Roberto Gamito
21.01.22
Por que diabo o nosso reflexo carece de interesse, de vigor, de actualidade e se parece tão pouco connosco? Para onde é que se escoaram as marcas — sorriso e olhar — da juventude?
As reservas de calorias de que dispúnhamos para forjar o futuro reduziram-se a cinzas.
Como resposta à cidade incendiada, cultivamos os atributos de um deus colérico. Engaiolamo-Lo no pensamento e rezamos para que Ele nunca venha à tona das nossas mãos.
A maioria expia, por meio do espectáculo, a vida mumificada transportada de um lado para o outro.
Já não procurando a luz, superior aos pretextos que nos convidam a sentar e a observar os simulacros de salvação, entrega-se sem réstia de esperança ao bailado nocturno.
Entusiasta dos asteróides, eles que tombem por toda a parte e nos doutrinem com um inferno à mão de semear, procurando trilhos onde os demais vêem novelos, terras que os corações alucinados não frequentam, emancipado do suor e da patranha, livre do peso da servidão, do sorriso maquinal a horas certas e do aperto de mão para encetar pontes fictícias, não sendo o talento o seu forte nem tão-pouco o amor, regressa sem mestres ao início da sua desolação.
Face à celebração ululante do óbvio, no decorrer da qual uma procissão de papagaios se depena ao professar obviedades monossilábicas, sem o exercício recorrente do espasmo acompanhado que é sintonizar a carne com o seu semelhante, sem ser capaz de soletrar paixão sem recorrer ao tique de elevar o estandarte da sua tribo, está condenado a ser asfixiado pela consciência.
A procura do nirvana no óbvio a que certos budistas da nova escola recorrem enoja-me a ponto de querer dinamitar o universo. Doutrinar o outro com o raso é o diagnóstico de uma mente colectiva falida, para sempre desfalcada.
Pôr a alegria pelas goelas abaixo como se fôssemos catraios nas primícias da domesticação parece-me um empreendimento apocalíptico. Não contem comigo para os vossos caldinhos.
Recuo ante a farsa copiosa de que é o melhor para todos.
As mil e uma redundâncias, eufemismos e oxímoros são sinais de que o pensamento está prestes a extinguir-se.
Que pecado cometeste para agora fazeres de conta que o sofrimento não existe? Faças o que fizeres, os ecos dessa dor perseguir-te-ão até aos extremos da tua ficção positiva. Quando muito, as pequenas alegrias, quais pequenas fagulhas, inserem-se como vírgulas na respiração humana, breves pausas antes do ponto final. Todos os seres estão mortos: mas quantos o reconhecem?