimendas: não sou desarrumado, sou artista.

Ser artista é pôr algo num sítio imprevisto. Seja o amor numa folha antes em branco ou o urinol numa exposição. A paixão arromba-me o coração e a mente e origina uma desarrumação duchampiana. Tudo muda de sítio, tudo é retirado artisticamente do contexto. Ser artista ou amante, que neste caso vai dar ao mesmo, é testar os limites das convenções. É urgente transformarmo-nos na cousa amada.

Na margem de uma praia remota, o cachalote, vazio como um pneu furado, foi cortado aos pedaços para que as crianças e os poetas consigam transportá-lo em cantigas. A falta de compromisso com o gigante, que é como quem diz, o empobrecimento que condena os grandes voos. Actualmente, não há carapau que dê à costa e permaneça inteiro nas nossas falas. É preciso tornar o mundo mastigável. O enorme necessita de ser desmantelado de molde a não assustar os animais timidamente verticais.

Se não existe espaço para mim no palco, sou obrigado a fundar outro inferno.

O quadro habitado de personagens mudas — uma espécie de febre que cada um traduz à sua maneira. Quem exibe hoje o gosto de permanecer à espera diante de um quadro sem se envergonhar? O quadro do qual despertam socos e pontapés.

Entre um quadro e outro, o homem segreda à sua parceira: Beijo-te, hospedo a minha expedição de expectativas no teu olhar. Que ridículo, retardatário no capítulo do namoro; já ninguém se expressa assim. Quando visto de fora, o Homem é apenas um Homem. Se visto de dentro, uma guerra de pequenos demónios abafada pela verticalidade. Imagino uma exposição constituída por Homens a braços com os seus fantasmas.

A tristeza e a dor dos outros pode ser engaiolada num poema ou num quadro, já a nossa é um animal esquivo, pensa alguém diante de uma tela em branco.

Uma frase para pendurar em todas as paredes do mundo. Que frase seria? Quero que os artistas se fodam, eis um exemplo.

Ninguém está verdadeiramente perdido: se bem lido, o itinerário circular desenha no deserto o mapa do teu inconsciente.

Os versos são trajectos sérios e maravilhosamente inúteis. Surgem de sítios imprevistos, como becos ou cadafalsos, no seio das coisas caladas, e ridicularizam, por momentos, a profecia do eclipse da razão.

Com mais ou menos humanidade, há uma verdade que permanece imutável: pedir é inútil se nasceste nas coordenadas erradas. Ter o berço no sítio certo dita uma vida. O local onde se nasce: metros quadrados decisivos. Apesar do teatro humanitário, as desigualdades adaptam-se como ratos a qualquer cenário.

Após uma obra que lhe saiu do pêlo, o aedo cogita: não me posso dar ao luxo de desperdiçar mais oxigénio. Cada verso tem de dar ares de guilhotina, cada poema um barril de pólvora. Quero matar um sem-número de exegetas, quer trazer o inferno às estantes dos livros empoeirados.

Não nos precipitemos, ainda não acabei de morrer e já me estão a pedir — médicos convencionais e médicos autodidactas — que ressuscite. Calma, uma morte de cada vez.

Engaiolar o abismo é um processo viciante. E o mais difícil é fazê-lo sem sorriso de lunático, sem povoar a orla do vulcão de frases sem nexo. Deixem-me procurar a paz na orla de um vulcão em actividade. Não me policiem as órbitas: sou um asteróide indeciso e o fogo tranquiliza-me. Talvez o Homem seja, afinal, filho do Diabo. Sobra-nos isto: enfraquecer Deus ou o Diabo expandindo-os numa obra sem palavras a mais. Existir é estar preparado para ser deixado de lado. A verdade é o prémio da propaganda vencedora.

Não me vês, não finjas que não és míope. E não há nada que se possa fazer quanto a isso: não posso ser o ditador que obriga o teu olhar a seguir determinado trilho. O Eu não é partilhável através da visão.

