Roberto Gamito
14.04.24
Furriel, escuta-me: há dias, após comer gulosamente cabidela de diamantes de sangue numa correria de colheradas, prato típico de déspota milionário, perdoem-me a redundância, a referência e a enumeração fora da época de inventários, vagabundeava com vontade todavia sem genica pela rua dos meus últimos dias com a pança a saltitar de pitéu devorado e dei-me conta de um detalhe deveras revelador. As poucas sombras de árvore que ainda restam haviam sido ocupadas por veículos, carros, carripanas, motas e quadrúpedes de chapa não identificados, estes repousavam quais felinos exaustos, como que posfaciando uma caçada com bocejos, bosquejos de proezas e flatulências, enquanto os homens, o zénite da criação, suavam quais figos a secar ao sol, como se a água fosse um estorvo.
Principiei a asnear, que é como quem diz, de mim brotou uma catarata de obscenidades, hábil em polinizar os ouvidos mais sensíveis com uma irritação fresca, não lhe faltando nutrientes — só quero o vosso bem.
Massa cinzenta, queimadinhos, o arroz e o miolo, jantar de zombie feito em fanicos. Ando de um lado para o outro com as cinzas de Deus nos cornos, ele por fim minúsculo que está dentro de nós e por momentos morto. Perante isto, a notícia de mais uma morte inesperada, só logrei pensar em foder e em Dostoiévski. Amanhã pode não ser permitido, há que voltar aos clássicos.
Na vinheta seguinte, o nosso personagem anónimo prosseguia a sua ruminação, no entanto fora-lhe adicionada uma mulher de joelhos ao rés da braguilha. Enxotou-a sem pinga de delicadeza. Coitada, a pobre só tencionava acoitar-se à sombra dos tomates do velho e, quem sabe, dar largas ao apetite sem que o sol convocasse a madurez para a sua pele.
Há vinte anos, na rua agora semeada de lojas tão diferentes no nome e no conceito mas tão iguais no conteúdo, havia tão-somente dois tipos de negócio: tabernas e mercearias. Embora o sortido de bebedeiras tenha migrado do passado rumo ao presente, não é, convenhamos, o mesmo cenário. Não tem o mesmo sabor apresentar uma cadeira ressequida do sol às costas de um cavalheiro que ficou à mercê da nossa fúria ou repetir o mesmo gesto mas com uma cadeira da moda. Dá a ideia que até a porrada nas esplanadas é espectáculo virado para os turistas.
Queira facultar-me prazer e o bom do broche, e se possível em simultâneo, e para ontem, puta! Só se deres uma aparadela no mato. Não estamos em época de incêndios, quando for a altura, falo ei! Até lá regalar-me-ei com este chumaço natural que volta e meia engoda peixe mais necessitado à procura de farnel. Escusavam de teimar com ele, falava assim com todos. Mesclava ordenamento do território e brejeirice com mestria digna de mestre, fora, sem sombra de dúvidas, bafejado pelas musas. Era o cronista do seu apetite e isso fê-lo ganhar muitos inimigos e amantes e biografias não autorizadas.
Há anos, era eu puto a prestigiar a cara com ranho e borbulhas, atirava pedras às lagartixas só para ouvir o farfalhar das folhas secas à minha volta. Apontava à cabeça de uma, e merda!: fugia aquela e fugiam outras sete. Por incrível que pudesse afigurar-se, a tarefa de encontrar vida debaixo da pedra que encrencou Abel, revelava-se esquiva. Qualquer outra pedra oferecia na sua cave um hotel destinado a bichos e bichinhos. Só este pedregulho bíblico permanecia como excepção.