Roberto Gamito
01.02.21
Histórias, fogo e verticalidade: eis o que o Homem necessita.
O confinamento põe em evidência a natureza excepcionalmente deslizante do Homem.
A divisão entre o fasto e o nefasto torna-se indiscernível. Tentamos a todo o custo preservar a ordem das coisas. Na verdade só permanecemos sãos por meio daquilo que ficcionamos. De facto, engolir o mundo tal como ele é neste momento seria uma operação arriscada, condenada ao fracasso.
O sacrifício da realidade palpável no cadinho alquímico da ficção nunca é o mistério inescrutável que se descreve habitualmente. O cerco traz com ele a urgência de criar. Urge legar aos vindouros o canto da verticalidade. Domesticamente, caso a magia não ceda pelas costuras, as fantasias legar-nos-ão uma margem de satisfação.
Descartada a carne, o Homem é um espírito que deve sempre responder ao mesmo tempo a duas exigências irreconciliáveis: não esquecer inteiramente o mundo exterior e nunca descurar o mundo interior. Surgem deste modo elementos de uma coreografia de salvação à qual habitualmente se dá o nome de arte. As forças não despendidas no grito, o qual afugentaria a réstia de esperança, são usadas na folha ou noutro suporte propenso a haver escoamento.
O gesto da mão é alheio ao sucesso ou à tragédia. Resume-se a isto: transforma o dragão, patrono do caos, numa casa, símbolo da ordem e refúgio. Eis o que procuro: encontrar casas em tudo aquilo que escrevo.
Se a violência grassa no interior, irei opor-me a ela por meio de poemas e danças. É preciso ingenuidade — ou estupidez — assim como um grito enorme transformado em obra para sobreviver ao mundo que nos coube em sorte.