O progresso é uma história para adultos que estão a vivenciar a sua segunda infância. A palavra dita à beira do caixão é coisa para se infiltrar numa rocha e fragmentá-la. Não sou o tipo de animal que escolhe os grandes portões mas as entradas secretas. Abandonei o perfume e as madalenas, em vez disso ponho o dinamite em circulação através das minhas palavras. O meu sonho é destruir um século inteiro. E também isto: perceber o desespero do leitor que se deu conta que está a soletrar uma explosão, camuflada num pássaro canoro.

Se vamos ser conservadores em relação aos doentes, ouvi eu na televisão. Frase do nosso tempo. Noutros tempos seria suficiente para iniciar uma guerra. Há, nesta delicadeza caquética, uma obscenidade. Ao que parece, o corpo foi retalhado em colunas de excel. Há doentes que merecem abordagens conservadoras; outros, vanguardistas. Se é para morrer nas mãos do disparate, alcunhem-me de enfermo vanguardista. Morreu de quê? Morreu a tentar ser manifestamente diferente. Até onde chega a habilidade de ocultar a barbárie no discurso? Alegam que somos sofisticados, não canibais, porém vemos o Homem fatiado em todas as parangonas.

A medo avança por aí. E podemos, é claro, ver em qualquer trajecto a demanda de um louco. Se o mundo está irremediavelmente perdido, de que nos vale sair do sítio? A vida é um peso interpretável de mil e uma maneiras. Não há balanças erradas nem certas; contudo, todos os homens têm o mesmo peso. Sem amor, a língua ficaria despovoada de intensidades. Calarmo-nos ou falarmos seria igual ao litro. A vida é o sítio onde o erro começa e acaba, um grito que cavalgamos a horas certas ou a desoras, sem final definido, pese embora a morte nos desminta.

Escrever é sujar lucidamente a folha. Invadi-la com uma miríade de fantasmas e aves de mau agouro. Fica de noite, portanto.

Tenho precipícios nos pés, mas ainda não aprendi a cair. Naquele rosto já não há nada que nos faça sonhar, comenta uma personagem de um romance. É liquidá-lo antes que ponha em dúvida a nossa bateria de certezas, riposta uma pessoa de carne e osso. Corrijo: tenho princípios nos pés, eis o que penso noutros dias mais luminosos. Mas entretanto o punhal já iniciou o seu trabalho nas minhas tripas.

O poeta é impróprio para consumo, resta-nos atirá-lo ao lixo, amachucá-lo sem dó nem piedade. Pode ser que a sua agonia seja capaz de nos educar. Ainda não há canhenhos da barbárie suficientemente explícitos que permitam ao Homem ver-se ao espelho. Daí as dúvidas, daí as escolas do delírio. Em todas as coisas há uma semente de ópio. Dou-vos autorização para me despertarem do torpor se souberem do paradeiro do paraíso.

Se nos tornamos iguais, o Homem torna-se paisagem. Forçamos ligações, forçamos sinónimos, forçamos abraços. A diplomacia afasta-nos da verdade: não há duas palavras iguais.

A amizade é baixar a guarda, confessar a localização da vera porta pela qual o outro ingressará em nós. O parecer colonizou a maioria dos verbos: as portas são hoje fictícias — daí as cabeçadas, quais pardais nos vidros.

O estar parado é desaconselhado. Faltará pouco para se abaterem os homens-estátua. Estar parado é incompatível com a Sociedade das Febres. O ser humano usa uma parafernália de recursos para adiar a catástrofe do silêncio. A paixão — ouvi dizer, não confirmo nem desminto, dado que sou filho deste século — ou a sua ausência faz com que o silêncio possa ser por vezes magnífico e outras vezes hediondo. Não estamos todos no mesmo sítio — como se apregoa ingenuamente. Felizmente, o início é coisa do passado. Minto, o tempo ainda não tinha sido inventado.

Sem a noção de espaço, não havia nada, não haveria prateleiras para pôr tanta mentira. Não poderia haver artistas nem público, nem Duchamp nem detractores de Duchamp, nem casa nem mundo selvagem. Cuidado com o que desejam, pode sair-vos caro.

Que Deus nunca ouça a prece dos ingénuos. Ninguém é educado para ver nas setas pássaros em queda, a não ser o bárbaro com inclinações poéticas, mais raro que deuses, que vê na sua morte uma oportunidade para sorrir.

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