Roberto Gamito
14.02.22
Quis o destino que eu sobrevivesse até este dia, dia de São Valentim, moderadamente ileso, excepto umas ligeiras tremuras entremeadas com gritinhos abafados pela almofada quando medito no amor e dificuldade em adormecer sem soltar um Nilo de tristeza para os lençóis. A minha hora há-de chegar, digo eu, diante do espelho, de modo a parecer um garoto barbudo e introspectivo com um pijama pejado de porcos de forma a condizer com o meu gabarito intelectual e não um tipo tomado pela insânia; só espero é que a hora não coincida com a da minha morte. Não seria de estranhar. Sou pouco organizado e não me espantaria que o destino me tivesse marcado o amor para a hora da morte. De facto, seria o episódio indubitavelmente mais marcante da minha vida, e o último, como se tivesse deixado o melhor para o fim. A minha inteligência e beleza exótica — leia-se desespero pausadamente — serão recompensadas. Deus não dorme; todavia, em virtude da idade, é incapaz de escutar as preces dos humanos, muito menos as minhas, que sou, segundo as palavras de Jesus, esse privilegiado, o único homem que não é filho de Deus. E como não dorme ainda piora a situação; é um mouco irritadiço. O problema dos milagres está despachado: não posso contar com eles.
Não é uma tarefa fácil, com a vontade de viver a escassear, porém como alguém tem de prosseguir com a minha vida e, considerando as ofertas no mercado, entendo que sai mais barato se eu tomar conta deste negócio tão pouco apetecível. Não faço a mínima ideia do que quero dizer com isto. Se continuo vivo, se não é uma vitória estrondosa, é pelo menos uma vitória moral. Que, traduzido na moeda corrente, é um valente nada.
A verdade é que, durante a minha vida, levei a cabo muitas experiências no domínio do fracasso amoroso. O amor, segundo a minha ideia, é dotado do poder de enviar toda a nossa vida para uma nota de rodapé, dando-nos a possibilidade mágica de rabiscar de novo o livro da nossa biografia. Por azar, não tenho qualquer génio quer para a escrita quer para o desenho. É só gatafunhos. Não me chateio; ninguém percebe muito bem o que é o amor. Aliás, este procedimento, o rabisco, é tão-só a minha forma de exprimir a minha incapacidade de o compreender.
Imagino-me a esfarelar orégãos para uma salada de tomate, um hábito que ganhei quando saio à noite, enquanto bebo um copito (saliento que o corrector ortográfico trocou-me, vezes sem conta, a palavra ‘copito’ por ‘coito’), não obstante ser considerado um hábito socialmente condenável, sou bastas vezes interpelado por um olhar que oscila entre o meigo e o esfomeado e, em resposta, confortavelmente metido numa farpela de rubor, a qual preludia a indumentária do suor, treinado para salivar diante da febra, como uma nova raça de cão de Pavlov, naquele habitat de silêncio tépido onde homem e mulher praticam ping-pong com os olhares, eis que ela diz: “A forma como tu esfarelas os orégãos enriqueceu-me incomensuravelmente a vida.” A forma de seduzir, respondo eu, confiante do meu acto exuberantemente erótico, mais eficaz que conheço, minha querida.
Descontraímo-nos com xaropadas, frases sem nexo, risos que afloravam a qualquer momento, esfrangalhando-me as piadas, a coisa que eu mais detesto na vida, logo a seguir à fome no mundo. Fiz-lhe ver que era um homem diferente, um papalvo de alto coturno, padecia de um comportamento de idiota, isso era indiscutível, porém invulgar e ela admitiu que nunca vira nada assim. No meu nervosismo, sussurrei-lhe esta salada de tomate é para ti.
Nunca ninguém me disse uma frase tão doce, retrucou, encantada. Os minutos seguintes, como é fácil de ver, abarcaram diversos assuntos, dos mais simples ou mais exigentes, desde que o leitor esteja disposto a prescindir da lógica. Penso, desde essa altura, que falei demasiado. Da salada de tomate até à amizade vão dois grãos de sal. E eu distraí-me com o q.b. Tornamo-nos amigos e eu tive de adiar, de novo, o amor. De resto, ela confessou-me que nunca me iria esquecer, pois nunca havia comido uma salada de tomate às 3 da manhã.