Roberto Gamito
31.12.20
O humor antigo é uma grande cidade vandalizada da qual só conseguiu escapar, esfarrapado e sem braços, Aristófanes. A lista de comediógrafos suprimidos pelo tempo — ou pelo poder — é extensa: Magnes, Mulo, Eupólide, Crátinos, Epicarmo, Ferécrates, Platão (não é o filósofo), Antífanes, Alexis, Dífilo, Filémon, Apolodoro. A segunda parte lendária da Poética de Aristóteles relativa à Comédia, a Comédia de Homero. Sempre houve uma inclinação para apagar tudo o que cheirasse a comédia.
Felizmente, chegou até nós o melhor dos comediantes antigos, Aristófanes. Aproveitou o pico de liberdade na Grécia como nenhum outro artista, continua arrepiantemente moderno, as inquietações sobre a arte podiam ter sido escritas esta manhã.
Após uma temporada de estabilidade, Atenas foi vencida por Esparta, seguindo-se décadas de tumultos. Aristófanes foi-se tornando cada vez mais cauteloso, a era da crítica selvagem tinha terminado. Não houve mais nenhum como ele, nem antes nem depois.
Mais tarde surgiu Menandro, do qual só conhecemos pequenos fragmentos. De Menandro podíamos dizer que era um comediógrafo domesticado.
Citando Irene Vallejo, embora os escritores da comédia nova tentassem divertir o público de forma inofensiva, acabam por incomodar. Quando a sociedade antiga se tornou mais puritana, a imoralidade daqueles argumentos repetitivos começou a ofender. Nas escolas, os professores escolhiam apenas as máximas soltas de Menandro ou fragmentos seleccionados das suas obras, com cuidado para não minarem a moralidade dos inocentes alunos. E assim, as suas palavras, lentamente censuradas, perderam-se, tal como a maior parte do humorismo antigo.
O monge destruidor de O Nome da Rosa teve muitos ajudantes ao longo do tempo. Aqui deparamo-nos com o paradoxo e o drama do riso: o melhor é aquele que, mais cedo ou mais tarde, encontra inimigos.
Enquanto lê estas linhas, arde mais um livro, é suprimida mais uma frase, é varrida para debaixo do tapete mais uma palavra.
Domar a comédia — sendo que domar a comédia é sinónimo de assassínio — é uma das ambições mais antigas da Humanidade.
Termino a crónica e o ano com uma citação perturbadora e esclarecedora de Flannery O’Connor: “(Quem) só lê livros moralizadores está a seguir um caminho seguro, mas um caminho sem esperança, porque lhe falta a coragem”.