Roberto Gamito
02.02.22
O derradeiro iletrado e Platão são igualmente gagos e inúteis diante da Morte. A caducidade está presente no discurso de génios e mentecaptos: é impossível diluir a morte num leito copioso de palavras, perfumá-la ou maquilhá-la, virar costas e ficcionar a sua ausência. Não há canto apto a arpoar o grande cetáceo. Seja qual for o ardil, a Ceifeira permanece inabordável.
A ineficácia dos termos, das certezas, as nossas obras amadurecidas nas prateleiras da eternidade, o legado dos artistas, isto é, mortos não praticantes, poemas nascidos graças a uma epifania e quadros resgatados do inconsciente ardem num instante. Que ideia, gigante ou enfezada, alguma vez foi capaz de suportar a pressão da morte? Deitado para todo o sempre, o homem horizontal engorda a turba dos silentes. Mudam-se os deuses, mudam-se as vontades, reformulam-se templos e bibliotecas, reformam-se musas, contratam-se fantasias, porém a morte não é mais explicável ou menos desconcertante do que há milhares de anos. A rotatividade das fórmulas e das definições passa a falsa ideia de que o Homem está a desbravar caminho, que se encontra na peugada da definição última de morte, que será uma questão de tempo até a cercar com as nossas melhores palavras. A morte possui o condão de revelar o fracasso da palavra. Nos capítulos das dores e dos amores, a palavra tem mostrado alguma serventia: usamo-la para diluirmos o absurdo de permanecermos vivos. E embora não resolva nada, de persistirmos moribundos no caudal de vocábulos, oferta-nos a sensação de que logramos escapar às suas tormentas. Todavia a morte não se ajoelha diante da palavra, é-lhe imune.
Nós perdemo-nos nos textos, somos encurralados por relatos, somos amaldiçoados por episódios traumáticos: a salvação é impossível caso a morte nos caia ao colo. Caso queiramos conservar alguma da decência intelectual, o entusiasmo pelo amanhã, o fim deve ser banido do espírito, das conversas, espantado como uma ave de mau agoiro. Independentemente da nossa ingenuidade, sabemos que estamos fadados ao fracasso.
No epicentro onde os pensamentos resvalam para o fim, quem é que levou mais longe a sua ousadia de atravessar a morte sem intenção de regressar? Abordamos a fachada, porém ignoramos o que está para lá dela. A presunção contemporânea não tem paralelo na História: tudo é perecível, até as épocas. O Homem actual crê ser capaz de sobreviver à extinção de uma era.
Ao farejar o depois imutável, experienciamos a angústia com toda a parafernália de episódios, palavras, ficções que fomos enceleirando na cabeça durante a vida. Um suspiro antes da morte; no espaço onde florescem as últimas flores, todos os procedimentos para sairmos de nós se revelam infrutíferos. Desafortunadamente, fomos engaiolados na nossa finitude.
Em dias de festa, triunfam crenças e ideias; vencidas pela morte, serão insultadas e substituídas pelo desamparo. Agarro-me a quê, se tudo se esfumou?
A morte transforma a igreja na casa da impotência. Não estamos nem à frente nem atrás do nosso tempo, façamos o que fizermos, seremos sempre contemporâneos da nossa morte.