Roberto Gamito
08.07.22
Se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão
- Herberto Helder
Já não ganho para a côdea, vivo à base de laranjas.
- Anónimo numa pastelaria algarvia
Preenches os buracos da árvore do conhecimento com a respiração aflita. Ofereces, ao mundo então escancarado, sem que a magia interfira, uma longa dinastia de gritos categorizados por épocas, credos e cor. Sem que o saibas, edificas o mapa da dor humana.
Na arte, és uma deidade tardia aprisionando uma estrela armada em coração entre as mãos. A estrela, que amanhã será palavra mansa poisada na folha, recusa-se a entrar na frase. Que trabalho te calhou em sorte, ó miserável!
É sempre a mesma coisa: antes de ingressar nas linhas, as mortes evitadas por sorte ou engenho aproximam-se em bandos de muitas e iniciam a dança de Shiva — a da destruição — em torno da minha cabeça, descrevendo órbitas excêntricas, abalroando satélites e planetas e estrelas que garantiam a estabilidade desta criatura assustadiça todavia vertical.
Noutra divisão da casa da biografia, o coração é arrancado de supetão pela coreografia adiabática da amada. Um passo atrás pode apunhalar um homem apaixonado no coração. A ideia de reverter a situação percorre os interstícios dos episódios vizinhos qual cobra sem cadastro.
É um crime ficar a meio na estrada do amor. Para onde ir se o meu norte se evaporou?
Doravante o caminho é um ziguezaguear sonâmbulo entre precipícios e fojos. O ouro das antigas palavras revela-se pechisbeque — o eterno amor oxida-se, revelando a farsa.
Carne arrefecida pela dor, metal exótico ao qual as chamas jamais ensinarão novas formas.
Infância, fera de mil caras, paisagem que nos assombra e abocanha por dentro com uma miríade de engodos, réplicas baratas de quadros fabricados pela hilariante memória, a qual é incapaz de conservar na íntegra seja o que for.
Se recuássemos uns aninhos, não teria pejo de pronunciar esta frase: "As tuas mãos cercam-me em sonhos, eu ardo qual cidade prestes a ceder às investidas dos bárbaros. "
Uma constelação de buracos negros estrangulada pela memória — o ataúde de Deus. Dentro de mim há um sem-número de génios engarrafados, ansiosos por trazer a morte ao seu salvador. Qual destas ideias me trará a morte?
Julguei, reconheço hoje a ingenuidade deste pensamento, que a vida acabaria por me conduzir a uma clareira no interior desta floresta negra inescapável, que é como quem diz, um princípio de entendimento. Tenho feito os possíveis para exorcizar os becos da vida. O quotidiano, outrora amigo, converteu-se num demónio de alto coturno. Vejo guilhotinas em todas as esquinas. Não sou senão uma marioneta nas mãos do meu demónio, eis a primeira revelação. Seguir-se-á, nem que seja num sonho ou num pesadelo, a emancipação da marioneta. Não será tarefa fácil. Ao cortar aos fios com o hábito, vou ter de reaprender a andar, de sair bípede pelo meu próprio pé desse entulho de ossos, pele e farpela que é a vida nova. Erguermo-nos das nossas sobras sem a mão vinda do alto não é isento de perigos.
Volta e meia regrido na metamorfose e regresso ao casulo. A sós com a minha respiração, reconheço que a escrita é som e fúria, o passado ebuliente posto por extenso. Não há como amansar a mão inspirada em Tifeu sem derramar sangue divino.
Repara bem no Homem que está à tua frente. A respiração resgata o labirinto do mundo interior, denuncia-o em todos os seus pormenores. Repara bem como estamos perdidos.