Roberto Gamito
29.12.20
“Eu sou a República de Platão”, diz uma personagem de Fahrenheit 451, a temperatura na qual os livros ardem.
O alfabeto é provavelmente a maior invenção de todos os tempos e o livro o seu maior aliado. Antes da sua chegada, a escrita locomovia-se em círculos muito elitistas e servia sobretudo para tarefas utilitárias, a saber: actas, inventários e matérias relativas a julgamentos. De certas civilizações vetustas chegaram-nos somente os enfadonhos inventários de riquezas, eis a única marca da escrita desses tempos recuados. Não seria totalmente disparatado supor que os primeiros escribas foram os primeiros contabilistas e que, possivelmente, o ganância dos ricos fomentou o aparecimento da escrita.
Tabuinhas de argila, papiro, pergaminho e eis-nos chegados aos nossos dias. As letras e os seus ancestrais experimentaram todo o tipo de suporte, quer animal, quer vegetal.
O alfabeto fenício, privado de vogais e saído do punho de piratas, foi o primeiro grande avanço, o alfabeto grego, o grande passo até aos nossos dias. A escrita virou-se para o Homem, para a festa, banquetes, problemas de escassez, como os relatos escritos por Hesíodo. A cada passo dado, a escrita tornava-se mais acessível, chegando a mais gente. Tudo era digno de ser cantado.
A prosa veio mais tarde, aumentando ainda mais a sua acessibilidade.
O livro, como escreveu Borges, é a extensão da memória e da imaginação. Nos antípodas desse entusiasmo, chegam-nos as palavras de Sócrates que vaticinou que ao nos embeiçarmos por ele nos tornaríamos um bando de convencidos ignorantes. Talvez o profeta tenha errado no alvo, não era do livro que falava, mas da internet. O problema da memória aí atinge dimensões preocupantes. Só é possível dar um passo substancial no tocante à arte se a memória, mãe de todas as musas, estiver de boa saúde. Caso contrário estamos condenados e patear no lamaçal do eco. Estamos longe dos aedos itinerantes que sabiam a Ilíada (15000 versos) e a Odisseia (12000 versos) de cor, a nossa cabeça relaxada, fiando-se na internet e coisas que tais, é incapaz de guardar seja o que for.
Os livros ardem na pira da memória afadigada. Eu sou o tweet que gerou a indignação do dia, diz o Influencer.