Roberto Gamito
08.02.22
O gemido, aliado a um nome, pode conduzir-nos às alturas. Humoristicamente falando, estamos diante de um foguetão caseiro. Expandindo a cena cientificamente, teríamos, num hangar algures no meio do frio, cachos de homens a vistoriar a trajectória da paixão. Em correndo bem, aplaudiriam, de calças em baixo, mais uma missão bem-sucedida.
O Deus original tem, nas suas paredes, não escaravelhos ou borboletas, mas deuses menores alfinetados: arrumados de acordo com a sua rareza. Ao lado destes, fraudes e deuses por nascer.
Ele sorri ao ver o padrão de criação-destruição.
O pormenor esfalfa-nos. É preferível extenuarmo-nos a profetizar uma grande obra. Precisamos de nos demorar um pouco mais, não deixar o rosto por pintar. É por meio do pormenor que as formas são resgatadas do nevoeiro.
Entopem a acção com o evangelho da inércia. Alguém tem de construir, a meio de uma carnificina, uma loja na qual se venda silêncio. É aqui que se compram sementes de esperança? Sim, responde o lojista, mas cale-se.
Atacar eufemisticamente o outro é cobardia, não confundam com educação. Atacar um desgraçado vulnerável em turba não é humano, é animalesco. Existir é estar preparado para a pequenez.
No império de Narciso, vários ângulos foram banidos, só o melhor interessa. Por conseguinte, ensaia-se a espontaneidade vezes sem conta. O pior ângulo do outro também nos interessa, caso nos favoreça. Fotografamos os extremos, esquecemos o miolo.
Impingimos legendas a certos episódios dos quais conhecemos apenas fragmentos. Embrulhe-me essa catástrofe nesse jornal da semana passada, vou servi-lo às minhas vizinhas como se fosse peixe fresco. Vai ser de comer e chorar por mais.
Postular o itinerário do olhar é infantil ou digno de ditador.
O livro de auto-ajuda é uma história de catraio adaptada aos ouvidos adultos. Um certo homem embrulhou uma doença numa prosa sem arestas e não disse coisa com coisa. A manobra publicitária de enxertar o final feliz numa catástrofe é uma das grandes invenções da Humanidade, talvez até superior à roda.
A poesia chorona, que grita em vez de cantar, é incapaz de entrar no Homem pelas suas brechas. É recebida com “giro” e despede-se de nós sem deixar legado.
Até a respiração se pode transformar num monstro, numa coisa que incomoda. Gota a gota criamos o dragão, como nos afiançam os manuais de tortura chinesa. Deus ter-se-á aborrecido quando se deu conta que o Homem pode ser enlouquecido de infinitas maneiras.
Escrever sobre a superfície é pôr por extenso o nosso medo. É o simpático método de liquidar a humanidade: como não quero que o mundo me bata a porta, escrevo e em linhas simulo cercos e cadafalsos.
O homem contemporâneo não existe verdadeiramente, está demasiado preocupado em ser filmado segundo um ângulo favorecedor.
Deitado, o homem-estátua aproxima-se perigosamente do morto. Por conseguinte, defender a verticalidade é o seu verdadeiro ofício. Ao contrário dos demais, permanece de pé e não faz alarde da façanha. É um homem fora do seu tempo.
Pôr a morte a um palmo das pessoas e pedir-lhes que digam, por amor de Deus, algo de admirável. Eis o romancista-carrasco.
O nome, um resto que se agiganta até conquistar a capital da memória. O pensamento, a gaiola barroca do animal. Vida, erro solúvel no álcool.
Vivemos como na Idade Média: rezamos para que não nos matem injustamente. O poeta é aquilo que Deus faz ao Homem quando quer ser surpreendido. A questão que faz a arte andar: alguma vez conseguimos surpreendê-Lo?
Até o mais simpático dos homens tem no seu âmago um monstro.
O coração foi vandalizado por um nome e ainda não recuperou. Um dos mistérios do amor. A cidade interior despede-se da sua Idade de Ouro.
A confusão é a vingança nas mãos de um bárbaro aprendiz.
Todos os versos são declarações de guerra, todas as rosas e pássaros envenenados. Se saíres do domínio das convenções, cometerás um atentado ou serás, de súbito, pai de um novo movimento artístico.
No império dos míopes, tudo é e não é ao mesmo tempo. Os enciclopedistas erraram logo à partida: o inventário pressupõe estabilidade. De que vale classificar o animal se ele é um bicho em constante mutação? A mão produz arte, tal como a lâmina. E o seu avesso, tal como a lâmina.
Encaixotámos os escaravelhos e as borboletas, esquecemos o passado de entomólogo, e hoje penduramos frases breves nas paredes. O escaravelho era para nós, a frase para os outros: eis uma mudança decisiva.
Em certos períodos da obra, cada verso do poeta é uma caixa onde é guardado o paraíso ou o inferno. Uma biblioteca inteira não chega para explicar um único olhar. Arranjar marcadores de molde a irmos lendo aos poucos os olhares dos outros.
O silêncio é-nos estranho e vazio porque para investigá-lo é preciso não estar ansioso. Pertencemos a um século que é incapaz de encontrar seja o que for no silêncio.
Só nos entende quem está familiarizado com o sofrimento. O sofrimento como afinação do entendimento. A alegria como viveiro de mal-entendidos.
Para onde corre o medo se imaginar no meu corpo milhares de portas abertas? Para onde olha o Narciso se o espelho for proibido?
A pequenez é varrida para baixo do tapete, juntamente com os deuses, a nossa verdadeira dimensão causa-nos uma certa claustrofobia. Muda de assunto, por favor, não cortes o efeito do ópio.
Como a vida é bela, se vista num poema.